Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Na celebração do centenário da “Seara Nova” cabe recordar o papel desempenhado por Jaime Cortesão, com Raul Proença, na direção da Biblioteca Nacional (1919-1927).
Uma tarefa fundamental Jaime Cortesão foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional a 5 de abril de 1919, no rescaldo da morte de Sidónio Pais, sucedendo a Fidelino de Figueiredo. Raúl Proença, que era bibliotecário desde janeiro de 1911, era, há pouco, chefe dos Serviços Técnicos e escreveu, no início de 1919, a Cortesão, dizendo que a saída de Fidelino era dada como certa e que a vaga de diretor iria ser aberta. Na própria Biblioteca, havia uma forte corrente defensora da nomeação de Jaime Cortesão. Coube a Leonardo Coimbra, ministro da Instrução Pública do governo de Domingos Pereira, nomear Cortesão por urgente conveniência de serviço. A entrada do poeta e historiador no velho Convento de S. Francisco teria imediatas consequências. Com base no que vinha sendo trabalhado, com a intervenção ativa de Raul Proença, estudioso e especialista de biblioteconomia, foi publicado com data de 10 de maio, o decreto que aprovava a nova Lei Orgânica da Biblioteca, completada pelo respetivo Regulamento. Aquilino Ribeiro foi nomeado 2º bibliotecário e Álvaro Pinto, fundador de “A Águia” em 1910 e da “Renascença Portuguesa” (1912), chefe dos serviços administrativos. Naturalmente, Proença torna-se o braço direito de Cortesão, substituindo-o nas faltas e impedimentos, num período em que os efeitos da guerra química da frente de batalha em França ainda se faziam sentir intensamente na saúde do novo diretor.
Um plano audacioso O plano de ação da Biblioteca Nacional envolvia “a catalogação, a produção e a autonomia editorial”, bem como a animação cultural com o apoio de um núcleo alargado de intelectuais e artistas. Pouco depois, Álvaro Pinto partiu para o Brasil, para se dedicar à atividade editorial, sendo substituído por Ferreira de Macedo. Proença mantém contacto permanente com instituições congéneres e com os melhores especialistas, vindo a participar no Congresso Internacional de Bibliotecários e Bibliófilos de Paris (abril de 1923). A ação delineada para a Biblioteca abrange a formação técnica dos funcionários, a utilização da tipografia e um ambicioso plano de publicações. São de destacar a edição de 1921 de “Os Lusíadas”, muito elogiada por Carolina Michaelis de Vasconcelos, além de “O Livro de Marco Paulo (sic)” conforme a impressão de Valentim Fernandes (1922), do “Bosquejo da História de Portugal” de António Sérgio (1923), dos “Dispersos” de Oliveira Martins, organizados por António Sérgio e Faria de Vasconcelos (1923) e do início da publicação das Obras de Gil Vicente. Por outro lado, logo em 1919, inicia-se a concretização, que ocorrerá em 1924, da aquisição em Itália do que hoje se designa como “Cancioneiro da Biblioteca Nacional” e que era conhecido como de Colocci-Brancuti. O pequeno volume intitulado “Itália Azul”, de J. Cortesão, descreve a viagem que então empreendeu. E não podemos esquecer a extraordinária iniciativa de Raul Proença da publicação do “Guia de Portugal”, a partir de 1924, em nome do amor à terra portuguesa, à divulgação da riqueza da paisagem e das tradições, minucioso roteiro do país e precioso repositório artístico. Com a colaboração de personalidades marcantes da literatura portuguesa, são seis volumes, divididos em 8 tomos, constituindo um instrumento essencial para a compreensão das raízes portuguesas, completado, depois da morte de Proença, com coordenação de Santana Dionísio, graças à Fundação Calouste Gulbenkian. Citando Unamuno, Raul Proença dizia: “estas excursões não são só um consolo, um descanso e um ensinamento; são além disso e porventura sobretudo, um dos melhores meios de conceder apego e amor à pátria”.
Página essencial da Cultura portuguesa Poucos foram os momentos da nossa história cultural tão ricos como aqueles em que Jaime Cortesão dirigiu com Raul Proença a Biblioteca Nacional. Tal direção definiu como finalidades principais da instituição: conservar o património da cultura nacional, de modo a transmitir às gerações vindouras os frutos da atividade literária e científica do passado. Houve assim uma ação reformadora e criativa, que ultrapassou em muito o âmbito de uma Biblioteca. Recordando-nos das ideias defendidas por Proença nas origens da “Renascença Portuguesa”, tratava-se de “acordar as consciências do sono da rotina e da indiferença”. E Jaime Cortesão assumia intimamente esse entendimento, que se integrava na lógica dos “fatores democráticos”. Nesta ordem de ideias, não houve apenas um Grupo da Biblioteca Nacional, que teria um papel decisivo da criação da “Seara Nova”, mas diversos grupos, que nasceram da formação e convívio dos intelectuais da “Renascença Portuguesa”, agora em torno de Jaime Cortesão (de 1919 a 1927). A “Seara Nova” nasce em 1921 de um desses grupos, no qual encontramos Cortesão, Proença, António Sérgio, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão. E quem mais constitui esses grupos? Ferreira de Macedo, Faria de Vasconcelos, David Ferreira, Azeredo Perdigão, Rodrigues Miguéis, Teixeira de Pascoais, Reinaldo dos Santos, Afonso Lopes Vieira, José de Figueiredo, Mário de Azevedo Gomes, Luís Câmara Reis, António Arroio, Gualdino Gomes, Vieira de Campos, Castelo Branco Chaves.
Havia a preocupação de fazer nessas tertúlias uma reflexão aprofundada sobre o futuro de Portugal, fora da lógica de curto prazo e do poder. Mas a ideia democrática obrigava a ouvir prestigiados intelectuais, como Carolina Michaelis de Vasconcelos (animadora da revista “Lusitânia”), Silva Gaio, Vieira de Almeida; políticos como Álvaro de Castro, militares como Machado Santos, Sarmento Pimentel, e até Gomes da Costa ou Aires d’Ornelas, personalidades como Mark Athias, Agostinho de Campos, David Lopes, Simões Raposo, Raul Lino, Ezequiel de Campos e Quirino de Jesus, mas também operários e sindicalistas, como Alexandre Vieira, tipógrafo da Biblioteca Nacional e o Secretário Geral da Confederação Geral do Trabalho, Manuel Joaquim de Sousa. Dentro desse espírito, António Sérgio chega mesmo a convidar, em 1923, integralistas lusitanos para criarem a revista “Homens Livres”, em cujos dois números colaboraram além do próprio, António Sardinha, Proença, Cortesão, Simões Raposo, Aquilino Ribeiro, Afonso Lopes Vieira, Augusto Costa, Castelo Branco Chaves, Quirino de Jesus e Reinaldo dos Santos. E afirma: “Pareceu-nos conveniente o haver um órgão dos homens livres para os homens livres; dos homens vivos para os homens vivos, de qualquer classe, doutrina política ou religião; afirmador, por isso mesmo de uma Ideia Nacional, de uma finalidade portuguesa, anterior e superior às finalidades partidárias; algo enfim que se parecesse em altitude com refúgio sublime das montanhas, e a que pudesse caber sempre o belo poema de Herédia: (…) Je crois entendre encore le cri d’un homme libre”. A “Seara Nova” foi porventura a mais visível e influente das consequências do movimento de ideias gerado no Casarão de S. Francisco, sob a direção de Jaime Cortesão. Tratou-se de fazer dos “fatores democráticos” a continuidade de um movimento de liberdade que chegou aos nossos dias.
Por ocasião da preparação dos duzentos anos da independência do Brasil referimos três obras que permitem compreender a realidade cultural brasileira – da autoria de Jaime Cortesão, António Cândido e Celso Lafer.
ENTENDER A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL Jaime Cortesão (1884-1960) foi um dos portugueses que melhor compreendeu o Brasil, onde viveu o período mais fecundo do seu exílio político. A sua obra é prolífera, permitindo-nos escolher como referêncial “Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil” (Portugália Editora, 2 volumes, 1966), onde encontramos uma análise muito rica da génese do movimento Bandeirante, sobre a política audaciosa de D. João IV no Brasil, tantas vezes pouco lembrada, mas decisiva para a unidade territorial do território, além da consideração da figura de António Raposo Tavares (1598-1659), nascido em Mértola e chegado a S. Paulo em 1618, na comunidade cultural luso-brasileira, quer no plano nacional no Brasil e em Portugal, quer no contexto internacional, como precursor do conceito de Estado moderno. Encontramos dois “bandeirismos” que se completam, na expressão do historiador: «um luso de raiz, espontâneo ou oficializado, implícito, aliás, em toda a história dos descobrimentos e conquistas dos portugueses; outro misto, desencadeando-se sem freio com o vigor rompente das forças naturais, moldado apenas aos acidentes e grandes sulcos geográficos do território; obedecendo a necessidades económicas primárias…». A obra de J. Cortesão é magnífica, de uma assinalável probidade histórica, mostrando a tensão entre duas influências que se digladiaram, bandeirantes e jesuítas, da qual resultaria a grande unidade brasileira. O percurso das bandeiras de Raposo Tavares, de 12 mil quilómetros em 4 anos, desde S. Paulo até Belém do Pará, rompendo o meridiano de Tordesilhas constitui uma das grandes epopeias em prol do conhecimento do mundo desconhecido. Sem pôr em causa a violência, os conflitos, a contradição entre a diplomacia oficial e as ações de facto, o historiador procura dar-nos nota sobre o modo como ocorreu a formação territorial do Brasil, com todas as tragédias e vicissitudes.
A GÉNESE DA LITERATURA BRASILEIRA A obra mais marcante de António Cândido de Mello e Souza (1918-2017) é a “Formação da Literatura Brasileira” (1959), que influenciou várias gerações de professores e intelectuais, permitindo entender a encruzilhada plural de influências da cultura brasileira, como ponte entre diferentes gerações – aproximando Oswald de Andrade, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Usando o método dialético e comparatístico, a partir da sua formação sociológica, pôde dar uma nova luz para a compreensão do caráter poliédrico da poderosa criação literária e cultural do Brasil. Antonio Cândido chama a atenção para os arrabaldes do trabalho crítico e para as razões que determinam de que maneira somos levados a encontrar, conhecer e amar as obras que se tornam prediletas, “sobretudo quando nos fazem companhia pela vida toda numa sucessão de leituras”. Por isso, sobre Darcy Ribeiro (1922-1997), recorda as três bandeiras que cobriam o seu caixão: a do Brasil, a do seu Estado de Minas Gerais e a dos Sem-Terra, referindo que “elas não encarnavam o país dos donos da vida, nem eram pendões de festa cívica, objetos cansadíssimos de discursos em cerimónias rotineiras”. E assim se incorporavam “os pais dos pobres, dos que precisam ser finalmente incorporados à nação”.
A POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL Celso Lafer (1941) é, entre os contemporâneos um autor importante para a compreensão do Brasil. Discípulo de Hannah Arendt e de Norberto Bobbio, tem desenvolvido a sua ação intelectual em torno da relação entre Ética e Política, entre valores e meios técnicos, a partir da exigência de uma racionalidade pública tornada essência do desenvolvimento. Escreveu “Paradoxos e Possibilidades – Estudos sobre a Ordem Mundial e sobre a política exterior do Brasil num sistema internacional em transformação” (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982). Como o seu amigo Hélio Jaguaribe (1923-2018), considera fundamental a convertibilidade do valor da cultura em capacidade criadora, segundo a flexibilidade de “geometrias variáveis”, numa lógica de integração aberta e de uma democracia social complexa. Razão e vontade exigem um compromisso ético que marca os limites do exercício dos dois fatores. Depois do fim da guerra fria prevaleceu um sistema de polaridades difusas, modeladas pelo jogo de duas forças profundas: as centrípetas de unificação e globalização e as centrífugas de fragmentação. Quando lemos “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), compreendemos que a obra se encontra na encruzilhada crítica de obras referenciais como “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre (1900-1987) e da “Formação do Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Júnior (1907-1990). Como salienta António Cândido: «trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo – são pares que o autor destaca no modo de ser ou na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os brasileiros». O tempo confirmou a necessidade de uma análise da realidade brasileira mercê da justaposição de fatores contraditórios – ex parte principis e ex parte populi. Deste modo, poderemos entender que o desafio atual do contexto brasileira se relaciona com a qualidade da democracia e com a eficiência dos instrumentos política de legitimidade, representação e participação.
«Os Factores Democráticos na Formação de Portugal» de Jaime Cortesão (Livros Horizonte, 1964), com Prefácio de Vitorino Magalhães Godinho é um clássico da literatura portuguesa do século XX.
PENSAR NAS RAÍZES DE PORTUGAL É da origem de Portugal e do seu desenvolvimento que trata, falando das raízes do que designamos como liberdade e como patriotismo. Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos? A democracia é um conceito moderno com bases antigas. E é de um patriotismo prospetivo que aqui se trata! Leia-se, assim, este livro com olhos de futuro. Manuel Braga da Cruz no Relatório de Investigação sobre Nacionalismo e Patriotismo na sociedade portuguesa atual publicado em 1988 pelo Instituto de Defesa Nacional, afirma que «Portugal parece ter saído do processo de descolonização sem particulares problemas de identidade nacional, e parece ter entrado no processo de europeização e de regionalização com uma consistente adesão à soberania nacional e com uma equilibrada e solidária consciência cívica e nacional. Não só a representação da identidade, a vontade de soberania e a consciência cívica dos portugueses não estão em crise, como surpreendem os elevados índices de adesão que suscitam e pelo equilíbrio que manifestam quando analisados comparativamente. O que revela porventura algum ‘paroquialismo’ e um estado pouco ‘cosmopolita’ do desenvolvimento social e político, mas indica, também, e sobretudo, que são profundas e antigas as raízes e as razões do nacionalismo e do patriotismo português». Partimos daqui para a consideração dos fatores de coesão social, que normalmente são apontados como característicos da realidade portuguesa, articulando-os com as limitações existentes no tocante à vida das instituições da sociedade civil e à respetiva mediação, capaz de favorecer a mobilização cívica em torno da participação cívica, da representação e da responsabilidade cidadã. E aqui há fatores contraditórios a considerar – que relacionam os aspetos positivos referenciados e as fragilidades patentes na participação eleitoral até à inexistência de uma forte mobilização de instituições da sociedade civil. Assim, continuando a citar o coordenador do estudo: “quanto à temática da soberania nacional, os fatores de adesão e de distanciamento parecem não ser tão uniformes nem unidirecionais”. A regionalização (entretanto suspensa por um referendo não vinculativo) e a europeização não deixam, contudo, de levantar receios relativamente à ideia de soberania nacional. E aí os níveis de instrução e de integração social apresentavam influências antagónicas na perceção de riscos de integridade e de meios de defesa nacional. Com efeito, a sociedade portuguesa apresenta, desde muito cedo, elementos caracterizadores de configuração complexa que nem sempre são bem compreendidos.
ENTRE O ATLÂNTICO E O MEDITERRÂNEO De que falamos? De uma homogeneidade identitária e linguística e da persistência de uma independência politica, caracterizada pela preeminência do Estado perante a Nação, pela força agregadora da costa marítima (por contraponto à continentalidade de Espanha, sobretudo depois de 1492), pela complementaridade entre o Atlântico e o Mediterrâneo, pela simultaneidade da construção da nacionalidade através de dois movimentos: um de Norte para Sul, característico da reconquista cristã, e outro de Sul para Norte, mercê da consolidação da influência moçárabe e moura (na expressão tradicional), o que fica bem patente na precoce consolidação do português como língua nacional e na confluência entre os falares do norte e do sul, sem a emergência de dialetos (já que o mirandês é uma língua, que resulta da influência do asturo-leonês. A decisão de D. Dinis ao adotar o português como língua oficial e dos tabeliães e ao criar o Estudo Geral revelar-se-á decisiva para a consolidação tão cedo do português como fator de unidade nacional – o que se soma às migrações internas devidas a uma distribuição irregular da população ao longo do território. Conhecemos o entendimento de Alexandre Herculano, segundo o qual a nação possuiria uma índole democrática (usando a expressão de Cortesão, que é algo anacrónica para o Mestre de “Eurico”), a qual proviria da organização municipal que durante a Idade Média se estendeu, favorecida pelas concessões dos monarcas, a todo o território nacional. No entanto, o historiador nunca terminaria esse estudo, faltando a demonstração das origens do nosso poder local no município romano e das continuidades nos impérios visigótico e árabe. Isto, enquanto diversas pistas eram seguidas e associadas à pergunta sobre as origens municipalistas, descentralizadas de Portugal.
AS CLASSES POPULARES E A NAÇÃO Afinal, para Jaime Cortesão “o acesso das classes populares à administração local e pública e a sua ingerência na política da nação não representam herança ou doação, mas sim conquista revolucionária. Ao lado do carácter universalista que marca a Nação desde as origens, vamos encontrar na base das suas liberdades públicas e da própria independência nacional, a vivificá-las, a renovação das condições de trabalho e um espírito de autonomia em luta e oposição permanente contra o estrangeiro”. Esta ideia de conquista deve-se a uma evolução da economia e do funcionamento da sociedade, que obriga a assumir responsabilidades pelos novos agentes económicos, mercadores e mesteirais. Há o nascimento de uma aliança, na qual o reino de Portugal se baseia, entre o poder real e os municípios, numa lógica de reconhecimento da liberdade, que coexiste com o centralismo político do monarca. E S. Tomás de Aquino proclama que o atributo essencial da soberania “é o poder de fazer as leis, e este pertence a toda a multidão ou àquele que a representa. Num bom governo é necessário que todos tomem a sua parte”… Ora, com uma adequação da população ao território, como a organização do governo, com a definição dos poderes locais e com o surgimento das bases do Estado moderno são lançadas as bases do que Cortesão designa como “caboucos da democracia em Portugal”. Estamos perante os prolegómenos de uma legitimidade nova – e esses fundamentos não descem às profundidades da administração romana. As tendências universalistas foram desenvolvidas durante a Idade Média e eclodiram e triunfaram, em Portugal, durante a revolução que levou ao trono o Mestre de Avis, determinando a formação social predominante, a missão histórica e o carácter ideal da Nação. E é este humanismo universalista de raiz franciscana, também próximo de Joaquim de Flora, que Cortesão considera entre as razões do sucesso da independência portuguesa, das instituições, da mediação e do respeito pelas diferenças. E assim pode superar as profecias do Bandarra – proclamando, como o fará o Padre António Vieira, que o “Desejado” não é um morto e que o futuro português não é puro sonho. O “Desejado” era um vivo e existia, era D. João IV e as saudades do futuro exigiam a reconstrução audaciosa do País… E sem idealizações abstratas o que Cortesão faz, num caminho crítico, é dizer que estão no código genético de Portugal a exigência da liberdade e de uma articulação de esforços no sentido de um projeto de futuro, seriamente planeado e não sujeito ao improviso.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
O ensaio de Jaime Cortesão “Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal”, para servir de introdução à História do Regimen Republicano em Portugal, dirigido por Luís de Montalvor (1930), constitui ainda hoje uma peça referencial para a compreensão das mais importantes continuidades numa história antiga e complexa.
ANALISTA CRITERIOSO
Jaime Cortesão foi um analista criterioso e atento das raízes de Portugal. Sobre a obra referida pode dizer-se que a sua perenidade se mantém viva – uma vez que, seguindo os passos de Herculano, mas superando-os em nome da crítica histórica, encontramos elementos que merecem atenção, até para que se constituam em incentivo ao aperfeiçoamento das instituições. De facto, a ideia moderna de mediação institucional encontra nas considerações de Cortesão uma base sólida à luz da qual podemos ver o constitucionalismo nos dias de hoje, no sentido do seu aperfeiçoamento. Releia-se o historiador: “Em Portugal é do próprio movimento das comunas que vai nascer o conceito supremo da Nação; e apenas desaparecidas as causas que entravam aqui, mais ainda do que no resto da Europa, o desenvolvimento político das classes populares, os princípios democráticos vão retomar a sua marcha até o advento da República. Os mesmos centros urbanos, que em 1383 elegeram o mestre da Avis e tão poderosamente contribuíram para assegurar a independência nacional, vão afirmar de novo a sua consciência política e capacidade nas lutas pela liberdade durante o período liberal e republicano”. Compreenda-se a importância da estratégia afonsina de mobilizar os municípios moçárabes, bem como o impulso audacioso do período dionisíaco na delimitação das fronteiras, na definição da língua e no reforço da aliança entre o poder real e os concelhos… E o modo como as Cortes de Coimbra (1385) com João das Regras definiram a nova legitimidade portuguesa torna evidente que aquilo que Cortesão designa como “fatores democráticos” constitui o pressuposto fundamental da independência portuguesa e da sua persistência multissecular – nas quais se aliam de modo indelével a vontade dos portugueses e a longa e omnipresente costa marítima, que se contrapõe à continentalidade da restante Península Ibérica. E Jaime Cortesão fala-nos de tendências universalistas, da afirmação da liberdade dos povos no sentido da boa organização e da satisfação justa das suas necessidades, que, “desenvolvidas durante a nossa Idade Média”, “eclodiram e triunfaram durante a revolução que levou ao trono o Mestre de Avis, determinando a formação social predominante, a missão histórica e o carácter ideal da Nação”… E, ao estudar o Brasil, o historiador pôde projetar globalmente a diversidade do mundo da língua portuguesa – num reforço inequívoco de uma identidade multímoda, caracterizadora do humanismo universalista. Sem idealização, e com a preocupação de reunir argumentos suficientemente claros e sólidos, Cortesão coloca-nos perante a necessidade de irmos, com uma vocação europeia e uma projeção global, aperfeiçoando pela experiência e pelo tempo as instituições, a representação democrática e a participação cívica.
UMA LIGAÇÃO NECESSÁRIA.
A invocação de Jaime Cortesão faz sentido quando se assinala o primeiro aniversário do falecimento de Mário Soares e quando se desenvolvem iniciativas ligadas ao bicentenário do constitucionalismo português, dentro de dias na cidade do Porto, para assinalarmos os duzentos anos do Sinédrio, e há bem pouco na invocação da pioneira abolição da pena de morte em Portugal e da condenação ilegal e ilegítima de Gomes Freire de Andrade e dos Mártires da Pátria - acontecimento justamente lembrado na representação na Assembleia da República da peça de Luís Sttau Monteiro Felizmente Há Luar. Tudo isto na perspetiva da celebração da Revolução de 1820 e da Constituição de 1822 – e do que se lhe seguiu em termos de consagração do Estado de direito, do primado da lei e das legitimidades do título ou da origem e do exercício. E se falo dos “fatores democráticos” e invoco a memória amiga e próxima de Mário Soares é para dar ênfase à continuidade e permanência da ideia democrática em Portugal – sobretudo num tempo em que somos chamados a aperfeiçoar e a reforçar as instituições baseadas na liberdade, na igualdade, no pluralismo e na cidadania livre e responsável. Mário Soares é um exemplo que tem de ser lembrado. O constitucionalismo moderno foi por si assumido como desafio e responsabilidade – a partir de um compromisso dinâmico de integração e de inclusão. Quantas vezes falámos dos desafios e da reflexão de Jaime Cortesão ou do grupo da “Seara Nova”, com António Sérgio, Raul Proença, Raul Brandão ou Rodrigues Migueis, como sinais de exigência? Quantas vezes invocámos a importância do respeito mútuo e da laicidade – num espaço público de respeito mútuo, de diversidade, de coesão social e de autêntica liberdade?
INCONFORMISMO E LIBERDADE.
Não esqueço o que o meu querido amigo António Alçada Baptista tanto gostava de lembrar – o inconformismo de Soares permitia que ele estivesse sempre do lado da liberdade, custasse o que custasse… Era uma garantia para todos, uma vez que as águas mornas podem tornar-se perigosas. Em nome desse magistério cívico, vem à lembrança a ideia necessária de “República Moderna”, como aquela por que Sérgio pugnou e que está bem evidenciada em textos do pós-guerra e na audaciosa apresentação da candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República. Essa dimensão histórica, assente, na herança da primeira geração romântica, com Garrett e Herculano e continuada pela grande geração das Conferências Democráticas, com a intervenção fundamental de Antero de Quental sobre as Causas da Decadência, e com a tentativa (de grande alcance) de implantar uma “Vida Nova”, que serviu para demonstrar que a sementeira de ideias podia ter consequências de larguíssimo prazo, desde que baseada no espírito crítico e na necessária superação do pessimismo e da decadência. Eça de Queirós e Oliveira Martins tornaram, assim, o sentido de ironia e a força da análise como tomada de consciência de que só a autocrítica e a desconstrução dos mitos poderiam ajudar à mobilização de energias contra o atraso como destino. E a cultura portuguesa do último século reforçou essa mesma ideia, designadamente com Eduardo Lourenço na sua psicanálise mítica do destino português. Hoje, no momento em que no horizonte há nuvens perturbadoras, em que a ideia da democracia como sinónimo de liberdade é posta em causa, em que se fala de pós-verdade, quando julgávamos que essa ideia estava sepultada na obra Orwell, ou quando os sinais de fragmentação europeia se constituem em ameaças a uma cultura de paz e de desenvolvimento – devemos lembrar a persistente voz determinada e crítica de Mário Soares, um intransigente defensor da liberdade da linhagem de Jaime Cortesão.
A Exposição “Tudo se Desmorona. Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal”, na Fundação Calouste Gulbenkian, comissariada por Ana Vasconcelos, Carlos Silveira e Pedro Aires de Oliveira, constitui uma oportunidade para lembrar (tal como acontece em Londres) um momento dramático e decisivo na História europeia do século XX.
UMA POLÉMICA INTENSA “A grande verdade, pelo que diz respeito ao progresso da Humanidade, é que existe um horrível tumor militarista corroendo a Europa e que vários operadores se preparam para o extirpar. Qual será o resultado da operação? Esperemos; mas julgamos bem que, por muitos estragos operados, a Humanidade sofrerá ainda longo tempo desse horrível mal”. É Jaime Cortesão quem o escreve, quando a Grande Guerra dava os seus primeiros passos – em 10 de agosto de 1914. A lucidez das palavras é profética. Ninguém esperava que tudo se precipitasse, mas havia razões profundas para a eclosão do desastre. Muitos julgavam que a guerra seria rápida, depois de pensar que era impossível, até porque o Kaiser Guilherme II era neto da Rainha Vitória e porque se pensava que os proletários mobilizados para a frente recusar-se-iam a combater quando os respetivos Estados-Maiores dessem ordem para atacar. Perante tais circunstâncias, é fácil de perceber como a sociedade portuguesa se dividiu quanto a saber se deveríamos ou não participar na guerra. É este o tema da Exposição “Tudo se Desmorona. Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal”, na Fundação Calouste Gulbenkian, comissariada por Ana Vasconcelos, Carlos Silveira e Pedro Aires de Oliveira. E a oportunidade do tema não oferece dúvidas. Lembra-se a guerra em nome da cultura e da paz. Houve polémica intensa entre nós. Jaime Cortesão e Raul Proença defenderam a intervenção. Pascoaes disse: “a hora é magnífica (…). Se formos para a guerra, mostraremos ao mundo que estamos prontos a morrer pela pátria (…) e Portugal criará novas raízes na História”. No entanto, António Sérgio e Aquilino Ribeiro tinham entendimento diverso, já que a prevalência dos fatores económicos dominantes tornaria os benefícios ilusórios. No “Portugal Futurista”, Álvaro de Campos assumiu uma violenta posição antiguerra, com laivos germanófilos. Em contraste, na mesma revista (proibida pela censura), Almada Negreiros considerava a guerra como “a grande experiência” regeneradora da pátria futura. Em pano de fundo, havia o panorama negro traçado por Raul Brandão em Húmus: “Na barafunda da Europa ardem aqui e ali cidades inteiras. Um brasido e gritos”. E os ecos nas Memórias – Vale de Josafat eram igualmente pesados: “Foi a morte que se aproximou de repente de nós todos, dos desgraçados e dos outros e nos pôs o problema da vida como uma faca apontada aos peitos. A morte passou para o primeiro plano”.
UM REGIME MUITO FRÁGIL A República era muito jovem e as instituições não estavam estabilizadas. A polémica era melindrosa. O eco popular das campanhas intervencionistas foi diminuto. De facto, não havia condições para uma resposta eficaz e, mais do que o teatro europeu, havia África – a lembrança do velho Ultimatum inglês de 1890 não se tinha apagado, havendo obrigações nacionais, que as ambições alemãs punham em xeque no norte de Moçambique e no sul de Angola. Esse apelo africano tornou-se natural, mas Basílio Teles dizia: “A desilusão, a fadiga, o sofrimento e o mal-estar de todo o mundo acabarão breve por fazer ouvir a sua voz retumbante e imperiosa; e os partidos da guerra, por lhe obedecer sem murmurar, pondo por uma vez ponto na pavorosa chacina”… A pergunta sacramental era: seria necessária a participação portuguesa na frente europeia para salvaguardar em futuras negociações de paz a manutenção dos nossos territórios? Não tinham tido Londres e Berlim, em 1898 e em 1912-13, a tentação de partilhar os despojos de um desmembramento do império africano português? Apesar de tudo, a situação no sul de Angola estava estabilizada, com a rendição das forças alemãs em 1915, ao contrário do que ocorria no norte de Moçambique. Foram, todavia, os ingleses que deram pretexto para a declaração de guerra alemã de março de 1916 ao instarem os portugueses a apresarem os navios alemães estacionados em portos portugueses. Mas os britânicos conheciam bem as nossas fragilidades. Se se falou do “milagre de Tancos”, pela preparação rápida do Corpo Expedicionário Português, o certo é que o desastre de La Lys (9.4.18) tornou-se um novo Alcácer-Quibir. Afonso Costa procurou fazer da guerra um fator de unificação interna que fortalecesse a República, mas a frente doméstica acabaria em colapso com o golpe e o assassinato de Sidónio Pais. O complexo contexto em que se desenvolveram os acontecimentos portugueses ligados à I Grande Guerra foi analisado no Colóquio Internacional intitulado significativamente “Ninguém Sabe que Coisa Quer – A Grande Guerra e a crise dos cânones culturais portugueses”, comissariado por António José Telo. De facto, os argumentos invocados na altura anulavam-se mutuamente, quanto às origens e às possíveis consequências do trágico conflito, que se tornaria origem de uma nova Guerra dos Trinta Anos, que só terminaria em 1945.
UMA ARRISCADA PARTICIPAÇÃO Para o bem e para o mal, Portugal seria profundamente marcado por essa arriscada participação. A crise da I República, as práticas e as representações que marcaram a sociedade e a cultura, os temas religioso e social, a génese da ditadura e do Estado Novo, a questão colonial, o papel de Portugal no mapa geoestratégico, a memória presente até 1974 e decisiva para a prevenção e para a consolidação do regime democrático atual – tudo esteve bem evidente numa reflexão atual e pertinente, em que o tema da Guerra (como acontece em Londres no Imperial War Museum – agora a comemorar cem anos) constitui ponto de partida para uma reflexão histórica e estratégica sobre um conceito aberto e partilhado de identidade cultural, que se revela atualíssimo, sobretudo quando falamos das legitimidades nacional, supranacional e cidadã – num mundo em que o local e o global se confrontam e articulam contraditoriamente. Na conferência proferida pelo Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente, foi lembrada a proposta feita pelo Papa Bento XV aos governo beligerantes em 1 de agosto de 1917, para acabar com a “inútil carnificina”: a) desarmamento simultâneo e recíproco; b) arbitragem internacional; c) liberdade dos mares: renúncia recíproca a indemnizações de guerra; e) reexame conciliador das reivindicações territoriais. Ninguém ouviu. Pelo contrário, as potências consideraram excessiva a referência à carnificina. Mas a sensibilidade “politicante” (diferente da atitude “zelante”) de Bento XV foi importante para Portugal e para a acalmação na questão religiosa (até com a beatificação de Nuno Álvares, em 1918), quer através do papel muito importante dos capelães militares na Guerra, quer pelas consequências duráveis da concordata informal, do modus vivendi de 1919, do apoio às missões católicas. Jaime Cortesão diria em julho de 1920: “Vem aí a vida nova. Quem não o sente? Mas quem a conhece de antemão?! Sabe-se apenas que as suas mais altas esperanças mergulham as raízes nesses milhões de sepulturas. Os túmulos dos soldados da grande guerra sãos caboucos donde o palácio do futuro vai erguer-se”.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença