CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ
Catedral de S. Tomé © David Stanley/Creative Commons Attribution 2.0 Generic license.
10. SAÚDE PARA TODOS: HÁ BELEZA EM TER UMA MISSÃO
Se a vida é um dom que não pode ser ignorado ou desperdiçado, há que usar essa dádiva, com consciência e responsabilidade, para ajudar e salvar outras vidas.
Como que de modo premonitório, em 1986, um jovem médico recém-licenciado, bisneto da Marquesa de Valle Flôr, desembarcava em São Tomé e Príncipe (STP), à procura do sentido para uma instituição que a bisavó fundara, para gerir o legado do bisavô, através do Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF), em cuja administração acabara de entrar. Era-lhe familiar, desde pequeno, o nome de STP, que antevia como ponto de partida para a reabilitação de um Instituto intimamente associado àquelas ilhas. Chegou de férias, curioso e sem um propósito em concreto, expectante e com ideias em mente. Ouvira que o hospital Monte Café, ia fechar, por falta de recursos. Decidiu ir, sem “imaginar que essa visita acabaria por mudar o rosto da Saúde no arquipélago”.
Aí encontrou outro jovem médico, egípcio, que chegara um ano antes, após se candidatar a um fundo para a cooperação com África. Da empatia, imediata e recíproca, decidiram avançar para a recuperação do hospital, em parceria com o IMVF e uma ONG. O projeto disseminou-se pelo arquipélago, surgindo a ideia e necessidade de ter uma estrutura permanente em STP, com funcionários administrativos, colaboração e formação de enfermeiros, técnicos e médicos locais, em que a cooperação portuguesa, com o envio de missões de especialidade, foi crucial.
Durante décadas o IMVF desenvolveu um programa de saúde (Saúde para Todos) que deu prioridade à implementação de uma rede de cuidados de saúde primários, bem como de todas as políticas de saúde pública (saúde escolar, materno e infantil, vacinação), fazendo subir a esperança de vida para um dos melhores índices da África subsariana.
Foi o IMVF que sugeriu à cooperação portuguesa a organização de missões de especialidade, para levantamento das necessidades e organização do programa de cada ramo médico (evitando-se custos em geral e evacuações sanitárias desnecessárias para Portugal), com a condição preliminar de todos os participantes irem em comissão de serviço das suas instituições (públicas ou privadas), sem direito a remuneração.
Todas as missões têm uma vertente assistencial e uma vertente obrigatória de formação, com o fim de capacitar os quadros de STP, pelo que médicos, enfermeiros e técnicos cruzavam-se todas as semanas no aeroporto, chegando uns, partindo outros, numa labuta e movimentação só exequível pela existência de uma logística na sede do Instituto e terreno e de equipas profissionais competentes.
A progressiva vertente inovadora nos programas de cooperação (desde a investigação científica em áreas como a má nutrição, rastreio do cancro do colo do útero, estudo da prevalência da hipertensão arterial e da surdez e suas causas), tem um impacto expressivo no número de especialidades que têm três a quatro missões por ano, que incluem dermatologia, ortopedia, imagiologia (telemedicina), cardiologia, oftalmologia, pediatria, cirurgia pediátrica, otorrinolaringologia, língua gestual, urologia, psiquiatria, pneumologia, cirurgia geral, anestesia, anatomia patológica, ginecologia e medicina tropical.
Prova de que o IMVF pode fazer a diferença e mexer a sociedade civil de STP, foi uma associação e manifestação, constituída por homens, que norteados pelo provérbio “quem não chora não mama” exigiram a ida para o arquipélago da especialidade de urologia, com a palavra de ordem “Os portadores de próstata também querem um especialista”, o que conseguiram, junto do governo e do Instituto, tanto mais que havia especialistas de ginecologia vocacionados para mulheres.
E se o futuro da saúde em STP decorria da evolução em termos de meios complementares de diagnóstico na área da imagiologia, porque transversal a todo o tipo de intervenção nas diferentes especialidades médicas, isso foi alcançado com a digitalização do serviço de radiologia, transmitindo para Portugal por telemedicina, abatendo a distância e pondo em contacto pessoas que recebem imagens, fazem diagnóstico e interagem.
Eis um projeto estruturante, que será tanto mais frutuoso na prática se semearmos copiosamente a ideia de que o ser humano é mais valioso que as ideias abstratas, as ideologias e o politicamente correto, usando os nossos talentos para salvar vidas (ou perdê-las) em dignidade e com dignidade.
E há as famílias invisíveis dos voluntários presentes em missão, também credoras de sacrifícios, que os apoiam, amam e compreendem a sua ausência.
E há sempre beleza e algo de belo em ter uma missão, cujo resultado não se traduz só em números, ciência e tecnologia, mas sim num gosto que nos preenche, numa partilha de desígnio em prol do bem comum, validado pela proximidade com os outros, em especial se frágeis e indefesos. Porque há só uma vida que nos dá um sentido de destino em comunhão como intuí, in loco, nos olhos comovidos e emocionados de alguém ao receber, nas palavras descomplexadas de outrem, a gratidão e o reconhecimento de ter feito frutificar um valimento que soube partilhar.
06.12.24
Joaquim M. M. Patrício