Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A linguagem empobrecida, empobreceu o pensamento que com ela adquire e exprime significação, e por entre este vazio nasceu e cresceu o pasmo dos deslumbrados.
A linguagem sofreu mutações e a capacidade da sua apropriação por parte dos seres já dominados inibe que dessa metamorfoseada realidade se possam dar conta.
Há um novo tempo e há um novo espaço de plurissignificações que em si muito contém a mercadoria do mundo ilusório.
A barbárie do simulacro antecedeu tanta inverdade que os seres confundidos e anestesiados se têm mostrado incapazes do exercício do questionar.
As migalhas que se foram aceitando do poder e da intectualidade que com ele privaram e privam, constituíram a primeira prova da mansuetude cerebral dos múltiplos inquilinos dominados neste sistema.
Até a IA chegou em grande parte pela mão de uma informação de botox, provocadora de paralisia aos estímulos neuronais, de modo que se confundissem as inevitabilidades concordantes e discordantes, num rodopio sem significação.
Tudo o que vai chegando a um mundo sem sonho, e consequentemente sem a grande força da insubmissão, instala-se como fatalidade, já que a condição inquieta do homem se deixou subtrair da sua vida, permitindo o poder titânico que parece ter feito desmoronar o pensamento perscrutador.
E tudo ficou destinado a ficar impune. Até quem muito amedrontou com o esplendor da IA, experimentou o uso de um poder sobre uma civilização que afinal pretendia anular.
O poder incontrolado das novas realidades é tema do qual se desertou sem enfrentar, e a insatisfação absolutamente anémica, perdeu posto e não constitui doença.
O que acontece hoje será meramente pitoresco daqui a um ano, e não se estranha não compreender o agora neste imenso potencial transformador.
Navegar de um lado para o outro pode ser o mesmo que não sair do sítio de não-partida.
A capacidade analítica sobre os inúmeros dados potenciadores de um estilo de aprendizagem e desempenho que a IA transporta com a maior capacidade de sucesso, situa-se no polo oposto do não-questionamento de uma cultura simplificadamente adormecida.
Apesar de todas as possibilidades fantásticas, fascinantes e promissoras que a IA oferece, as preocupações em torno do seu uso, nomeadamente o expor uma notícia falsa indistinguível da realidade, terá consequências críticas para a sociedade, ou a tensão entre a palavra e a essência não fosse o grande poder do mundo simulado e enfim, do caos da vida.
Será que todos acham que ainda é cedo para que esta preocupação tenha raízes?
Não é fundamental que os que desenvolvem a IA e os seus usuários sejam responsáveis pelo seu uso e considerem as implicações éticas das suas criações?
A maior ferramenta da IA é a confiança, caso o abaixamento do pensar e do sentir, não tenham chegado à subcave da passagem por aqui dos seres humanos.
Que os fios poderosos que envolvem os homens não os façam acreditar num doravante de otimismo de consumo que os sacia.
A IA é agora uma eficiência se orientada, e o bule cujo conteúdo é mar, nele se não confina.
As plantas não crescem nem são belas porque a IA lhes dá o poder da Natureza.
Não, a IA não é mundo natural nem vida, como é tudo o que envolve o mundo dos seres vivos.
A natureza de algo é a sua verdade, a sua essência, a sua disposição inata.
A partir de múltiplos algoritmos não se atinge o que permanece tal como surgiu sem sequer ter tido a ajuda dos seres humanos.
Parte-se de uma ideia profunda de mundo anterior à própria existência de ordem humana.
Partilhar laços e o seu balanceio com o sensível, ter consciência da sua própria existência evolutivamente, da sua própria finitude, é algo que só existe nos humanos.
Lembremo-nos também que planta, fungo, bactéria, animal, estão sujeitos à lei da biologia e da sobrevivência e pedem sombra, sol, sossego e sono.
A célula é a menor unidade de vida e mesmo sozinha forma um ser vivo, um organismo unicelular e em grupo formam organismos pluricelulares como animais e plantas.
Ora, aquilo que é entendido por Aprendizado de Máquina (uma das capacidades da IA que possibilita aos softwares usarem inputs humanos para “aprender”), fundamenta-se no que estimula o funcionamento do cérebro humano, mas aplicando ferramentas computacionais, o que quererá dizer que a IA evolui a partir de algoritmos que “aprendem” as preferências dos usuários, e se combinam para fazerem sugestões mais precisas ao solicitado.
Mas estamos perante formas mecânicas que se não comparam nunca às formas de expressão humana qual pasmosa distância de um querer de um Deus, como o oásis.
Na verdade, sem a presença física de um ser humano, o sistema de um carro pode memorizar - através de ordens nele incorporadas - direções e trajetos o que não determina a exclusão de humanos do melhorar desta função, e sobretudo a IA teria de ser bem mais complexa e precisa do que a praticada pelos humanos para que estes nela possam confiar.
Boris Eldagsen em 2023 ganhou um prémio de um concurso internacional de fotografia gerada por IA.
Eldagsen abdicou do prémio divulgando que a foto tinha sido gerada por um algoritmo, admitindo que essa forma não é comparável à do uso das máquinas fotográficas que não constituem trabalhos derivativos de obras anteriores, e que este método não gera arte, não obstante ser possível nesta fotografia adivinhar-se um vínculo entre estas mulheres, ou a melhor prova de que processos repetitivos geram aparências.
De lembrar que quando surgiu a fotografia ela não liquidou a pintura, e se se entender que o melhor uso da IA origina muito mais do que modificações de incrementos de múltiplas obras, tal não finda com outras formas de arte, mesmo que a da IA venha a ser a ser considerada uma forma de arte.
Certamente a inteligência artificial se irá tornar cada vez mais valiosa para o mundo e melhorará muitas eficiências e irá dar muitos passos muito além, e até já originou um DNA sintético de pessoas inexistentes, o que até leva a que esta ferramenta de pesquisa de geneticistas, possa fazer experimentação sem se comprometer a ética científica ou a vida de pessoas reais.
Todavia, a inteligência humana é um processo multifacetado e ainda muitíssimo desconhecido, que envolve mudanças biológicas, sociais, culturais e cognitivas.
A inteligência humana continua a desenvolver-se à medida que enfrentamos desafios e oportunidades como espécie.
De recordar que Humberto Maturana e Pille Bunnell afirmaram que o único sentimento que amplia a visão e expande a inteligência é o amor.
A inteligência humana não se compraz com um estado ter o limite de apenas poder ser verdadeiro ou falso.
A inteligência humana não funciona deste modo nem se baliza pela lógica booleana.
A inteligência humana para um mesmo problema acede a múltiplas variações em consciência, em perceção, em intuição, em previsão e em outras competências, e não é binária.
Mas há um reino que pela sua capacidade para combinar dados invisíveis ao nosso “olhar”, interage connosco de tal modo que nos surpreende o não distinguirmos, se o que nos espanta nos chegou ou não de uma máquina.
Pode-se então dizer que a IA combina dados de modo imprevisível não se limitando a meras colagens, revolucionando positivamente muitíssimas áreas, tal como a da medicina e dentro desta a da imagiologia particularmente, tornando-a muito mais eficiente, precisa e acessível.
A IA surge assim como uma nova razão.
Mas na IA não se paga o tempo do pensar humano.
Tudo deve ser rápido, produtivo e barato e justificador da extinção de milhões e milhões de empregos e profissões, e que as máquinas possam até disputar novos espaços recorrendo à arte convencional.
No curto prazo, a capacidade de adaptação preenche o tempo de novas profissões surgirem, mas apenas no curtíssimo prazo esta adaptabilidade terá cadeira e assento. A medida do tempo é agora diverso e implica diferentes estabilidades.
Caberá aos engenheiros de prompt, cruciais no estímulo das máquinas, obterem da IA as respostas mais precisas; caber-lhes-á o serem capazes de desempenhar as funções de “DJ” ao escolherem as melhores “músicas” (ou prompts) para que a IA possa tocar cada vez melhor a fim de que a sofisticação da resposta da IA seja cada vez mais eficaz.
E que realidade conduzirá ao fim da humanidade tal como a conhecemos?
Quem sobrevive à criação de paradigmas inerentes à criatividade?
Qual civilização se sucede e o que a fará evoluir? Que valores como espécie?
Estou convicta de que a IA já transformou a forma como vivemos, já transformou a garantia de como vivemos esse viver.
Afinal, não há padrões absolutos de beleza: ser bonito é relativo. Hoje, procura-se a elegância até aos limites da anorexia. Mas nalgumas aldeias do interior ainda hoje os mais antigos dirão a uma pessoa jovem mais corpulenta vinda da cidade: “Como está bonita!”... Segundo o dito: gordura é formosura. É que, tradicionalmente, não era necessário cultivar a elegância, pois a carestia, o trabalho braçal duro e a miséria encarregavam-se de impor a magreza por vezes esquelética. Cá está: os gordos, em princípio, eram ricos. Nesses tempos também, a maioria das pessoas trabalhava nos campos, de sol a sol: a pele era fatalmente tisnada. Por isso mesmo, a beleza andava associada à pele branca. Ficaram famosos os banhos com leite de burra na antiga Roma. A alvura da pele significava ser senhor, estar em casa, não precisar de trabalhar no campo...
Depois, com a revolução industrial, a maioria começou a trabalhar em grandes fábricas e escritórios, longe do sol. Por isso, dominava a pele branca. A pele bronzeada tinha então agora a ver com férias e a possibilidade de viajar...
Na base destes comportamentos e critérios está o impulso de marcar a diferença e impor-se aos outros. É daí que surge também a importância dada à marca do carro, ao tipo de cartão de crédito, ao modelo do telemóvel... Mesmo as crianças exigem vestir segundo a marca a, b ou c, a ponto de um miúdo se ter virado para os pais que não podiam comprar roupa de marca: era preferível ter tido outros pais mais ricos...
Também já não se escolhe o local de férias tanto em função do descanso, da tranquilidade, do repouso, da cultura, como da publicidade, da moda, do poder contar aos amigos, aos vizinhos, aos colegas de trabalho, deslumbrando-os..., a ponto de a oração mais frequente antes de se partir para férias ser: Senhor, que, quando regressarmos, encontremos alguém disponível para contemplar as fotografias e os vídeos que fizermos!...
É preciso parecer e aparecer. Corremos até o risco de nos afundarmos numa civilização do aparecer e do parecer, que já não procura o sentido da autenticidade da existência...
A filosofia nasceu da necessidade constitutiva do ser humano de distinguir entre a opinião e a verdade, entre o parecer e o ser, entre a aparência e a realidade. O que é a realidade verdadeira? Também a religião só se compreende na medida em que se confronta não com aparências, mas com a realidade e a verdade. Por exemplo, os místicos sempre perceberam que a realidade mais profunda, eterna, não se confunde de modo nenhum com o banal, a superfície das coisas: o visível é a visibilidade do invisível e é lá no invisível que se encontra o verdadeiro, o bem, o belo, a eternidade e o que salva. Por isso, Jesus preveniu: “De que vale ao Homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida?”. Como disse também recentemente numa entrevista à “Visão” o best-seller Yuval Noah Harari, somos indomáveis, porque “por um lado somos mais poderosos do que qualquer outro animal do mundo, por outro, isso também tem que ver com o facto de sermos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós, e a todo o ecossistema.”
Hoje desconfia-se da razão e da possibilidade de alcançar a verdade: estamos, mais uma vez, sob o comando da banalidade e a ameaça do relativismo céptico e da retórica sofística, em que o decisivo já não é a verdade e o bem, mas o êxito a qualquer preço, a conquista a todo o custo do dinheiro, do prazer, da fama, a procura desenfreada do poder, da notoriedade, do triunfo social e mediático: quem não aparece não existe. E não se teoriza até sobre a pós-verdade? Ah! E as redes sociais!... e o constante dedar... E, assim, como encontrar a verdade? Na vertigem do dedar, um diz uma coisa, outro diz o seu contrário, o terceiro nem uma coisa nem outra... Mais: hoje estão aí, cada vez mais gigantescos, o poder e a ameaça da Inteligência Artificial. De facto, numa conversa online, já começa a não se poder ter a certeza de que do outro lado se encontra outro ser humano ou um bot. Os perigos são tantos e de tal grandeza que investigadores, incluindo criadores eles próprios da Inteligência Artificial, estão a chamar a atenção para o perigo do fim da civilização humana, pedindo, por isso, uma moratória nos avanços desta tecnologia. O linguista Noam Chomsky advertiu: “É o ataque mais radical” ao pensamento, à inteligência. De novo Harari: a IA “é uma bomba atómica para a política”, que pode acabar com a democracia. O Papa Francisco, representantes do G7 e a União Europeia esperam encontrar, antes que seja tarde, acordos para travar perigos e ameaças incontroláveis.
Pelo caminho da vulgaridade, da falta da busca da verdade, com a ameaça nuclear e ecológica, pondo fim ao humanismo, o que vai restar? Afinal, o que queremos? Não precisaremos de parar, reflectir, para podermos ir ao encontro do essencial? E onde se encontrará o essencial?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 de junho de 2023
A morte como passagem para outra dimensão, da vida depois da morte, tem tido por base, sobretudo, conceções religiosas, onde sobressai a imortalidade da alma.
No nosso tempo, cada vez mais, é através da tecnologia que se tenta transcender a morte biológica. Hologramas, sobrevivência eterna via morte digital, imortalidade virtual através de um scan cerebral, inteligência artificial, retardamento do envelhecimento, eis um desejo obstinado do Homo Sapiens de defrontar o que é dado como eterno e desafiar o infinito.
Prevê-se que o ser humano perdure, a breve trecho, com qualidade de vida, até aos 120, 150 anos, requerendo a sua continuação, a partir daí, a suspensão do envelhecimento celular, havendo empresas e laboratórios de biotecnologia especializadas em técnicas de regeneração intuindo-se que, um dia, possa adquirir-se a fórmula da imortalidade, quiçá num hipermercado.
Celebridades, intérpretes, pessoas renascidas e ressuscitadas em conversas, atuações e viagens virtuais (por vezes substituídas por avatares), em hologramas.
Imortalidade virtual, via transição de um ser humano para um cyborg, em que o pensamento se produz por chips e não por neurónios, com a ajuda de um scan cerebral e transferência do resultado para um computador, ou substituindo partes do cérebro por chips.
Morte digital, em que aos inscritos é garantida a eterna sobrevivência, por um processo desmaterializado e de espetros digitais, de uma identidade eletrónica, uma realidade virtual do que foi a pessoa na vida real, após análise por um software ao património digital e pessoal acumulado durante a vivência dos interessados.
Inteligência artificial que recupera a voz de pessoas finadas reproduzidas por uma assistente virtual, simulações de conversas entre mortos e vivos, algoritmos que inventariam e recopilam toda a parafernália deixada pelo defunto nas redes sociais.
Há um perfil virtual que sobrevive autonomamente ao corpo biológico, uma nova indústria e concetualização da morte, tentando-a remover do mundo que habitamos numa tentativa fixa e obsessiva de preencher ausências, o estar só, de transcender a morte biológica.
Eis um Homo Sapiens arrojado, ousado e provocador, a querer transmutar-se em Homo Deus, através de instrumentos - como a web, computadores e a Internet-de-Todas-as-Coisas (the-Internet-of-All-Things) - que não permitem decifrar e prever mistérios, como o da morte e da recente e rápida propagação da pandemia, com a agravante de que os algoritmos não possuem nem consciência, espírito ou sentimentos.