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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

TUDO E TODOS INTERLIGADOS. 2

 

4. Continuando a reflexão sobre a interligação de tudo e de todos, perguntamos: E para onde vamos? Sobretudo: Para onde queremos ir? Que futuro?


Face ao futuro, é essencial pensar. E voltamos à escola, que vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a pólis, (daí vem política):  a Cidade, isto é, a Casa comum da Humanidade. Hoje o que mais falta é precisamente este ócio. Ora, sem ele, tudo se torna negócio (do latim nec-otium). A própria política tornou-se sobretudo negócio(s). Assim, sob o império da técnica e do(s) negócio(s), não se pensa, calcula-se: o filósofo M. Heidegger chamou a atenção para isso: a técnica não pensa, calcula, o mesmo valendo para os negócios.


5. Olhando para o futuro, o que nos vincula é a esperança. Mas, mais uma vez, não há esperança autêntica sem pensamento. Quando olhamos para o futuro, encontramos evidentemente, motivos para imensa satisfação — voltando à pandemia, não temos de agradecer à ciência, pois, para dar um exemplo, nunca se tinha conseguido tão rapidamente uma vacina, e foi por causa das novas tecnologias que pudemos continuar, apesar de tudo, com mais ligação nos diversos niveis e facetas da vida? —, mas é preciso tomar consciência também das ameaças e dos perigos, que são gigantescos e globais. Há problemas de tremenda complexidade, já presentes e que se agravarão. Apenas exemplos: a guerra nuclear; a ecologia e as alterações climáticas; guerras digitais; as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências) na sua ambiguidade, pois há novas possibilidades mas também perigos: frente às possibilidades do transhumanismo e do pós-humanismo, é preciso reflectir sobre o que verdadeiramente queremos; úteros artificiais e seus problemas; bebés transgénicos, experiências com híbridos; questões relacionadas com o inverno da natalidade, nomeadamente na Europa (em Portugal, será uma catástrofe), os mercados globais, a injustiça estrutrutural global, as migrações forçadas e anárquicas, as lutas tecno-económico-políticas pela supremacia global, o trabalho, as drogas, a paz, os direitos humanos… Vivemos num mundo global, estes problemas são globais e a questão é que a política é nacional, quando muito regional, com Governos que governam a curto prazo para ganhar eleições, mas estes problemas são globais e exigem uma solução a longo prazo… Não precisamos, portanto, de erguer uma Governança global? Não digo Governo mundial, mas Governança global, já que os problemas enunciados só com decisões ético-jurídico-políticas globais poderão encontrar solução.


Neste contexto, é necessário contar com o apoio da Igreja. A Igreja Católica é a única instituição verdadeiramente mundial, presente em todo o mundo e em todos os estratos sociais. Com a renovação em curso, segundo o Evangelho de Jesus, que implica também uma reforma radical da Cúria, e com uma orgânica nova de governo, a sinodal, pode-se e deve-se pensar e contar com o seu contributo decisivo enquanto voz político-moral tanto localmente como ao nível regional e global. Evidentemente, por si mesma e também em ligação com as outras Igrejas cristãs e com as diferentes religiões mundiais, com as quais continuará a empenhar-se num diálogo vivo e lúcido, segundo as exigências que o diálogo autêntico exige e que não pode ser unidireccional.  


E qual é o Sentido último de todos e de tudo? Problema maior hoje: há hoje uma espécie de cansaço vital. Porque não há Sentido ultimo. Daí, nem é no desespero que se vive, mas na inesperança. Só com Deus enquanto o “Futuro Absoluto”, na expressão célbre do teólogo Karl Ranher, talvez o maior teólogo católico do século XX, se pode erguer um futuro autenticamente humano, com Sentido final, pois Deus é o Futuro de todos os  passados, o Futuro de todos os presentes, o Futuro de todos os futuros.


6. No fim, voltamos ao princípio, por outras palavras, é imprescindível voltar a cada um, a cada uma, começar por si próprio, por si própria. E aí está a relação de cada um, de cada uma consigo mesmo, consigo mesma. A Humanidade é constituída por pessoas, em ligação com tudo e com todos, mas únicas.


Cada um precisa de ter uma relação boa consigo, portanto, com o seu passado. Afinal, o presente já foi, no passado, um sonho de futuro(s): é sempre no presente que vivemos, mas relacionados com o passado. Olhando para o passado, talvez não fiquemos satisfeitos, pois houve erros, disparates, sei lá!, e então é preciso é reconciliar-se com ele para que não continue a envenenar-nos — nisto, o crente sabe que deve contar com Deus: Ele entende e perdoa. No presente, é preciso pensar no futuro, já que o presente é inevitavelmente voltado para as possibilidades futuras: que futuro projectamos, que queremos para o futuro, sabendo concretamente que, pensando nele, inevitavelmente deparamos com a morte? Colocando-me na perspeciva do fim — também a história individual só a partir do fim se pode ler toda —, que quero, no fim, ter feito de mim, em ligação com os outros? De tal modo que possa esperar, sem ilusões, que a morte não tem a última palavra. Como disse I. Kant de forma lapidar: “A praxis tem de ser tal que não se possa pensar que não existe um Além”.


P.S.: Uma arreliadora gralha no texto da semana passada fez aparecer o Big Bang há 3.700 milhões de anos em vez de há 13.700 milhões de anos. Peço desculpa.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 MAIO 2021

TUDO E TODOS INTERLIGADOS. 1


Se algo se nos impôs de modo claro, com esta terrível pandemia, é que tudo e todos estamos interligados.


1. Constatámos que nos contagiamos uns aos outros, de tal modo que até foi e, por vezes, ainda é (por quanto tempo?), necessário desviarmo-nos uns dos outros, usar máscara, ficar confinados. Percebemos que precisamos de nos proteger uns aos outros: ou nos salvamos juntos ou podemos perder-nos todos. Aí está o exemplo das vacinas: basta um pouco de egoísmo esclarecido, para se perceber que elas têm de ser distribuídas por todos, pois enquanto houver alguém não vacinado no mundo a ameaça continua e tanto mais grave quanto irão surgindo variantes do vírus…


2. Cada uma de nós, cada um de nós é ela, é ele, único, única (cada uma, cada um diz “eu” como mais ninguém pode ou pôde alguma vez dizer). O enigma, o milagre espantoso do eu, ser autoconciente, consciente de si, alguém como nunca houve outro ou outra!


Será que deste modo se está a afirmar o individualismo? De modo nenhum. Porque cada um de nós é um eu único, mas sempre na relação constituinte. Uma das características essenciais que nos distinguem dos outros animais é a neotenia (nascemos prematuros), que faz com que, vindos ao mundo por fazer, tenhamos de fazer-nos. O que andamos a fazer na vida? A fazer-nos, a partir de outros e uns com os outros. Quando olhamos para a neotenia, temos de concluir: ou a natureza foi madrasta para nós e não nos deu o que devia dar, como fez com os outros animais, ou esta é a condição de possibilidade de sermos o que somos: humanos, tendo de receber por cultura e produzindo cultura o que a natura nos não deu, sendo inventivos, criando o novo. Esta é, por um lado, a experiência da liberdade — somos dados a nós mesmos, com a responsabilidade de nos fazermos — e , por outro, a experiência radical da alteridade: sou eu com o outro, que também é um eu, mas um eu que não sou eu, um eu outro. E fazemo-nos uns aos outros e sempre com outros. Aliás, com esta pergunta tremenda: se eu tivesse encontrado na vida outras pessoas, se tivesse frequentado outras escolas, lido outros livros, feito outras viagens…, seria eu? Sim, seria eu mas de outro modo (idem sed aliter).


Temos uma herança genética (aquele óvulo que foi fecundado por aquele espermatozóide) e uma herança cultural. E, viajando para trás na história tanto genética como cultural, as relações são in-findas. Encontramos os pais, os avós, os bisavós, os trisavós, os tetraavós…, por sua vez com relações e vínculos infindáveis…, e não é difícil concluir que poderíamos pura e simplesemnte não existir. É um milagre existir precisamente “eu”. Do ponto de vista cultural: estou a escrever e, se reflectir, constato que isso é possível porque há os que me ensinaram as primeiras letras, e a juntá-las, e a ler, e a lingua portuguesa (que eu não inventei…), em relação e contacto com outras línguas (o que seria a língua portuguesa sem o latim?), encontro professores e mestres, que connheci, mas também os que não conhecei, mas foram eles que ensinaram estes meus mestres, e os que escreveram livros que eu li, que, por sua vez, não existiriam, se o seus autores não tivessem tido  contacto com outros autores e outros livros… idefinidamente… O que seria eu, quem seria eu sem todos aqueles e aquelas que entraram na minha vida sem eles saberem nem mesmo eu… Ah, e eu não sei fazer automóveis nem computadores, nem telefones, nem cultivo nada do que me alimenta, que vem de tantas partes do mundo e resulta do trabalho concertado de tantos e de tantas por esse mundo além!…


Afinal, o que somos uns sem os outros, os conhecidos e aqueles e aquelas — constituem incomensuralvelemnte a maior parte, a quase totalidade — que não conhecemos? Somos e estamos interligaods por vínculos indesmentíveis, sem os quais não seríamos, precisando de tirar dessa constatação as devidas consequências… Temos uma dívida universal…


3. E somos, vindos de uma história gigantesca: a evolução, desde o Big Bang, há 3.700 milhões de anos. E deu-se a expansão do Universo. E a Terra terá uns 5.000 milhões de anos. E não havia vida e apareceu a vida há uns 4.000 milhões de anos, e a vida foi-se expandindo e complexificando… Muito lentamente foram surgindo os hominídeos, veio o sapiens e depois, há uns 200-150 mil anos, o sapiens sapiens…, sendo necessário acrescentar: sapiens sapiens (sapiente sapiente) e ao mesmo tempo demens demens (demente demente)…


Aparecemos inseridos neste processo gigantesco, fazemos parte da Terra, a nossa casa comum, num vínculo indestrutível. Ela está ferida e grita. Como vamos tratá-la? É a casa de nós todos, da Humanidade inteira e ou cuidamos dela todos ou não há futuro…


Mas olhemos para a História propriamente dita da Humanidade, a que se inaugura com o sapiens sapiens. Que encontramos? O melhor e o pior, a mais heróica grandeza e a mais vil baixeza, santos e pecadores, progressos e regressões, heróis e cobardes, inventores e traidores, impérios contra impérios e rios de sangue…, migrações e encontros e desencontros entre povos, culturas e civilizações… E cada povo precisa de assumir a sua história, sem negá-la, porque a memória faz parte da identidade, e os erros não se resolvem derrubando estátuas nem autoflagelando-se, mas recolhendo os melhores ensinamentos…, para evitar mais erros


4. Aqui chegados, também perguntamos: Porque houve o Big Bang e não nada? E: Que futuro? Para onde queremos ir? Há um Sentido último? (Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 MAIO 2021