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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 13 a 19 de setembro de 2021


«Os Fidalgos da Casa Mourisca» é a última obra de Júlio Dinis, já publicada depois da sua morte. Há cento e cinquenta anos morreu Júlio Dinis (1839-1871). Desde então muito se tem debatido sobre a importância real do romancista na cultura portuguesa.


UM AUTOR POUCO LEMBRADO
Lembramo-nos do que Eça de Queiroz disse quando soube da morte de Júlio Dinis: “Tréguas por um instante nesta áspera fuzilaria! Numa página à parte, tranquila e meiga, pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pessoas delicadas se recolham um momento, pensem nele, na sua obra gentil e fácil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. (…) Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve” (As Farpas, setembro de 1871). É um comentário que pressupõe distância, que compreendemos por parte de quem pugnava por uma renovação profunda da literatura e do pensamento, colocando o autor de Uma Família Inglesa no lado romântico da geração que o antecedera. Trata-se de uma apreciação comprometida, e o certo é que o comentário persistiu ao longo do tempo, numa situação agravada pelo facto de Júlio Dinis ser um dos nossos melhores escritores, infelizmente mal compreendido porque pouco lido. E assim fica por parte de Eça de Queiroz o reconhecimento de uma aura de simpatia, apesar da relativização da obra. Contudo, estamos perante um dos mais marcantes autores da sua geração, que bem conhecia os mais importantes autores da língua inglesa do seu tempo, notando-se a preocupação especial no tratamento dos temas dos seus romances, obedecendo a um sentido cuidado de clareza, verdade e pedagogia, além da escolha de um ritmo ponderado capaz de entender a diversidade da vida, de procurar a autenticidade e a regulação dos conflitos, numa gradual aproximação ao naturalismo.  Jane Austen, Charles Dickens ou William Thackeray eram bem conhecidos do romancista portuense, notando-se essa influência, não numa perspetiva de escola, mas com uma preocupação de compreender e representar a sociedade portuguesa.


AUTOR MAIOR DA NOSSA LITERATURA
Júlio Dinis é um autor maior da nossa cultura, com identidade própria, profundamente influenciado pela melhor literatura anglo-saxónica. O certo é que não é possível conhecer a sociedade portuguesa do seu tempo (e as origens da nossa) sem ler os seus romances, onde se nota, com nitidez a coexistência da tradição antiga, patriarcal e conservadora, do tempo anterior, com as manifestações e anseios de modernidade, de uma nova época. É o Portugal profundo que se confronta com o mundo em mudança. As personagens do romance português do século XIX coexistem e coabitam. Dir-se-ia que as gerações se sucedem e se completam, entre dramas e desencontros, entre anseios e sonhos – com Garrett, Júlio Dinis, Camilo e Eça. Em bom rigor, se não seguirmos essa pequena multidão pouco compreendemos. E quando se nos depara a rica panóplia de Portugal Contemporâneo, não podemos esquecer que tudo está ilustrado nessa rica complementaridade romanesca. No caso de Júlio Dinis, numa leitura superficial, pareceria que são os fatores conservadores a prevalecer. É uma ilusão. Leia-se As Pupilas do Senhor Reitor, publicado em 1866, Uma Família Inglesa, retrato da vida citadina e da pequena burguesia nascente (1868), A Morgadinha dos Canaviais, a melhor análise da vida política do constitucionalismo liberal. O que o romancista já anuncia é o surgimento do realismo e do naturalismo, sobretudo numa Europa em profunda mudança, como os jovens do Bom Senso e do Bom Gosto cedo compreenderam. Atormentado pela doença, luta contra o tempo, em 1869, parte para a Madeira, em busca de melhoras da doença, reflete profundamente sobre o mundo que se transforma. Em 1870, no Porto publica os Serões da Província e conclui Os Fidalgos da Casa Mourisca, cujas provas tipográficas já não acaba de rever. E é talvez nesta ponta final que poderemos encontrar uma curiosíssima síntese capaz de fazer compreender a sociedade em que o escritor vivia e que anunciava culturalmente significativas mudanças. A leitura da obra romanesca de Júlio Dinis permite-nos lidar com uma literatura que acompanha a evolução de uma sociedade que se vai emancipando progressivamente pelo exercício da liberdade.


ENTENDER PAÌS PROFUNDO
Se entendemos o país profundo na complexa trama de A Morgadinha dos Canaviais, em especial na tensão extraordinária entre o Conselheiro Manuel Bernardo Mesquita e Joãozinho das Perdizes e no panorama do enredo, não podemos compreender o liberalismo constitucional português sem ler o romance e sem compreender as suas personagens. Mas, como assinalou com extrema pertinência, Helena Carvalhão Buescu em “A Casa e a Encenação do Mundo: ‘Os Fidalgos da Casa Mourisca’ de Júlio Dinis” (“Veredas – Revista da Associação Portuguesa de Lusitanistas”, 1, Porto, 1988) o romancista na sua derradeira obra usa a metáfora da “Casa Mourisca” para representar Portugal, enquanto realidade histórica e política. No início, o velho País, como a casa do título, surge majestoso e severo, dominado pela questão do tempo e pela heterogeneidade da sua construção. À imponência de um passado visto como glorioso mas perdido, segue-se a decadência material do presente, projetando-se a recuperação do futuro. “Os tempos e os países, reflete Júlio Dinis, não se fazem já da predominância de velhos senhores agarrados à tradição enclausurante do passado, mas do estabelecimento de mediações e contratos (sociais, evidentemente, que Rousseau não é já desconhecido) que ao mesmo tempo preservem (trata-se de uma solução reformista) e alterem o tecido social no sentido da sua heterogeneidade e cooperação interativa” (H. Buescu). Deste modo, aproximamo-nos da reflexão de Gonçalo em A Ilustre Casa de Ramires – e, nas duas situações, as Casas são as matrizes sociais. Portugal, isto é, a Casa Mourisca (como na Torre de Ramires) não se constrói pela eliminação de contrários, mas pela criação de condições para a convivência, através do contrato social. A guerra civil nacional reproduz-se em miniatura na Casa Mourisca, no confronto dramático entre D. Luís Negrão de Vilar de Corvos e o cunhado, ou no diálogo entre Frei Januário e o liberal hortelão ex-companheiro do cunhado morto. A verdade é que a guerra civil terminara há mais de trinta anos, mas importava entender esse tempo como passado. Maurício, Jorge e Berta da Póvoa representam um novo tempo e uma nova vontade. A filha de Tomé da Póvoa, antigo caseiro de D. Luís, representa, assim, como a sociedade se transformava decisivamente. “Desenganemo-nos; a época não é de privilégios nem de isenções nobiliárias; é de trabalho e de atividade. Plebeu é hoje só o ocioso, nobre é todo o que se torna útil pelo trabalho honrado”. Um escritor é a sua época e projeta-se para além dela, usando a literatura como modo de melhor compreender os acontecimentos e as pessoas. Eis a atualidade permanente da melhor literatura. Júlio Dinis faz parte dela.    

 Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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(XXI) PORTUGAL DE J. DINIS E DE CESÁRIO

 

Tão diferentes, tão próximos. Ambos morreram prematuramente, com 31 anos de idade, da mesma enfermidade. Não se conheceram, um era médico no Porto, o outro empregado comercial em Lisboa. Vitimou-os a terrível tuberculose – doença incurável e fatal à altura, que dominou os dramas do Romantismo. O romancista e o poeta protagonizaram o terrível destino que dominava o seu tempo. A leitura de ambos, apesar das profundas distâncias, corresponde a compreendermos a circunstância em que viveram.

Júlio Dinis (1839-1871) é um autor maior, profundamente influenciado pela melhor literatura britânica. Não é possível conhecer a sociedade portuguesa do seu tempo sem ler os seus romances, onde se nota, com nitidez a coexistência da sociedade antiga, patriarcal e conservadora com as manifestações e anseios de modernidade. É o Portugal profundo que se confronta com o mundo em mudança. Numa leitura superficial, pareceria que são os fatores conservadores a prevalecer. Contudo, Júlio Dinis anuncia já a mudança, o realismo e o naturalismo. Leia-se As Pupilas do Senhor Reitor, publicado em 1866, Uma Família Inglesa, retrato da vida citadina e da pequena burguesia nascente (1868), A Morgadinha dos Canaviais, a melhor análise da vida política do constitucionalismo liberal, o ainda As Pupilas do Senhor Reitor, adaptadas com sucesso ao teatro e representadas na Trindade. Em 1869, parte para a Madeira, em busca de melhoras da doença. Em 1870, no Porto publica os Serões da Província e conclui Os Fidalgos da Casa Mourisca, cujas provas tipográficas já não acaba de rever. A leitura da obra romanesca de Júlio Dinis permite-nos lidar com uma literatura que acompanha a evolução de uma sociedade que se emancipa progressivamente pelo exercício da liberdade.

Cesário Verde representa o novo tempo. Nasceu em Lisboa, na freguesia da Madalena – a 25 de Fevereiro de 1855. Teve uma vida e uma obra brevíssimas. Por um triz, poderiam ter ficado esquecidos o seu génio poético e um sinal evidente de modernidade. Teve razão antes de tempo. E Ramalho Ortigão enganar-se-ia redondamente ao criticar “Esplêndida” (“Ei-la! Como vai bela! Os esplendores / Do lúbrico Versalhes do Rei-Sol / Aumenta-os com retoques sedutores.”) e ao aconselhar o jovem a tornar-se “menos Verde e mais Cesário”… A incompreensão foi regra na receção dos seus poemas. Esse facto amargurou profundamente o jovem poeta. Inconformista, dizendo-se praticante do “protesto franco e salutar em favor do povo”, Cesário foi um inovador sensível, inclassificável nas escolas e nos grupos. Não foi um literato profissional. Viveu entre a casa comercial do pai, a loja de ferragens da Rua dos Fanqueiros, o campo, de Linda-a-Pastora ao Paço do Lumiar, e a poesia nas horas vagas. Dirá: “Pobre da minha geração exangue / De ricos!”. A sua originalidade esteve em pôr o concreto na primeira linha da sua criação. Um dia disse: “Eu sou frio, pausado, calculista como todas as organizações criadas neste meio comercial”. No momento em que o seu amigo Silva Pinto o levou até ao Dr. Sousa Martins, já com a sentença traçada da inexorável tuberculose, disse maquinalmente ter como profissão “empregado no comércio” – mas logo pediu que fosse explicado ao médico, que era mais do que isso… O contacto com o concreto tornou-o moderno, numa sociedade de progressos materiais e de melhoramentos (“Sei só desenho de compasso e esquadro, / Respiro indústria, paz, salubridade.”). Cesário foi um citadino, um cosmopolita – “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo”… Lisboa era uma encruzilhada de sensações, matéria-prima de “O Sentimento de um Ocidental”. Cesário abriu caminho ao século XX, quase sem se aperceber disso. Ficou para trás o lirismo superficial e pobre! Romantismo, realismo, modernismo, surrealismo – todos se encontram em Cesário: “Ah! Ninguém entender que ao meu olhar / Tudo tem certo espírito secreto”… Almada Negreiros teria pensado em Cesário ao pintar os seus painéis? Que emoção ao ouvir: “E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! / De um couraçado inglês vogam os escaleres; / E em terra num tinir de louças e talheres / Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda”. A 19 de Julho de 1886, Cesário morre. Era o camponês que “andava preso em liberdade pela cidade”, como diria Alberto Caeiro. Em Abril de 1887, Silva Pinto publicaria “O Livro de Cesário Verde”, obra póstuma e única. O início do novo século trouxe a consagração.

Júlio Dinis retrata-nos o seu tempo e Cesário antevê, para além do imediato, o futuro…

GOM

 


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