A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de janeiro de 2020
A «Revista Ocidental» dirigida por Antero de Quental, Jaime Batalha Reis e Oliveira Martins teve uma existência fugaz, de fevereiro a julho de 1875, mas constitui uma referência essencial para a compreensão da chamada Geração de 1870.
VINDO DE SANTA EUFÉMIA
Regressado à pátria, vindo das minas de Santa Eufémia, em Espanha, Oliveira Martins vai para o Porto em 1874, para dirigir as obras de construção da linha de caminho-de-ferro do Porto à Póvoa de Varzim, “levantando plantas, traçando perfis, fazendo planos de estações de caminho-de-ferro, estudando pontes, dirigindo e executando trabalhos, tanto de campo como de gabinete, ao lado de dois engenheiros”. Está em contacto estreito com Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, com quem participa ativamente no lançamento em 15 de fevereiro de 1875 da “Revista Ocidental” (com o editor Rovere). Antero avisara um ano antes: “O Batalha lhe escreverá, para lhe comunicar o plano de uma empresa minha e dele, para a qual contamos com a sua coadjuvação. É uma Revista que vamos fundar, cujo projeto o Batalha fica encarregado de compor” (13.4.1873). Havia que continuar o combate social e político, que se exprimira nas Conferências Democráticas e na intervenção política, que deveria assumir uma dimensão ibérica. Importava, por isso, “provocar a reunião de elementos de renascença intelectual da Península e a formação de novas escolas espanhola e portuguesa”. Assim, a nova revista, que teve existência fugaz (de fevereiro a julho de 1875), afirma-se com o objetivo audacioso de suscitar uma reflexão que não se ativesse apenas à dimensão nacional. “Provocar a reunião dos elementos da nova renascença intelectual da península e a formação das novas escolas espanhola e portuguesa, é o fim da ‘Revista Ocidental’”. Esta era a justificação constante do programa da nova publicação. E nessa linha, Oliveira Martins escreve de modo eloquente, sob o título de Introdução, o ensaio programático “Os Povos Peninsulares e a Civilização Moderna”, a abrir a revista. É um texto entusiástico e militante, com preocupação histórica, que antecipa a História da Civilização Ibérica. Estava em causa a criação de “um campo ao mesmo tempo vasto e livre, onde todos os homens que mais ou menos proeminentemente representam uma face, um lado, um aspeto, do génio peninsular, hão de vir com a pena arar os fundos sulcos da lavoura intelectual; onde todas as opiniões têm uma voz, todas as tendências um lugar, quando entrem no sistema de opiniões e de tendências, que formam o edifício do Progresso neste século”. E assim segundo o autor, só uma revista como a que se fundara, poderia "representar perante a Europa o génio dos povos que habitam a península ibérica, e dos que, filhos dela, foram acampar na América meridional”. Para tanto, haveria que definir o “génio peninsular ibérico”. Seria escrita nas duas línguas peninsulares, o que lhe asseguraria leitura em Espanha e na América do Sul.
O INCIDENTE COMO EÇÃ DE QUEIROZ
Antero, em carta a Oliveira Martins, exprime algum ceticismo: “Quanto ao Socialismo, o Batalha mostra-se receoso um pouco, e recomenda-lhe prudência: V. por certo saberá combinar convenientemente as tintas com que escrever. Eu receio muito mais do Padre Amaro (que é Pigault—Lebrun forrado de Flaubert, como V. irá vendo e pasmando) do que do Socialismo mas o Batalha tem ideias fixas, e algumas bem singulares: diz que o Padre Amaro é uma revolução e não sai daqui” (março 1875). Havia, de facto, razões para preocupação, mas diferentes das que Antero julgava. Eça vai, agastado, proibir a continuação da publicação do Padre Amaro na revista, porque o “borrão” não está revisto e não reconhece a Antero qualquer legitimidade para os reparos feitos (“O Antero é o maior crítico da península mas entende tanto de arte – como eu de mecânica” – 26.2.1875). Mas regressemos ao texto programático de Oliveira Martins. Para definir o génio peninsular ibérico, haveria que salientar a importância de um “sentimento de independência”. E o traço elementar orgânico desse génio peninsular seria o heroísmo. Seria este a dar unidade ao sistema de caracteres nacionais dos “povos espanhóis”. E a “invasão árabe” teria sido a maior fortuna histórica da Península, por lhe ter dado a renovação literária, o sentimento do infinito, que vem do deserto, mas também Córdova e Granada, os eirados da Andaluzia, os frutos de mármore da Alhambra, uma arquitetura, e a compreensão de como o heroísmo cristão que “era ainda sanhudo, feroz, infantil” se pôde tornar tolerante. Mas não estava em causa apenas a arte: também havia Averróis, Ibn-Tophail,, Maimonides e Avicebron, árabes e judeus transmitindo a medicina e a álgebra, mas igualmente Afonso, o Sábio a receber os ensinamentos de alquimia. “A França é uma abelha, a Espanha é uma águia. Tem desta o voo largo, a garra firme e a alvura das penas; a alvura, porque é à Itália misteriosa e fatídica que cabem as negras cores, cores terríveis que obumbram a imaginação medonha do etrusco: a águia negra é imperial e italiana”. Eram, pois, indiscutíveis as qualidades peninsulares, que tinham de ser reconhecidas.
AINDA A CIVILIZAÇÃO IBÉRICA
Como acontecerá em História da Civilização Ibérica, estamos perante uma crítica severa relativamente à obra de Henry Thomas Buckle, History of Civilization in England (1857-1865), em especial no tocante à “lenda negra” sobre a civilização peninsular. “Negar redondamente a hombridade peninsular, não surpreende num inglês incapaz de a compreender”. Em lugar do fatalismo e paganismo ultramontanos, havia que reconhecer que a religião conservava em Espanha um carácter humano – Santa Teresa humaniza Jesus “nos delírios do seu amor místico” e as Virgens de Murillo ou de Morales “são belas raparigas que brotam com as flores sob o céu azul da Andaluzia, os santos de Ribera são titãs ou prometeus roídos pelo abutre, não profetas ou sibilas como os de Miguel Ângelo”. O heroísmo ativo que gera o amor da liberdade é, assim, uma característica peninsular por contraponto a um qualquer frio estoico. E “à raça hispano-portuguesa coube o papel grandioso de explorar o mundo”, ao invés da construção do génio saxónio. “Os sentimentos produzidos pelos atos livres do homem não têm aplicação para fenómenos coletivos que estão imediatamente no domínio da necessidade que os determina”. Deste modo, para os povos ibéricos não haveria nem motivo para vergonha nem para exultar de orgulho. Importaria, sim, compreender a realidade, comparando, pesando e avaliando, para aprender a lição… Daí o historiador lembrar que o primitivo sistema colonial dos hispano-portugueses se moldava nas tradições antigas. “Uma esquadra conduzia um exército que, depois duma batalha ganha, impunha um tributo e construía uma fortaleza para manter o senhorio e cobrar o tributo. À sombra da fortaleza comerciavam os conquistadores, e aos lucros da guerra, receita do Estado, juntava-se o lucro comercial, receita privada. Este sistema distinguia-se do das colonizações fenícias ou gregas, no facto de os conquistadores prescindirem do domínio público, sem prescindirem do domínio religioso”. Não se tratava de iberismo (Antero insistia também aí), mas da consideração de uma complementaridade necessária de realidades independentes. O génio peninsular ibérico, como marca de “Revista Ocidental”, era, pois, uma exigência cultural, social e política…
Guilherme d'Oliveira Martins