Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  
De 6 a 12 de novembro de 2023


Autor de “As Cidades Invisíveis”, Italo Calvino foi um interrogador de mitos através da literatura, tendo-se dedicado, ao longo da vida, a descortinar os vários mistérios escondidos no Jardim dos caminhos que se bifurcam, que Jorge Luís Borges descreveu genialmente com a capacidade de iludir os leitores, dando-lhes porventura o falacioso conselho de que Teseu não teria tido necessidade do providencial fio de Ariadne para conseguir a proeza que o celebrizou no labirinto do Minotauro.
 


PAIXÃO MISTERIOSA
Sabemos, porém, que um tal parecer era falso, cabendo ao narrador construir com imaginação o modo de tornar a história verosímil…. Daí a paixão para com Ulisses de gerações incontáveis de leitores. E Calvino lembra-nos que as aventuras marítimas da Odisseia, no regresso a Ítaca, foram uma “rápida sucessão de encontros com seres fantásticos (que surgem nos contos populares do folclores de todos os tempos e países: o ogre Polifemo, os ventos encerrados no odre, os encantos de Circe, as sereias e monstros marinhos)”, que contrastam “com o resto do poema, em que predominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dramático gravitando em torno de um fim: a conquista do reino e da esposa assediados pelos Prócidas”. Estamos perante o mito de todas as viagens e aventuras. E se o herói épico tradicional era o paradigma das virtudes aristocráticas e militares, Ulisses não é só isso, sendo também “o homem que suporta as experiências mais duras, os trabalhos, a dor e a solidão”. Mais do que um lutador contra bruxas e gigantes, monstros e comedores de homens, foi alguém que usou a inteligência e o artificio. Para Italo Calvino, a memória constituía o fator essencial para a compreensão da realidade humana. Lembremos a criança que aprendia de cor os poemas de Montale, “poesias sedimentadas na memória”. Os clássicos servem para compreender quem somos e onde chegámos e o escritor considerava indispensável um cosmopolitismo que permitisse pôr em diálogo as culturas nacionais e estrangeiras, já que as identidades se enriquecem pela comparação entre diferentes situações. E quem são os clássicos senão aqueles que constituem objeto de estudo nas classes escolares? O longo prazo é assim o fator crucial de relevância. Como um dia afirmou Umberto Eco, quem lê e quem recorda o passado diferencia-se de quem não o faz, pois estes podem viver apenas o tempo que lhes é dado pela vida terrena, enquanto quem lê e estuda o passado pode viver o correspondente a cerca de seis mil anos que é o tempo das civilizações históricas que conhecemos. Contudo, a consideração dos clássicos não deveria centrar-se na preocupação de saber se “servem” para alguma coisa, preferindo dizer o escritor que “a única razão que se pode aduzir é que ler os clássicos é melhor que não ler os clássicos”. E perante a objeção de que não valeria a pena tanto trabalho, Cioran lembrava que “enquanto lhe preparavam a cicuta, Sócrates pôs-se a aprender um ária de flauta”. Mas para que servirá? – perguntaram-lhe. “Para saber mais esta ária antes de morrer”.


HISTÓRIAS INTERMINÁVEIS
Leitor prolífero, recorda a personagem referencial de Ulisses, tornado paradigma clássico europeu, mas conduz-nos ainda pelos caminhos apontados por autores tornados cultores emblemáticos da memória clássica, como Stendhal. Obras como A Cartuxa de Parma e O Vermelho e o Negro constituem exemplos de narrativas próximas do nosso tempo que reinterpretam acontecimentos em que a história repete preocupações ancestrais do género humano. Fabrício Del Dongo e Julien Sorel ilustram o período romântico correspondente às guerras napoleónicas. Mas Fabrício não é Julien, sendo maior a complexidade psicológica deste, havendo semelhanças dele com o caso de Alexandre Farnese, futuro Papa Paulo III, na configuração da narrativa. E Balzac consideraria a Cartuxa como uma obra fundamental, comparável na inovação dramática e influência social à obra maior de Maquiavel. E Italo Calvino concordava, afirmando: “o que faz da Cartuxa de Parma um grande romance ‘italiano’ é o sentido da política como ajustamento calculado e distribuição dos papéis: com o príncipe que enquanto persegue os jacobinos se preocupa em poder estabelecer com eles futuros equilíbrios que lhe permitam pôr-se à cabeça do iminente movimento de unidade nacional”. Deste modo, as personagens desenhadas por Stendhal, Fabrício, Gina Sanseverina e Clélia desenvolvem a sua ação sedutora num panorama que anuncia o Ressurgimento italiano. E Calvino verifica a existência de “uma espécie de acordo miraculoso entre a massa de felicidade e de prazer que irrompeu em Milão com a chegada dos franceses e a nossa alegria de leitura: o efeito narrado coincide finalmente com o efeito produzido”. E assim a obra de arte ganha pleno sentido para os leitores do romance, que revivem com entusiasmo os acontecimentos históricos como puro prazer e exaltação da leitura na representação artística, graças ao talento de Stendhal.


A cada passo, na invocação das grandes obras, há sempre segredos por descobrir. E Italo Calvino não se poupava a tais esforços, como no caso dos Dois Hussardos de Tolstoi, escritor tão avaro na revelação dos instrumentos de construção da narrativa. E aí o que se encontra? “A plenitude da vida tão gabada pelos comentadores de Tolstoi – neste conto como no resto da sua obra – é a constatação de uma ausência. Tal como no narrador mais abstrato, o que conta em Tolstoi é o que não se vê, o que não se diz, o que poderia existir e não existe”. E são estas realidades que revelam os segredos escondidos numa qualquer obra de arte, em especial clássica. Afinal, a vida e a complexidade dos destinos levam-nos a perceber que é o aparente não sentido que revela a essência da ação. E sobre Pasternak, autor da estirpe de Poe, Dostoievski e Kafka, o escritor italiano, que tinha saído do partido Comunista em 1957 e escrevia em 1958, ano da atribuição do Prémio Nobel ao autor russo, afirmou que o autor de Doutor Jivago advertiu provavelmente para que “a história não era suficientemente história, como construção consciente da razão humana, sendo sobretudo desenrolar de fenómenos biológicos, estado de natureza bruta e não reino das liberdades”. Restaria saber se tal foi compreendido e se a então União Soviética estaria a ponto de tirar consequências desse alerta…


A vasta obra literária deixada por Italo Calvino juntou a lucidez histórica, o realismo e a fantasia, recriando narrativas memoráveis como as Cidades Invisíveis, onde o diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan se traduz na revelação de um deslumbrante panorama, rico em sentido de imaginação e na descoberta do desconhecido.      


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença