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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 29 de agosto a 4 de setembro de 2022

 

“Raízes do Brasil” (1936) de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) são motivo de reflexão sobre a construção do Brasil contemporâneo, no momento em que se celebram dois séculos da independência brasileira.

 

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BRASIL - O OUTRO LADO DE NÓS

Parece audacioso o título que encima esta prosa. Poderá ser. É verdade que há muitas simplificações na apreciação das relações luso-brasileiras, como por exemplo a suposta irmandade, a coerência entre o que nos une e nos separa, a relação com o idioma comum. A verdade, porém, é que há uma grande complexidade nos elos que nos ligam. Não esqueço os inesgotáveis diálogos que estabeleci e estabeleço, tantas vezes apenas espiritualmente, com o meu saudoso mestre António Cândido, com Hélio Jaguaribe, mas também com o meu querido confrade Celso Lafer, com Fernando Henrique Cardoso, com Alberto Costa e Silva ou com Marcos Vinicios Vilaça. Devo dizer que se trata de matéria em que sou suspeito, uma vez que nasci numa família luso-brasileira. Minha avó Leonor nasceu no Estado de Paraná, na cidade de Paranaguá, de uma família de industriais da colonização alemã. Conheci em casa de meus avós Jordão Emerenciano, nos anos cinquenta, quando se vivia uma situação dramática com a morte de Getúlio Vargas, e não esqueço a gravação de poemas de Manuel Bandeira, que eram um regalo para o ouvido, a começar em “Recife” e no reconhecimento da sabedoria de Totónio Rodrigues. Anos depois, quando estive no Recife, corri à rua do Sol e verifiquei que ainda lá está, e não se chama doutor fulano de tal.

Partilhando muitas preocupações de amigos comuns, como José Carlos de Vasconcelos, gostaria que houvesse maior presença do Brasil em Portugal e de Portugal no Brasil. E recordo saudosamente conversas entusiasmadas com Mário Soares, José Aparecido de Oliveira, António Alçada Baptista, Zélia e Jorge Amado. Era um tempo em que Quincas Berro de Água fazia parte de um certo quotidiano. Com esta recordação bem viva, todos aspiramos a que haja uma maior relevância internacional da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Só uma relação biunívoca e uma compreensão das diferenças e complementaridades (ou se se quiser suplementaridades) poderão beneficiar-nos a todos. Longe de idealizar as relações comuns, trata-se de partir da heterogeneidade, das diferenças e da adaptação para delinear uma agenda de interesses e valores comuns. Se invoquei a experiência familiar, foi para tornar claro que sempre ouvi o teor contraditório dos debates, ora de lá, ora de cá. Tenho à entrada de minha casa a imagem de D. Pedro, enquanto o meu amigo Hélio, me levou a admirar o papel desempenhado por D. João VI na preservação da unidade brasileira. Conhecendo praticamente todo o território brasileiro, não apenas percorri o roteiro das reduções jesuíticas, mas também o impressionante percurso dos Bandeirantes, com a obra de Jaime Cortesão sobre Raposo Tavares nas mãos. E percebe-se bem a multiplicidade de fatores que contribuíram para a construção deste imenso território – podendo perceber-se a diversidade de fatores, lendo Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e naturalmente António Cândido.

 

UM MUNDO DA LÍNGUA PORTUGUESA

De facto, não há uma lusofonia, mas um mundo da língua portuguesa com muitas diferenças por encontrar e descobrir. E esse mundo da língua comum alberga várias línguas e várias culturas que devemos compreender melhor. Neste ano em que celebramos duzentos anos da independência formal brasileira e em Portugal assinalamos a nossa primeira Constituição, não esquecemos que o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves já existia em 7 de setembro de 1822, quando foi dado o grito do Ipiranga, desde 16 de dezembro de 1815. O Rio de Janeiro foi desde então capital de Império e essa circunstância definiu o novo tempo que permitiu ao Brasil definir uma história singular que ainda hoje marca as nossas relações. Eis por que tem razão de ser a referência ao Brasil como outra face de nós. Não se trata de uma idealização, mas sim relação tornada natural, com todas as dificuldades inerentes a uma proximidade quase familiar, com todos os encontros e desencontros dessa paradoxal proximidade. Por isso, Eduardo Lourenço fala do Brasil como um outro “mesmo quando o pensamos, para reforço da nossa identidade onírica, como o outro sublimado de nós mesmos”. Eis por que precisamos uns dos outros para nos compreendermos melhor.

A colonização portuguesa, o tráfico de escravos, a relação com África e o papel da população ameríndia são os fatores de formação do Brasil. As diversas mediações articulam-se. Lembremo-nos de Diogo Álvares Correia, designado como “Caramuru” pelos tupinambá, casado com uma índia que contribuiu para o enraizamento da sociedade colonial. Mais do que o controlo da costa é a descoberta do ouro que conduz ao desenvolvimento económico, desde a ocupação do interior e aproveitamento dos rios até à produção agrícola e abastecimento dos mercados urbanos. Cana-de-açúcar, tabaco, ouro e diamantes definem a evolução do sistema económico, bem como a exploração do pau-brasil que inicia a desflorestação. O sistema político é inicialmente influenciado pelo português, com adaptações consuetudinárias. Franceses, holandeses e espanhóis constituem uma concorrência que permite alargar as áreas de colonização e influenciar o sistema de transporte. Com os espanhóis há a competição de que é exemplo o caso de Colónia de Sacramento até ao Tratado de Madrid (1750), mas a monarquia dual facilitará a chegada ao Forte Príncipe da Beira, muito para além do meridiano de Tordesilhas. A coesão social do sistema imperial torna-se possível graças à circulação das elites à influência económica dos cristãos-novos, apesar da ocorrência de tensões – ora influenciadas pela herança holandesa no nordeste, ora entre bandeirantes paulistas e reinóis em Minas Gerais. A Inconfidência Mineira (1789) foi resultado do descontentamento pelo agravamento fiscal e incerteza económica.

 

RESULTADO DE MOVIMENTO COMPLEXO

O Brasil não é produto do acaso. Corresponde a uma convergência de fatores centrípetos e centrífugos, em que a economia, a natureza e o fator humano criaram condições para a afirmação de um território de grandes dimensões que resistiu à fragmentação hispânica. O Padre António Vieira teve uma influência diplomática e humanista importante. A Universidade de Coimbra foi um fator de coesão e de prestígio para a elite intelectual. A política jesuítica face aos índios foi um elemento estabilizador. A mitologia tupi, o Candomblé como rito afro-brasileiro, o cristianismo e o messianismo que chegaria aos “Sertões” de Euclides da Cunha e a António Conselheiro geraram movimentos híbridos a que se somou a influência puritana holandesa. Com afirma Francisco Bethencourt: “De uma forma geral, o sistema normativo e a religião cristã deixaram quadros de comportamento e de crença sobre os quais se inscreveram boa parte dos desenvolvimentos contemporâneos” (Público, 8.8.2022). Os legados que permitiram a independência de um Brasil unificado são de caráter plural e misto com consequências contraditórias, no contexto de uma cultura na qual destacamos a herança artística de António Francisco Lisboa (o Aleijadino) até à literária de Tomás António Gonzaga.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

De 4 a 10 de outubro de 2021


Por ocasião da preparação dos duzentos anos da independência do Brasil referimos três obras que permitem compreender a realidade cultural brasileira – da autoria de Jaime Cortesão, António Cândido e Celso Lafer.


 

ENTENDER A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL
Jaime Cortesão (1884-1960) foi um dos portugueses que melhor compreendeu o Brasil, onde viveu o período mais fecundo do seu exílio político. A sua obra é prolífera, permitindo-nos escolher como referêncial “Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil” (Portugália Editora, 2 volumes, 1966), onde encontramos uma análise muito rica da génese do movimento Bandeirante, sobre a política audaciosa de D. João IV no Brasil, tantas vezes pouco lembrada, mas decisiva para a unidade territorial do território, além da consideração da figura de António Raposo Tavares (1598-1659), nascido em Mértola e chegado a S. Paulo em 1618, na comunidade cultural luso-brasileira, quer no plano nacional no Brasil e em Portugal, quer no contexto internacional, como precursor do conceito de Estado moderno. Encontramos dois “bandeirismos” que se completam, na expressão do historiador: «um luso de raiz, espontâneo ou oficializado, implícito, aliás, em toda a história dos descobrimentos e conquistas dos portugueses; outro misto, desencadeando-se sem freio com o vigor rompente  das forças naturais, moldado apenas aos acidentes e grandes sulcos geográficos do território; obedecendo a necessidades económicas primárias…». A obra de J. Cortesão é magnífica, de uma assinalável probidade histórica, mostrando a tensão entre duas influências que se digladiaram, bandeirantes e jesuítas, da qual resultaria a grande unidade brasileira. O percurso das bandeiras de Raposo Tavares, de 12 mil quilómetros em 4 anos, desde S. Paulo até Belém do Pará, rompendo o meridiano de Tordesilhas constitui uma das grandes epopeias em prol do conhecimento do mundo desconhecido. Sem pôr em causa a violência, os conflitos, a contradição entre a diplomacia oficial e as ações de facto, o historiador procura dar-nos nota sobre o modo como ocorreu a formação territorial do Brasil, com todas as tragédias e vicissitudes. 


A GÉNESE DA LITERATURA BRASILEIRA
A obra mais marcante de António Cândido de Mello e Souza (1918-2017) é a “Formação da Literatura Brasileira” (1959), que influenciou várias gerações de professores e intelectuais, permitindo entender a encruzilhada plural de influências da cultura brasileira, como ponte entre diferentes gerações – aproximando Oswald de Andrade, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Usando o método dialético e comparatístico, a partir da sua formação sociológica, pôde dar uma nova luz para a compreensão do caráter poliédrico da poderosa criação literária e cultural do Brasil. Antonio Cândido chama a atenção para os arrabaldes do trabalho crítico e para as razões que determinam de que maneira somos levados a encontrar, conhecer e amar as obras que se tornam prediletas, “sobretudo quando nos fazem companhia pela vida toda numa sucessão de leituras”. Por isso, sobre Darcy Ribeiro (1922-1997), recorda as três bandeiras que cobriam o seu caixão: a do Brasil, a do seu Estado de Minas Gerais e a dos Sem-Terra, referindo que “elas não encarnavam o país dos donos da vida, nem eram pendões de festa cívica, objetos cansadíssimos de discursos em cerimónias rotineiras”. E assim se incorporavam “os pais dos pobres, dos que precisam ser finalmente incorporados à nação”.


A POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL
Celso Lafer (1941) é, entre os contemporâneos um autor importante para a compreensão do Brasil. Discípulo de Hannah Arendt e de Norberto Bobbio, tem desenvolvido a sua ação intelectual em torno da relação entre Ética e Política, entre valores e meios técnicos, a partir da exigência de uma racionalidade pública tornada essência do desenvolvimento. Escreveu “Paradoxos e Possibilidades – Estudos sobre a Ordem Mundial e sobre a política exterior do Brasil num sistema internacional em transformação” (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982). Como o seu amigo Hélio Jaguaribe (1923-2018), considera fundamental a convertibilidade do valor da cultura em capacidade criadora, segundo a flexibilidade de “geometrias variáveis”, numa lógica de integração aberta e de uma democracia social complexa. Razão e vontade exigem um compromisso ético que marca os limites do exercício dos dois fatores. Depois do fim da guerra fria prevaleceu um sistema de polaridades difusas, modeladas pelo jogo de duas forças profundas: as centrípetas de unificação e globalização e as centrífugas de fragmentação. Quando lemos “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), compreendemos que a obra se encontra na encruzilhada crítica de obras referenciais como “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre (1900-1987) e da “Formação do Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Júnior (1907-1990). Como salienta António Cândido: «trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo – são pares que o autor destaca no modo de ser ou na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os brasileiros». O tempo confirmou a necessidade de uma análise da realidade brasileira mercê da justaposição de fatores contraditórios – ex parte principis e ex parte populi. Deste modo, poderemos entender que o desafio atual do contexto brasileira se relaciona com a qualidade da democracia e com a eficiência dos instrumentos política de legitimidade, representação e participação. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença