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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 25 a 31 de dezembro de 2023

 

“A Bíblia Tinha Mesmo Razão?” de Francisco Martins, S.J., publicado por Temas e Debates, constitui um precioso e fundamental roteiro sobre os grandes marcos do Antigo Testamento.

 

a biblia tinha razao.png

 

A PRUDENTE INTERROGAÇÃO

As histórias de Israel e Israel na História levam-nos à investigação de um competente jesuíta que permite uma análise cuidada sobre a verosimilhança dos acontecimentos fundamentais do Antigo Testamento. Em 1955, o jornalista e ensaísta alemão Werner Keller escreveu uma obra que deu brado. Referimo-nos a “E a Bíblia tinha razão”, livro que se propunha mostrar que as descobertas arqueológicas disponíveis confirmavam a veracidade dos relatos bíblicos. O que muitos consideravam mito, lenda ou referência ilusória tinha acontecido de facto, e era possível prová-lo cientificamente. E assim a conquista de Canaã, relatada no livro de Josué, ou a fundação do reino de David, a quem sucederia Salomão, segundo os livros de Samuel e dos Reis, corresponderiam a acontecimentos cuja memória podíamos confirmar com provas históricas. O mesmo afirmava Keller relativamente ao dilúvio universal, relatado no Genesis, às dez pragas do Egipto, referidas no Livro do Êxodo, ou no surgimento do Maná do deserto… Importaria encontrar indícios naturais que pudessem confirmar a memória longínqua desses acontecimentos, como a ocorrência de uma grande inundação na foz do rio Eufrates ocorrida cerca de 4000 antes de Cristo, cujas marcas eram encontráveis, ou a decisão do Faraó de deixar partir o povo judeu, o que só poderia explicar-se sob o efeito de uma ameaça sem dúvida avassaladora. Já quanto ao Maná do deserto, Keller encontrou como explicação as secreções de um inseto-escama que se alimenta da seiva dos tamariscos… A partir desta obra, Francisco Martins S.J., professor de literatura bíblica na Universidade Pontifícia Gregoriana de Roma, apresenta-nos uma investigação que, segundo um método diferente, transformou a afirmação de Werner Keller numa pergunta, procurando investigar o que podemos saber sobre a história do povo judeu, que nos legou na Bíblia o relato do que o marcou e lhe deu uma identidade própria. Urge, assim, responder às perguntas que devem animar um estudo sério sobre o tema, desde as condições sociais que promoveram o surgimento da realidade coletiva, até à compreensão de como se afirmou a expressão política dessa identidade, nos séculos que correspondem ao período do Antigo Testamento. Trata-se, no fundo, de compreender melhor, corrigindo anacronismos e sem forçar os acontecimentos, qual a relação entre a Bíblia e a História. Foi esse o caminho seguido pelo investigador, e o certo é que os leitores são largamente beneficiários de tal método e da atitude crítica.

 

UMA ATITUDE CRÍTICA

Em vez de responder sim ou não à pergunta do título, o que empobreceria a nossa compreensão sobre o perfil e o horizonte da literatura bem como sobre a reconstrução histórica, deveria partir-se do texto bíblico para uma análise crítica das circunstâncias do mesmo. Podemos compreender, assim, a linha do tempo que ela acompanha. Daí explicar-se que Frei Bento Domingues, O.P. tenha afirmado ser este livro o melhor dos presentes de Natal. Seguindo um caminho cronológico, deparamo-nos com o período das origens, desde Abraão até à época dos Asmoneus; depois estão em causa os relatos patriarcais e as dúvidas sobre quais as razões para o caráter tardio das composições literárias sobre os patriarcas, com forte risco de anacronismo e mistérios por resolver. “Envoltas em ‘roupagem’ literária do primeiro milénio a. C., as histórias de Abraão, Isaac, Jacob-Israel e seus descendentes (Gn 12-50) e a épica libertação do Egipto (Ex 1-15) preservam muito provavelmente o ‘eco’ de figuras e eventos mais remotos, mas subtraem-nos os contornos históricos concretos em nome da reelaboração que as transformou em relato fundacional”. Por exemplo, no relato sobre o papel desempenhado por José junto de um Faraó, não encontramos confirmação na história das fontes egípcias. Após o Êxodo do Egipto, encontramos a emergência do monoteísmo, a importância de Yahvé – sendo que o seu culto exclusivo e a proclamação da unicidade divina resultaram de um longo processo histórico que não culminou senão depois do exílio. No caso do surgimento de Israel e da terra de Canaã, sentimos o contraste entre os livros de Josué e dos Juízes e a procura de um síntese harmoniosa. No caso da controvérsia sobre o início da monarquia (século X a. C.) e sobre as figuras de Saul, David e Salomão podemos, por isso, explorar os limites da reconstrução histórica, perante a dificuldade de emitir juízos seguros sobre esse tempo. Perante a “história normal” dos reinos de Israel e Judá, há condições para uma maior certeza histórica. E assim os escritores sagrados construiram narrativas nas quais os acontecimentos históricos são pretexto para mostrar a relevância teológica do que acontece na História.

 

A GÉNESE DO JUDAÍSMO

O Reino de Judá chegará ao fim dos seus dias pela captura da cidade de Jerusalém em 586 a. C. e pelo início do exílio em Babilónia. É o livro de Jeremias que nos dá o ambiente no interior da cidade sitiada e os sinais de resistência. Nabucodonosor ordena destruição da cidade. Mas ao sucesso segue-se a queda do império babilónico, a que sucede a conquista do rei Ciro da Pérsia, que muda a sorte dos exilados na Babilónia. O período persa permite o regresso do povo e a reconstrução do Templo de Jerusalém, a reedificação das muralhas de Jerusalém e o início da escrita da Bíblia ou proclamação da Torá – o Pentateuco, considerado como lei local. O nome “judeu” ganha, assim, dois significados – ou designa o indivíduo natural ou com uma ligação histórica ao reino de Judá ou à Judeia, ou corresponde a quem professa a religião judaica. Os séculos VI e V a. C. são o período charneira para o surgimento da Bíblia e assim se passa do Yahvismo (o povo escolhido por Deus) para o judaísmo, baseado no “código dos códigos” da cultura ocidental, sendo a Bíblia, motivada pelo trauma do exílio. E deste modo o “livro”, mais do que a “terra”, adquire o estatuto de pátria e de “religião”. E o período persa e o período helenístico, sob o domínio macedónio, abriram um novo horizonte que será, nos séculos seguintes, enriquecido pelo cristianismo…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Para nos ajudar na reflexão sobre esta problemática da legitimação de Jerusalém como capital do presente estado de Israel, isto é, com a dimensão territorial e histórica que lhe pretendem atribuir, tantas vezes ao arrepio dos direitos internacional e humano, traduzo-te (da edição francesa do Courrier International, da primeira semana deste fevereiro) passos dum trecho de artigo originalmente publicado (a 23 de janeiro) no Maariv de Tel Aviv e assinado pelo israelita Ben Caspit:

 

   Ao pronunciar o seu discurso diante da Knesset [a 22 de janeiro], Mike Pence inundou-nos de louvores e de beijos, de apaixonadas declarações de amor. Nada fingido, bastava ver o seu olhar determinado. O discurso era quase perfeito. O seu amor por esta terra está cheio de admiração por Israel, o povo judeu, a santidade do país de Israel, e mais não digo. Mesmo Netanyahu, o rei do género, não poderia ter feito melhor, e eis sem dúvida o maior elogio que podemos fazer a Mike Pence, sem ironia.

 

   Pence parece, à primeira vista, um homem político americano clássico. Cabelos brancos bem penteados, fato de bom corte, palavra fluida e carisma tranquilo. Pence pronunciou um discurso impressionante, cheio de referências e inovações. Marcou para o fim de 2019 a data limite da transferência da embaixada americana para Jerusalém. Confirmou que se o acordo sobre o nuclear iraniano não fosse corrigido pelas partes envolvidas, os Estados Unidos dele se retirariam unilateralmente. Repetiu que Israel é o aliado mais essencial da América.

 

   Mike Pence é a incarnação dos sonhos da direita israelita em geral e de Netanyahu em particular. Contrariamente ao atual presidente americano, caprichoso e imprevisível, Pence é um homem calmo e piedoso. Ao pronunciar um discurso em que pesou bem cada palavra, deu-nos essa massagem tailandesa com fundo de música apaziguadora.

 

   O amor de Pence pelo povo de Israel e os judeus mergulha as raízes nas suas convicções evangélicas. Segundo a fé evangélica, quando vierem a Redenção e o Messias (entenda-se: Cristo) todos os judeus se reunirão em Israel e se converterão imediatamente ao cristianismo. Mesmo que pensemos que esse dia nunca chegará, é bom sabê-lo, já que, nos Estados Unidos, há 60 milhões de sionistas em potência, evangélicos que se supõe estarem enamorados de nós até ao fim dos tempos...

 

   ... Mas não são as apaixonadas declarações de Mike Pence em Jerusalém que nos ajudarão a resolver o nosso conflito com os Palestinos. Quando formos grandes, caber-nos-á decidir o que queremos ser, definir, de uma vez por todas, as fronteiras do nosso Estado. É pena não ser possível substituir todos esses Árabes por cristãos evangélicos que acreditam na vinda de um Redentor a Sião. Ainda que talvez fosse preferível que esse Messias nunca viesse, porque teríamos então de nos converter ao cristianismo!

 

   Não conheço o senhor Ben Caspit, não sei que juízo fazer das sua palavras. Mas sei que, para o movimento sionista, com motivação religiosa e escatológica, o regresso a Sião (que significa a terra de Israel (Eretz Israel) e Jerusalém, o regresso do «Povo Eleito» a esse lugar histórico-teológico é condição sine qua non da vinda do Messias, pelo que a reivindicação do poder absoluto do estado de Israel sobre a «Terra Santa» é assim fundamentada politicamente... Ou sê-lo-á teocraticamente, sem qualquer fundamento no direito internacional, que é, este sim, o direito positivo das gentes? Pessoalmente -  e não sendo eu próprio judeu, mas tendo muitos amigos que, com ou sem religião, se reclamam do judaísmo -  gostaria de poder dar a uma declaração de Theodor Hertzl, fundador do sionismo, uma interpretação rigorosamente política e respeitadora do Direito, tal como o entendemos na definição de justiça dada por Ulpiano, jurista romano, que tantas vezes, Princesa, já te citei: Justitia est jus suum cuique tribuendi. Quero crer que, ao escrever no seu O Estado Judaico as frases seguintes, Hertzl quis mesmo dizer o que lá está escrito: Eu considero a questão judaica não como uma questão religiosa ou social, mas como uma questão bem nacional. Para resolvê-la é necessário, antes de mais, colocá-la em termos políticos à escala mundial. Poderá então ser regulada no quadro do conselho dos povos civilizados. Nós somos um povo. Com toda a certeza: um povo como os outros. sem mais nem menos direitos do que os que a justiça a cada um deve atribuir ou reconhecer. Li, creio que no jornal Le Monde do passado dia 2 de fevereiro, passos dum relatório dos representantes diplomáticos dos países da União Europeia em Israel, considerando que "a administração Trump quebrou o consenso internacional acerca do conflito israelo-palestino, baseado no direito e nas resoluções das Nações Unidas". Tal relatório aponta os malefícios da já antiga política israelita de marginalização económica, política e social dos palestinos em Jerusalém...   ...e como, em razão do isolamento físico e da política israelita restritiva de salvo condutos, a cidade já deixou de ser o centro económico, urbano e comercial palestino que costumava ser... Para não falarmos da continuação da ocupação, por decisão unilateral, ilegal e violadora de direitos territoriais e humanos, de terras palestinas por "colonatos" israelitas (não se lembram dos «espaços vitais» que Hitler reclamava?). Recordo que, pelo armistício de 1949, entre a Jordânia e Israel, Jerusalém permanece dividida entre dois países; e, pelo acordo de paz de 1994, entre eles celebrado, mutuamente se reconhecem a OLP e o Estado de Israel. Infelizmente, já nas conversações de paz, entre palestinos e israelitas, retomadas na Turquia, em 2008, a questão de Jerusalém não é abordada. Anos antes, o poeta judeu Yehuda Amihai (1924-2000) dissera que Jerusalém é uma operação cirúrgica que ficou aberta. Mas, no século XV (em 1434?), um viajante judeu, Elias de Ferrara, vindo da Itália à Jerusalém já sob domínio otomano, escreveu: Os Judeus de Jerusalém fazem, taco a taco, tratados com os Ismaelitas (isto é, os Árabes), e eles não desconfiam uns dos outros...

 

   Resumindo o meu pensarsentir a questão palestina, designadamente a do estatuto de Jerusalém, tal como atual e dramaticamente se coloca:

 

   Aos estado-unidenses diria que se lembrem dos seus "Pais Fundadores", dos constitucionalistas que criaram o Distrito de Colúmbia para aí fixarem - e nunca em qualquer um dos estados federados - a capital federal dos EUA: Washington, D.C. Não vos parece recomendável que uma cidade-mundo, como Jerusalém é, que até já deu provas de poder ser a cidade santa de vários povos e credos, e símbolo de um encontro e convívio universal, seja uma entidade com administração própria, livre, independente de outros poderes políticos - inclusive e sobretudo dos que geograficamente a rodeiam e que, por consenso, a devem reconhecer como tal e proteger, sem que qualquer dos estados envolvidos faça dela sua capital própria?

 

   Aos líderes de um estado de Israel, em que mais de metade da população judia se declara laica, e menos de 35% ortodoxa ou apenas praticante, pediria que refletissem no mal que outros terríveis nacionalismos populistas fizeram a milhões de judeus da diáspora, para finalmente também eles próprios, perseguidores, acabarem mal; e que pensem melhor no símbolo universal que Jerusalém, desde sempre mais cidade do Templo do que capital política, hoje é, para judeus e muitos que não o são, promessa de encontro, terrestre e celeste, de todos os povos da terra. E fazendo este apelo, nem preciso seria recorrer à insinuação de que a sorte das armas e dos povos não fica sempre virada para o mesmo lado... Basta-me evocar a memória do próprio judaísmo e o nome hebraico da cidade de que já te lembrei outras etimologias. Até acabam todas por concordar: a Shelem ou Salém referida no livro do Génese (cujo rei é o sacerdote Melquisedeque, que a Abraão oferece pão e vinho) já quererá dizer Shalom, Paz; Yerusalahim, em hebraico, cidade integral, Cidade da Paz. Lugar santo, acolhia todos os peregrinos, oferecia-lhes alojamento gratuito. Não foi dividida pelas doze tribos, nem entregue a reinos, porque era símbolo da paz entre todos. Na profecia de Isaías (2, 2-5), Jerusalém, centro da fé de Jacob/Israel, tornar-se-á na vocação religiosa de todos os povos: Pelo andar dos tempos acontecerá que a montanha da Casa de Yahvé se estabelecerá acima das montanhas e se erguerá acima das colinas. Então, todas as nações convergirão para ela, então virão inúmeros povos que dirão: «Vinde! Subamos à montanha de Yahvé, à casa do Deus de Jacob, assim nos ensine ele as suas vias e sigamos os seus caminhos». Pois que de Sião nos chega a lei, e de Jerusalém a palavra de Yahvé. Julgará entre as nações e será árbitro de numerosos povos, que quebrarão as espadas para fazer arados e as lanças para fazer foices. Já as nações não levantarão espadas contra as outras, e jamais se aprenderá a fazer guerra. Vamos, Casa de Jacob, marchemos à luz de Yahvé!  Infelizmente, correntes do judaísmo insistiram em vincar uma linha de superioridade do seu povo e da sua religião, numa perspetiva nacionalista, tantas vezes soez, que talvez tenha marcado para mal o destino de uma nação que, enquanto tal, e fiel à Aliança, poderia sem mácula ser portadora de uma mensagem universal de paz. 

 

   Não me parece, pois, justificar-se qualquer receio de "ofensa" religiosa ou tibieza argumentativa no exercício do dever internacional de impor ao atual estado de Israel o respeito devido às disposições, acordos e resoluções que têm vindo a ser tomadas, consentidos e decididas no concerto das nações, relativamente à arrogância e à atuação de posição de força (sustentada pelo apoio dos EUA) de que aquele Estado vem impunemente usando e abusando.

 

   E, ao afirmá-lo, não estou a falar de política, estou simplesmente a lembrar-me do dever fraterno de cultivar o espírito.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Corri a abrir um livro que recebi por correio recente, ao deparar hoje com uma entrevista de David Grossman, escritor israelita que desconhecia, ao jornal Público. O tal livro, que eu já folheara no princípio da semana, é uma tradução, com longa introdução e abundantes notas, da Kabbala denudata de autoria ainda hoje discutida, mas atribuída a Christian Knorr von Rosenroth, datada de 1684, na sua edição em Frankfuhrt. O título original completo dessa obra setecentista, que traduzo para português, reza assim: Esboço da Kabala Cristã, isto é, Sincatabase Hebraica, ou Breve Aplicação da Doutrina Cabalística dos Hebreus aos Dogmas da Nova Aliança, para Formar uma Hipótese Útil à Conversão dos Judeus... Trata-se de um diálogo ou debate, em doze capítulos, entre um cabalista judeu e um filósofo cristão, de que voltarei a falar-te em próxima carta, bem lembrado de que uma certa evolução semântica fez a palavra cabala dizer-nos hoje algo mais próximo de sinistra conspiração do que de mística, seu significado original. Mas neste dia, não fui ao livro por pensar na cabala, mas para encontrar uma citação que o responsável pela edição francesa a que me refiro (Les Belles Lettres, Paris, 2018), o frade dominicano Jérôme Rousse-Lacordaire, usa para epígrafe da sua introdução intitulada À l´Ombre de la Kabbale. Trata-se de um passo de Max Jacob, tirado de Les Oeuvres burlesques et mystiques de Frère Matorel mort au couvent. Traduzo-o para ti, mas lembrado do meu amigo Marcello Mathias, que se sorri apelidando-me de místico excessivo... Aqui vai:

 

   Contudo, ó demasiado místico filósofo, eis-te inquieto, não estarás a insinuar que os ignorantes tomam os símbolos por realidades, e que os outros tomam as realidades por símbolos?

 

   E que tem isto tudo a ver com as cinco páginas que o suplemento Ypsilon do Público dedica a David Grossman, incluindo uma elogiosa resenha do seu último livro publicado em português (Um Cavalo Entra num Bar, tradução de Lúcia Liba Mucznik, D. Quixote)? Obra, aliás, também aconselhada por Francisco Louçã, nesta mesma 6ª feira, na sua habitual aparição no jornal da noite da SIC-Notícias, e que, pelo que me foi dado perceber, trata de modo estimulante, ainda que ficcional, o humor judeu. Não sei se tal humor se reproduz por clones em Israel e todas as várias reuniões da diáspora, mas o que conheço - dos filmes do Woody Allen e de muitos convívios pessoais com judeus em New York e não só -  leva-me a concordar com a apreciação feita por Isabel Lucas ao livro de Daniel Grossman: Rir ou não rir não é uma opção, há verdade na gargalhada, e Dovaleh [o protagonista, contador de piadas] sabe. Ele é um humorista porque conheceu cedo o riso dos outros, os que não riam com ele mas dele. Na infância e na adolescência ele era a piada má, e agora, adulto, quase velho, quer olhar-se de frente, pela primeira vez.

 

   E eu dou comigo, Princesa, a parafrasear Max Jacob: os sobreviventes tomam as piadas por realidades, ou tomarão estas por piadas? Isto é: não será o humor incansável um remédio cabalístico para aguentarmos o trágico? Mas pode ele ser universal, como a música que faz o belo milagre de nos harmonizar, de nos pôr -  e somos tão diferentes! - a comungar as mesmas emoções? No período do último Natal, meditei muito sobre o desentendimento, não tanto enquanto diferendos ou discórdias, mas muito mais enquanto ausência de comunhão humana. Ao longo da vida conheci, graças a Deus, muitas amizades, amores e famílias constituídas por pessoas que inicialmente nem falavam a mesma língua, vinham de povos e culturas, não só diferentes, mas ignorantes uns dos outros. Eram felizes, viviam em profunda comunhão humana, tinham sabido abrir a porta para o caminho da descoberta mútua contínua, que é a única via do amor. Mas, infelizmente, também todos os dias deparo com relações quebradas e corações rasgados entre gente de igual nascimento e criação, que se combate por ganância, por egoísmo ou por soberba, cuja forma mais vulgar, generalizada e insidiosa, é a das chamadas verdades e dos pretensos direitos inatos. Será talvez aí que se confundem, em nebulosas dos espíritos, a cabala mística e a conspirativa, e as nossas boas intenções são nubladas por crenças, preconceitos e ingenuidades. Lê, Princesa de mim, com atenção, os seguintes trechos das declarações de David Grossman a Isabel Lucas (transcrevo do jornal, não traduzo):

 

   Sou muitas vezes questionado se Dovaleh é uma metáfora de Israel. Não acho que uma pessoa possa ser a metáfora de um país, mas há uma ou duas coisas que são similares na vida de Dovaleh e a realidade aqui: primeiro, a contradição entre uma interioridade muito suave e um exterior muito duro; segundo, o sentimento trágico de sentir que se vive em paralelo com a vida que se poderia ter ou devíamos ter. Em 1967, quando Israel venceu a Guerra dos Seis Dias e ocupou todos estes territórios, a grande vitória militar revelou-se uma tragédia nacional: fez de nós ocupantes, criou de modo profundo em nós uma bebedeira de poder que nos trouxe à situação atual, em que há muito pouca esperança para o futuro, com israelitas e palestinianos numa espécie de bloqueio ou beco sem saída. Esta vertigem sem esperança nunca fica de facto vazia, porque há sempre elementos com uma agenda clara, fundamentalistas fanáticos, uma agenda fascista, racista, que está a pular, a ditar o nosso futuro e a sequestrar o nosso futuro e o dos nossos filhos. A situação parece bastante inoperante, sem saída.

 

   Já quando perguntado sobre «o que pensa da decisão de Trump reconhecer Jerusalém como capital política de Israel e mudar para aí a embaixada americana», começa por responder dizendo: Antes de mais, Jerusalém é a capital de Israel. Isto é histórico. Quanto a histórico, resposta mais correta seria dizer que Jerusalém foi a Cidade Santa, a do Templo da Aliança, a das Duas Pazes (terrenal e celestial), mais do que capital de qualquer reino judeu: foi conquistada pelo rei David, da tribo de Judá, em 997 a.C. (em tempos, aliás, para muitos historiadores, ainda não pertinentemente determinados, mas conforme consta dos relatos bíblicos). Depois te falarei, resumidamente, dessa ideia de estado ou reino antigo.

 

  Mais adiante, diz Grossman que no futuro, se avançarmos para negociações de paz entre nós e a Palestina, devemos trazer a questão de Jerusalém como parte de um equilíbrio complicado e devemos decidir que Jerusalém seja dividida a leste, o lado da Palestina, e a ocidente, o lado de Israel. E fazemos o acordo de como nos movimentarmos entre os dois lados, podendo ir rezar aos lugares sagrados das duas religiões. Isto terá de ser feito de forma muito lenta e com uma solução muito detalhada, e não por uma declaração «fast food» do senhor Trump. Este arrazoado, levando em conta apenas judeus e muçulmanos, escamoteando a forte presença de cristãos, muitos destes sendo palestinos ali instalados há séculos, tal como os judeus propriamente do sítio (não os adventícios ocupantes), reflete a influência da propaganda sionista, que insiste em apresentar um Israel "forte, fiel, façanhudo", todo judeu, hoje mais do que nunca guardião da fronteira avançada contra o pernicioso islão. Ignora a verdade histórica e, sobretudo, lamentavelmente, os exemplos passados de uma Cidade do Mundo que, ainda no fim do domínio otomano, conseguiu ser gerida em paz, na convivência e acordo de todas as suas comunidades étnicas e religiosas (donde os quatro bairros, ainda hoje existentes: judeu, cristão, muçulmano e arménio). Curiosamente, leva-me a recordar um vídeo, desses que circulam pela rede (ou teia?) chamada "internet", e que querida amiga me reencaminhou: aí, com ar científico e professoral, um PR (leia-se pi ar), além da treta de Jerusalém ser capital do estado de Israel há mais de 3000 anos, diz-nos que os muçulmanos rezam virados para Meca, e só os judeus para Jerusalém...

 

   Noutro trecho da entrevista, Grossman confirma que escreveu o livro em hebraico (aliás, o prémio Man Booker International 2017 foi-lhe atribuído e, simultaneamente, à sua tradutora inglesa), e diz: Sim, o hebraico é uma das línguas mais antigas. Parte da Bíblia é escrita em hebraico. O que mais é preciso para provar quão antiga e importante é esta língua para as religiões e cultura ocidentais e islâmica? O modo de narrar que está na Bíblia afetou tanto outras culturas e religiões! Para nós, em Israel, o hebraico é um milagre. Foi uma língua em dormência, não uma língua falada, durante quase dois mil anos. Renasceu no início do século XX quando quase ninguém a falava, era apenas a língua das orações, uma língua sagrada. E por causa da insistência e devoção de uma pessoa, Eliezer Ben-Yehuda (1858-1922). Ele reinventou a língua hebraica, baseando-se na Bíblia, no Talmude ou no Mishná. Ele beijou a bela adormecida e viu-a acordar para a vida, e hoje quase toda a gente em Israel fala hebraico, as pessoas fazem negócios em hebraico, apaixonam-se em hebraico, o Exército fala hebraico, as pessoas mais jovens fazem tudo em hebraico. E dá um prazer especial escrever em hebraico, porque se pode escrever numa língua cheia de identidade, de herança e jogar com as diferentes camadas dessa língua. - Continuam a inventar-se palavras? - Sempre! Por causa da anormalidade de uma língua muito antiga que quase se perdeu e que teve de ser reinventada, tiveram de se inventar palavras que faltavam. Por exemplo, Eliezer Ben-Yehuda teve de arranjar um nome para a palavra "tomate". Não havia tomate no tempo da Bíblia, nem gelados, e ele inventou-a. O nome que deu ao tomate foi o que em inglês corresponde a «flirtatious lady», porque ela cora nessa situação [«agvania» em transliteração]. É uma mulher ruborizada [risos]. Quando estou a escrever e chego a um momento em que me falta uma palavra em hebraico e ela não existe, então muitas vezes essa palavra surge numa forma que me parece clara, e imediatamente toda a gente sabe o seu significado, sabe o que quero dizer, como se ela fosse encaixar num lugar que lhe estava reservado.

 

   O linguista que não sou, um essoutro qualquer estudioso rigoroso, poderia dizer que, afinal, a exemplo dos mitos histórico-políticos que hoje se vão (re) inventando, o hebraico que ali se constrói é uma pretensão de língua sem historial de vox populi. Indubitavelmente uma tentativa de unidade linguística de populações provenientes de muitos lados da diáspora, transportadoras de culturas e linguagens diferentes, não sei se também escamoteadora das línguas antigas que muitas dessas comunidades falavam, como o ídiche ou o ladino. Tal como, no século XV, os Reis Católicos uniram reinos de Espanha, pela imposição da uniformidade religiosa. Não sendo cientista nem sábio, limito-me a recorrer a outras fontes de apreciação. Sem, todavia, resistir a remeter-nos primeiro, Princesa de mim, para a poética informação de que «agvania» afinal traduz «flirtatious lady», posto que o fruto tomate evoca o ruborizado rosto de uma dama em amorosos calores... Tanto quanto lembrar-me posso, tomate deriva do inca tomatl, assim se registou o nome desse fruto em castelhano, cerca de 1532, quando nos trouxeram a pertinente solanácea do Peru. Aliás, peru também chamamos nós a essa pobre ave, natalícia iguaria a que, pelo thanks giving, os americanos do norte chamam turkey (da Turquia, herança britânica), e os franceses insistem em tratar por dinde (da Índia, já que o maneirismo gaulês dá sempre prioridade às senhoras pelo que ao peru macho chamará dindon). Afinal, pergunto eu, que nem sobre animais sou sábio: donde veio o bicho? do Perú, da Turquia, da Índia? Mas, correndo o sério risco de ruborizar-te, Princesa, volto ao tomate, que os italianos tratam, bíblica e italicamente lembrados do pecado original, por pomo de ouro (pomodoro). Ou, como regista, sempre competentemente, António Houaiss, no seu Dicionário da Língua Portuguesa : Tomate já figura no dicionário de Bluteau (1721), que comenta: «Não aprova Ruellio o nome de "Poma Amoris", que alguns dão aos Tomates por serem fermosos à vista, porque todos os mais frutos, que tem esta excellencia, justamente pretenderiam este mesmo nome; & se nós lhes chamamos Tomates, dando a entender que a sua fermosura convida a gente, que os vê, a Tomallos, toda a mais fruta vistosa, &  agradável aos olhos se poderá com razão chamar Tomate. E noutra entrada regista que "tomates, substantivo masculino no plural, significa também (desde 1899?), testículos e, por extensão, o conjunto das qualidades viris: valentia, audácia, etc."...

 

   Com este pouco ou nada de riso pícaro, deixo-te, Princesa de mim, até próxima carta, a voltar ao assunto subjacente. Afinal, estas cartas mais não são do que uma conversa entre nós.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira