A VIDA DOS LIVROS
De 17 a 23 de fevereiro de 2025
A leitura da Crónica dos Feitos da Guiné de Gomes Eanes de Zurara constitui oportunidade única para a compreensão do papel histórico desempenhado pelo Infante D. Henrique e pelos Filhos de D. João I.
«E TAMBÉM AS MEMÓRIAS GLORIOSAS…»
Se há figura na História portuguesa rodeada de uma aura especial, essa é a do Infante D. Henrique (1394-1460). São riquíssimas a sua experiência e a influência que exerceu no seu tempo e no século seguinte. Uns glorificam-no, outros apoucam-no e talvez todos estejam algo fora da verdadeira consideração. Sobre os mistérios existentes, basta lembrarmo-nos do debate sobre a vera efígie do Infante. A mais próxima imagem de quem teria sido Henrique é a que está no pórtico sul do Mosteiro dos Jerónimos, no entanto são as representações da «Crónica dos Feitos da Guiné» de Zurara, que se encontra na Biblioteca Nacional de Paris, e a dos Painéis ditos de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, no Museu Nacional de Arte Antiga, que nos permitem identificar facilmente Henrique, o Navegador. De facto, o Infante tornou-se quase um mito, apesar de ser uma das figuras históricas portuguesas sobre quem é possível definir com maior rigor um percurso de coerência e de vontade. A decisão da exploração da costa de África, e tudo o que se lhe seguiu, é algo que merece cuidada análise – correspondente à ponderação de decisões e acontecimentos que têm tudo menos de acaso. A conquista de Ceuta (1415) permitiu a compreensão das dificuldades colocadas, a Portugal e à Península Ibérica, na entrada do Mediterrâneo e no comércio com o Levante. As cinco razões da «Crónica dos Feitos da Guiné» de Gomes Eanes de Zurara têm de ser lidas em estreita ligação com as fortes condicionantes económicas, políticas e territoriais: (a) a vontade de conhecer as novas terras; (b) as razões comerciais para a troca de produtos; (c) o poderio dos “mouros daquela terra d’África”, muito maior do que comummente se pensava”; (d) o saber se haveria rei cristão naquelas paragens; (e) a expansão da fé cristã.
O PAPEL DE HENRIQUE, O NAVEGADOR
Sobretudo, pouco se entenderá deste movimento se não invocarmos a profunda crise económica e social sentida em Portugal e na Europa no último quartel do século XIV, ainda sob efeitos da peste negra, que obrigou à procura de alternativas. Se o Infante não é uma figura isolada, o certo é que tem uma quota-parte fundamental no planeamento e na administração de um reino que não poderia nem queria ficar confinado ao território peninsular, às limitações mediterrânicas e às ameaças dos mouros, árabes e otomanos. D. Henrique foi marcante e cioso dos seus domínios, era duque de Viseu, senhor da Covilhã, governador da Ordem Militar de Cristo, senhor dos arquipélagos da Madeira e dos Açores e do barlavento algarvio, mas também detentor do monopólio das saboarias, da pesca do atum, da produção do pastel ou da pesca do coral.
Há, no entanto, uma notável complementaridade no seio da chamada Ínclita Geração, os Altos Infantes. A figura do Pai, D. João I, é a de um autêntico refundador do Reino, na sequência de D. Afonso Henriques e D. Dinis, cada um a seu modo, sendo criador de uma realidade política nova ligada à grande frente marítima atlântica, mas também às influências mediterrânicas. Se cuidarmos da análise dos acontecimentos, depressa descobrimos que os filhos do Rei da Boa Memória, D. Duarte (o Leal Conselheiro), D. Pedro das Sete Partidas e D. Henrique articulam inteligentemente ações. A leitura da célebre carta de Bruges, enviada por D. Pedro a D. Duarte, ainda príncipe herdeiro, além de nos revelar a defesa do que mais tarde se designaria como fixação por contraponto ao transporte, apresenta-nos o que poderíamos designar como um projeto nacional – com uma Administração moderna, uma economia adequada à inovação, uma universidade capaz de seguir o que de mais avançado outras faziam e uma procura de novos modos de funcionar e agir. Está, aliás, por esclarecer inteiramente qual a influência das informações de D. Pedro, recolhidas no périplo europeu e nas navegações promovidas por D. Henrique na costa africana. O certo é que quer o “Livro das Maravilhas do Mundo” de Marco Polo quer um misterioso mapa de Fra Mauro devem ser lembrados – não que tenham definido um plano para a Índia, que só o Príncipe Perfeito assumirá, mas como a necessidade de procurar, como diz Zurara, uma aliança estável para favorecer o comércio com o Levante. Não seria ainda a Índia o objetivo, mas D. Henrique estaria a pensar na Terra Santa, preocupado com o seu próprio poder e a sua influência, com a sua vocação de cruzado do novo tempo. A atitude perante o desastre de Tânger e o cativeiro de D. Fernando deve ser lida a esta luz. E, se dúvidas houvesse, basta lembrarmo-nos de que, mais tarde, Afonso de Albuquerque persistiria na ideia da libertação da Terra Santa.
UM PAPEL DECISIVO
Dotado de uma inteligência superior, D. Henrique ligava razões diversas – políticas, económicas, sociais e religiosas, à luz do seu tempo. Importa, pois, reconhecer o significado da articulação de vontades e inteligências e da sua extraordinária capacidade para seduzir e para convencer. E não poderemos esquecer ainda a influência europeia de D. Isabel de Borgonha, casada com Filipe, o Bom, e mãe de Carlos o Temerário. Segundo João Paulo Oliveira e Costa, despojado do mito, D. Henrique não é apenas o Navegador, é o príncipe preocupado com o seu senhorio e com a sua influência política e um cortesão que sabia influenciar e enlear as demais figuras da corte, através de uma simpatia que o colocou sempre acima das divergências que dividiam os membros da família real. O Infante moveu-se intensamente em todo o reino, e os períodos de maior frequência nas deslocações, «coincidem com a sua mais intensa ação expansionista: 1437-1441 e 1443-1445. Em ambos os períodos, correu de Lagos a Viseu, cidades gémeas no seu entender. Na primeira, assistia à partida e chegada das embarcações e à repartição das mercadorias; em Viseu, de ordinário, arrecadava o quinto e demais frações que lhe cabiam. Aquando do conflito trágico, que culminou na Batalha de Alfarrobeira (1449), D. Henrique procura contemporizar, sem sucesso, mas é sob a sua influência que o corpo de D. Pedro irá para a Batalha, não podendo esquecer-se que, com interferência do Rei, ver-se-á reconhecido pelo Papa como diretor das navegações, conquistas, ocupações e apropriações de todas as terras, portos, ilhas e mares do continente africano e mesmo dos ainda a ocupar da Guiné para sul sem fixação de quaisquer limites («per totam Guineam et ultra»). Regressar à leitura da História não pode significar nem saudosismo, nem ilusão ou descanso nas glórias passadas, mas sim responsabilidade e compreensão das situações diferentes dos vários tempos. Longe da ideia de acaso ou de improviso nas memórias gloriosas do que se trata é de olhar para diante em cada tempo, com conhecimento e audácia.
Guilherme d'Oliveira Martins
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