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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


134. A IMPERFEIÇÃO DA RAPOSA E A PERFEIÇÃO DO OURIÇO


Em “O Ouriço e a Raposa - Ensaio sobre a Visão da História de Tolstói”, escreve Isaiah Berlin:


“O sentido omnipresente dessa estrutura (…) algo “inexorável”, universal, penetrante, não alterável por nós, fora do alcance do nosso poder (…), é o que está na origem do determinismo de Tolstói, e (…) do seu realismo (…). Está “lá” - o sistema, a fundação de tudo - e só o homem sábio tem noção dele (…) Tolstói sabe que a verdade está lá, e não “aqui”: não nas regiões suscetíveis de observação, discriminação, imaginação construtiva, não no poder de perceção microscópica e da análise, (…). Mas Tolstói não a viu cara a cara, porque não tem, faça o que fizer, uma visão do todo; não é, está longe de ser, um ouriço; e o que vê não é o um, mas sempre, com uma minuciosidade sempre crescente, com uma lucidez obsessiva, inescapável, incorruptível, totalmente incisiva que o enlouquece, o muitos”
(sublinhado nosso).   


Embora ansiasse por um princípio explicativo universal, Tolstói não o conseguiu,  sendo mais uma “raposa” que um “ouriço”, apesar de o seu drama consistir em ser naturalmente uma “raposa”, desejando ser um “ouriço”, segundo Berlin.


Tendo em atenção a divisão de IB, de artistas e intelectuais, entre raposas e ouriços, ele próprio é uma “raposa”, porque defensor do pluralismo axiológico, tendo-o como vital e inevitável, como um princípio democrático que possibilita a coexistência pacífica de vários interesses, opiniões e tolerâncias em prol do bem comum, entre valores não reconduzidos a uma única hierarquia, por serem múltiplos e nem sempre compatíveis entre si.     


Esta metáfora canónica e estandardizada de ouriços e raposas - na aparente inocência de que a raposa é dispersa e sem uma visão unificadora, e o ouriço organizado e previsível, só tendo espinhos para se defender - tem consequências a vários níveis, incluindo construções utópicas, sobre que Berlin se pronunciou. 


Para IB, falar de utopia é falarmos de um estado perfeito, onde os valores maiores da existência humana têm a sua máxima expressão, como a liberdade, igualdade, justiça e direitos humanos.


Esse mundo nunca existiu, nem existe, é uma ilusão, não só por razões empíricas e pela imperfeição humana, mas ainda porque são múltiplos e nem sempre compatíveis entre si, sendo inviável uma liberdade, igualdade ou justiça total, apenas alguma, dado que a liberdade plena dos lobos significa a morte dos carneiros e ovelhas.   


Resta ser imperioso escolher, nem sempre fácil e onde há uma perda real, tal como nas nossas vidas não é possível ter tudo, aceitando uns valores, conciliando-os ou excluindo outros. 


Daí que as “raposas” tenham vantagens sobre os “ouriços” ao aceitarem a imperfeição, a diversidade, aceitando a perda, terem afeições livres e interesses vastos, garantindo a maior felicidade possível com esses interesses e afetos, tornando-os objeto de interesse e afeição para outros, agarrando mais de perto a natureza (imperfeita) humana.   


Os ouriços, calculáveis, corretos, cordatos, querendo simplificar questões complexas transformando-as num princípio orientador, numa visão do todo que organiza e unifica tudo o que fazem, procuram impor a perfeição, uma ideia redentora que salva, quais mensageiros, donos, messias ou tiranos da verdade.


O que não exclui, em qualquer caso, maior exigência e a possibilidade de sermos melhores. 


24.03.23
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


133. O OURIÇO MONISTA E A RAPOSA PLURALISTA


Arquílico, antigo poeta grego, escreveu: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe apenas uma grande coisa”, metáfora que abre o livro “O Ouriço e a Raposa - Ensaio sobre a Visão da História de Tolstói”, de Isaiah Berlin.   


Impactante pela sua simplicidade, eficácia e representação, há várias interpretações sobre o seu significado, indiciando-se que agarra mais de perto o seu fim a de que a raposa, apesar de toda a astúcia, malícia e manhas, desiste de ferir e trespassar o ouriço, pelo único e definitivo recurso de defesa que ele tem: os espinhos.


Em sentido figurado, divide-se os humanos entre ouriços e raposas: os primeiros, de ideias centrípetas, são associados a uma visão central e única, a um só princípio organizador universal, procurando explicar a diversidade do mundo por referência a um sistema monista, a partir do qual se compreende, pensa e sente; os segundos, de ideias centrífugas, pensamento difuso e disperso, são pluralistas, sabem que há vários fins, nem sempre compatíveis entre si, apreendendo-se a essência de uma heterogeneidade de experiências e objetos, sem se determinarem por uma visão dominante e essencial, onde a variedade do mundo não valida um só sistema explicativo.


Esta categorização ampla de uma procura de saberes abrangentes e uma visão global do mundo (raposas), de uma grande coisa que dê unidade formal à nossa realidade para nos reconciliarmos com o universo (ouriços), mesmo que redutora e simplista, se bem contextualizada, pode servir de guia e meio instrumental a nível ideológico, político, empresarial, intelectual e outros.


Para Isaiah Berlin, por exemplo, são “ouriços” Platão, Dante, Pascal, Hegel, Dostoévski, Marx, Nietzsche, Ibsen e Proust. Heródoto, Aristóteles, Shakespeare, Montaigne, Erasmo, Molière, Goethe, Púchkin, Balzac e Joyce são “raposas”. 


Entre nós, referimos o padre António Vieira, Antero de Quental e Teixeira de Pascoaes como “ouriços”, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e Eduardo Lourenço como “raposas”.


Ao dividir os intelectuais entre ouriços e raposas, acabou por criar dois tipos de personalidade distintivos presentes na história intelectual do Ocidente, que pode ser extensiva e adaptada a outras grupos, como a separação entre platónicos e aristotélicos, autocracia, ditadura, totalitarismo e democracia, pluralismo, liberalismo, especialistas e generalistas, tudo indiciando encaminhar-se, perante esta dicotomia, que uma liderança financeira ou empresarial de sucesso cabe preferencialmente aos “ouriços”. 


Também há os que são naturalmente raposas e acreditam ser ouriços, e o inverso, exemplificando-o Isaiah Berlin com Tolstói que, segundo ele, foi “por natureza uma raposa, mas por convicção um ouriço”.   


Quem é mais feliz?


Em face das consequências de um pensar aparentemente inócuo, há que viver, interrogando-nos e conciliando-nos, o que será tema vindouro.


17.03.23
Joaquim M. M. Patrício