Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Aqui chegado, procurarei ser breve, espero ser claro e farei por isso. Com algum receio de mim, arrisco recorrer a Alberto Caeiro e pedir, ao primeiro heterónimo de Fernando Pessoa, que me autorize a dizer que o entendimento japonês do mundo se revela num trecho do poema II do Guardador de Rebanhos, que seguidamente transcrevo:
Creio no mundo como num malmequer,
porque o vejo. Mas não penso nele
porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(pensar é estar doente dos olhos)
mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo da Natureza não é porque saiba o que ela é,
5. Arte e literatura: subtileza, silêncio e sombra
Sendo basicamente uma tradução seu Nihon Bunka Shi (História da Cultura Japonesa), o ensaio do professor Ienaga Saburo intitulado, em inglês, Japanese Art: a Cultural Appreciation, percorre a evolução faseada da cultura nipónica, desde a idade da pedra até ao fim da era Edo. Pretende assim identificar as principais fisionomias do desenvolvimento dos vários aspetos da cultura japonesa durante o que se pode chamar período anterior à modernização -- isto é, o período anterior à Restauração Meiji de 1868 e a resultante introdução, em larga escala, de aquisições da ciência e tecnologia ocidentais, tal como da revolução industrial, que por sua vez conduziram ao desenvolvimento de uma sociedade capitalista. Como digo no prefácio deste meu itinerário, o Japão que desta vez viemos visitar é sensivelmente esse, ou seja, o que começa no século VI / VII, com reminiscências das tradições antigas, anteriores ao registo escrito, e se prolonga até quase ao fim do século XIX, quando o Império do Sol Nascente começa a tornar-se -- e a impor-se como -- uma forte potência mundial. Para simplificar, digamos que se trata do Japão clássico.
Nas suas conclusões, o professor Ienaga aponta como primeira característica da cultura japonesa, ao longo da história, a falta de interesse na questão do conflito. E recorre ao filósofo e historiador Tsuda Sokichi (1873-1961) para afirmar que "bem", para um japonês, significa conformidade à ordem social e às autoridades, do mesmo modo que opor-se-lhes é "mal". A distinção entre bem e mal desenha-se claramente nesta definição. Mas "bem" não é apanágio de uma pessoa de altos ideais e devoção ao melhoramento de toda a humanidade. Em vez disso, significa o tipo de pessoa que sempre se dedica à manutenção do status quo e que obedece às leis do que se chama giri, palavra que é por vezes imperfeitamente traduzida por "justiça social", mas que traz com ela conotações de toda a espécie de obrigações e responsabilidades. [Sobre o giri escrevi a páginas 161 e 162 do meu Fomos em Busca do Japão, ilustrando com um exemplo respigado na literatura japonesa da era Meiji, precisamente do romance autobiográfico A Bailarina de Mori Ogai (1862-1922)]. Continua Ienaga: Pelo contrário, uma pessoa má será aquela que tenta dar rédea livre aos seus próprios desejos pessoais, e não, necessariamente, a pessoa fadada viciosa, de diabólica natureza, que considera o mal uma fonte de regozijoe que tenta espalhar destruição na própria vida humana. Tsuda fez esta análise sobre a literatura do período Edo, mas eu creio que pode ser vista como um comentário sobre uma característica que persiste através da cultura japonesa. Subjacente a este pensamento, há muita subtileza: não se dramatiza a luta entre o bem e o mal, as razões desta devem ser achadas no mais profundo da alma e condição humanas, têm a ver com o homem e a sua circunstância, sim, não somente com as obrigações do giri, mas, mais ainda, com a natureza ou a lembrança desse cordão umbilical, já que a frase de Ortega y Gasset -- estou sempre a lembrá-lo -- el hombre es un transfuga de la naturaleza encontra, na cultura japonesa, na literatura como nas artes plásticas, o sentimento contrário, esse de que o ser humano está indissociavelmente unido à natureza... A ideia de culpabilidade é outra.A pintura nipónica sempre privilegiou os temas da natureza, designadamente os símbolos -- retratados na fauna e na flora -- da sucessão das estações, ilustração clara do círculo do tempo, ou de como é aparente o conflito, já que as caras -- ou as verdades -- são aparências do mesmo ser. Daí serem inúteis e perigosas as palavras e as definições, mas sempre útil e generoso o silêncio, tal como essa busca da sombra em que se abrigam os segredos da alma e da concórdia. Silêncio e sombra são irmãos gémeos: para se escutar bem, é necessário fechar os olhos; e estes veem melhor quando não se distraem por aparências. Há um exercício de tiro ao arco, ainda hoje praticado, de inspiração zen, que nos ensina a acertar bem no centro do alvo se tivermos os olhos fechados no momento do disparo. Diz Pascal que le coeur a des raisons que la raison ne connaît pas; parafraseando, digo agora que le coeur a des visions que la vision ne connaît pas...
Para primeira abordagem de todos esses temas, digo quanto baste no Fomos em Busca do Japão. Mas, para este itinerário de muitos olhares, parece-me interessante, pensando sobretudo em visitas a templos de Kyoto como o Shoren-in, o Chion-in, o Nanzenji, e mesmo o Myoshinji, ou ainda o palácio Nijojo, falar da pintura de interiores -- sobre portas deslizantes, paredes, divisórias e biombos -- do período Heian, em que os temas são tirados da natureza ou de acontecimentos humanos. A esse universo se tem chamado "pintura das quatro estações", não só porque estas se encontram identificadas pelo curso dos astros, pela flora e fauna, mas porque as pessoas também surgem nos atos sociais pertinentes a cada época, conformes a calendários estabelecidos: peregrinações, festivais, celebrações em templos, etc. O professor Ienaga Saburo observa bem que ambas [as cenas da natureza e as com pessoas] são apresentadas em harmonia, nunca em conflito. Por exemplo, se o tópico for ameixeiras em flor, a pintura mostrará algo como raparigas entrando num jardim para ver as árvores. Se o assunto forem gansos selvagens, as aves provavelmente surgirão associadas a viajantes… ...Quando são ostensivamente dedicadas à descrição de coisas naturais, as pinturas incluem o humano, porque os pintores olhavam o homem e o seu ambiente natural como intimamente ligados entre si. Mesmo no género de pintura conhecido por "meisho-e", ou pinturas de lugares famosos, representações objetivas de cenas populares eram frequentemente meras cópias de pinturas das quatro estações com acrescentamento de trechos de poemas. (Há, neste museu, um biombo do 1º quartel do século XVIII, representando Itsukushima, célebre santuário shintoísta rodeado de templos budistas, precisamente na "ilha do templo" ou Myajima, em frente de Hiroshima, que comentarei precisamente pelo modo como anima com gente a representação de um lugar famoso]. Pinturas tratando do amor de homem e mulher, assunto de interesse puramente humano, tratado ao jeito de novelas, ligam as aventuras amorosas às mudanças de estação. Estes e outros exemplos semelhantes tornam claro que a pintura Yamato-e -- ou detradição nipónica -- interpretava e exprimia o homem e a natureza numa relação de inseparável unidade. E não só a pintura que, aliás, como já referi, surge muitas vezes a integrar a caligrafia de um poema, mas de outros modos vários a sensibilidade japonesa vai insistindo nessa relação ontológica com a natureza. Quem tiver lido, ou vier a ler, o Genji Monogatari, ou qualquer haiku ou demais poesia japonesa -- ou mesmo romances modernos, como os do prémio Nobel Kawabata -- notará certamente que está lá, sempre presente, uma qualquer marca dessa intimidade da natureza no ser humano. Esta nipónica alma, enquanto modo muito próprio de pensar e sentir, deve-se, creio, ao tal amae -- que gosto de definir como a saudade irrecuperável do leite materno ou como uma espécie de resistência a transfugir da natureza -- talvez, quiçá, também ainda, ao mito inicial de um totalitarismo telúrico, ou à sageza budista de que ganhar é não desejar... Amae é aspirar-se à benevolência para connosco. Seja o que e como for, nos momentos críticos -- assim reza a História -- o ninjo dos afetos foi sendo vencido pelo giri das obrigações, por esse imperativo de disciplina e lealdade social, que levou tanta gente a morrer pelo seu chefe ou senhor, inclusive cometendo sepuku ou harakiri, se entretanto poupados pelo inimigo, desde os samurai das guerras feudais aos kamikaze que, aviadores suicidas, gritavam na 2ª Grande Guerra Tenno Henka banzai!, longa vida ao divino imperador...
Mas, ficando pelos afetos, não posso deixar de referir, para além do Byodo-in, sobretudo pela expectativa do sol que iluminará Amida, mas também pela harmoniosa integração do templo na natureza circundante, o santuário de Toshogu, em Nikko, a nordeste de Tokyo, exemplo máximo do que já chamei barroco Tokugawa, ainda mais conivente com a verdura e o porte do bosque que o rodeia. Outra visita imperdível, como a Villa de Katsura, a sudoeste de Kyoto, insuperável arquitetura de segunda residência da nobreza nipónica, em que cada sala se vira para o silêncio e sombra da meditação interior ou se abre para a surpresa constante da visão da natureza. Até tem uma destinada a ver-se a lua cheia...
4. A revelação de outro mundo: os nambam e o século cristão
Tudo o que se tem vindo a contar do Japão, penso, ajudará a perceber o ambiente social, político e cultural que os missionários jesuítas e os mercadores portugueses vieram encontrar em meados do século XVI. Em Portugal, melhor dizendo, cá entre portugueses, concentramo-nos muito, demasiadamente, numa elegia elogiosa, encomiástica, saudosa e fadista, do nosso passado histórico, de encontros pioneiros, dos mundos que demos ao mundo, etc... etc... Reagimos, com indisfarçado ressentimento, ao que pensamos ser um apagão dos nossos pretéritos feitos na literatura e celebrações da Europa sobre a herança comum, de cada vez que alguém não os glorifica. Todavia, nem sempre nos interrogamos sobre o porquê de tanta, e tão boa, investigação historiográfica dos descobrimentos ultramarinos se dever a estrangeiros... Lembro, pensando no Extremo Oriente e no Japão, Charles Boxer e Michael Cooper, ambos súbditos de Sua Majestade Britânica, além de muitos outros exemplos. Já hoje, as coisas vão mudando, os nossos historiadores vão saindo do nosso acanhamento, até consultamos outras fontes, as do lado de lá, para percebermos que ideia, afinal, outras gentes tinham de nós. Como sentiram os japoneses de quinhentos/seiscentos essa inesperada chegada de homens de pele branca, indumentária estranha, armas de fogo, portadores de mercadorias, animais, costumes desconhecidos, acompanhados de criados e escravos de cor escura, todos, em fila, formando procissões em que capitão-general, oficiais, clérigos, mercadores e servos ocupavam posições atribuídas, desempenhavam funções determinadas, caminhavam com ordem?
O primeiro registo de uma reação aos recém chegados portugueses encontra-se na crónica japonesa Yaita-ki, que reporta um comentário dum intérprete chinês, que se prestou a essa função, aquando da primeira reunião de portugueses com gente de Tanegashima: Estes homens são mercadores de Seinanban [barbária do sudoeste]. Entendem, até certo ponto, a diferença entre Superior e Inferior, mas não sei se eles têm propriamente um sistema de etiqueta cerimonial. Comem com os dedos, em vez de pauzinhos, como nós fazemos. Mostram os seus sentimentos sem qualquer autocontrolo. Não conhecem o significado dos caracteres escritos. São gente que passa a vida a deambular por aqui e ali. Não têm morada certa e trocam as coisas que têm pelas que não têm, mas com tudo isso são gente inofensiva. Esta observação é mais compreensível se atendermos ao facto de que os primeiros portugueses a arribar em Tanegashima não eram fidalgos nem missionários, mas simplesmente mercadores ambulantes e aventureiros, que iam fazendo pela vida, em busca de fortuna por longínquas paragens. Além disso, no Japão coevo, vingava o regime de uma ordem social rígida, inspirada pelo confucianismo, com regras protocolares rigorosas, tudo, ainda por cima, apoiado pelo desejo de paz ordeira e segura, depois de muitos anos de guerras feudais. Na consciência moral nipónica, como explico alhures, as obrigações ou deveres sociais, como, por exemplo, a solidariedade, o respeito e a obediência aos superiores, constituem aquilo a que chamam giri, e o comentário do intérprete chino tem a ver com isso. Por isso mesmo, quando chegaram capitães generais e oficiais, fidalgos portugueses, e os missionários jesuítas, todos tiveram grande cuidado com as aparências e prestígio do seu vestuário e comportamento, o que lhes granjeou admiração e reverência dos japoneses.
Mas o contacto com os portugueses também se celebrou pelo lado ninjo da consciência japonesa, impulsionador de afetos como de criação artística, chamemos-lhe o reino do coração: por dentro de um samurai, com suas armas, ou dum daimyo, com o seu leque símbolo de poder, encontravam-se seres humanos acolhedores e simpáticos, que gostavam de convidar os estrangeiros para suas casas, a comerem, beberem e dormirem, e ainda se pelavam por ser convidados para os navios portugueses, para mais uns ágapes. Espicaçados pela curiosidade, até escravos negros, que serviam os portugueses, eles chegavam a convidar, para melhor os conhecerem. E pareciam felizes com tudo isso, a julgar pela facilidade com que começaram a imitar os nanban no traje, na alimentação e até nas rezas... Ou pela rapidez com que dezenas de milhares de japoneses se iam convertendo ao cristianismo. Claro que a prosperidade trazida pelo comércio externo que os portugueses asseguravam ajudou à festa e ao desejo de terem com eles as melhores relações. No meu Fomos em Busca do Japão encontram-se algumas páginas com muito interessantes, e divertidas, descrições de cenas que ilustram este relacionamento. Lembro ainda que ali falo também de questões relacionadas com a inculturação do cristianismo, os problemas que suscitou, o destino que teve, bem como da introdução da medicina ocidental, designadamente por obra do jesuíta Luís de Almeida, cristão novo, dos biombos namban e de um pequeno museu, pertencente à família Kitamura, em Osaka, onde, além de memorabilia cristãs, se encontram alguns dos mais interessantes byobu do género. Local a visitar.
Mas há mais: o momento da chegada dos portugueses coincide, não só, com o movimento de unificação política do Japão, conduzido por Oda Nobunaga, Hideyoshi Toyotomi, Tokugawa Yeasu, mas com o período áureo da arte japonesa, bem como da edificação de grandes castelos, como Himeji, em condições de se defenderem melhor das armas de fogo, e de as utilizar com maior resguardo, e de palácios fortificados, dentro das cidades, como Edo e a própria Kyoto, onde se levantou o Nijojo, símbolo do poder shogunal, próximo do palácio imperial, este, aliás, destruído e apenas existente na sua reconstrução de 1855...
O castelo de Himeji é, pela grandeza como pela conservação, tal como por ser modelar, imperdível. A nossa saudade, ou simplesmente lembrança, talvez preferisse a visita ao de Osaka, edificado por Toyotomi Hideyoshi, e que o padre Luís Froes tão cuidadosamente descreveu. Também seria visita mais cómoda, situa-se no centro da cidade. Mas trata-se de uma reconstrução do pós-guerra... Tal como o castelo de Nagoya e o Nijojo (este também imperdível), o de Osaka é um hirajiro, ou seja, um castelo construído em planície. Mas enquanto os outros dois, também edificados em cidades, e sobretudo como símbolos de poder e autoridade, nunca foram atacados, o de Osaka esteve no centro da disputa do filho de Hideyoshi com Tokugawa Yeasu, que o derrotou. Himeji, levantado logo no início do século XVII, representa bem as fortalezas construídas fora dos centros urbanos pelo daimyos sobreviventes às Guerras Onin (1482-1558), no fim do shogunato Ashikaga e princípio do movimento de unificação do Japão e centralização do poder iniciado por Oda Nobunaga. Levantado como fortificação feudal, ele é, todavia, uma afirmação do poder do primum inter pares, o shogun Tokugawa. Quando os senhores feudais, depois de conseguirem territórios mais vastos, viam as guerras entre eles cessarem, a pouco e pouco se iam tornando mais representantes e garantes da autoridade central do que reizinhos ou senhores da guerra. Assim, nessas terras se foram então erguendo castelos imponentes, mais como sinais da força do poder do que como bases militares. Sugiro a leitura do capítulo O Nijo-jo, do Fomos em Busca do Japão, não só pelo que agora tratamos, mas também pelos exemplos da tal unidade da natureza com a vida dos homens de que falei atrás.
O encontro dos portugueses com o Japão dá-se num período crítico da história nipónica, quando o Império do Sol Nascente vai saindo da Idade Média e entrando na Moderna, não só pela consolidação da unidade nacional e pela concomitante centralização do poder político, mas também pelo renascimento das artes, como já não se via desde a era Heian. No momento em que o Japão se reencontra consigo, se renova e deslumbra, chegam uns estrangeiros de longe, professando e confessando uma religião estranha à própria cultura nipónica, falando uma língua incompreensível, que se escreve com caracteres desconhecidos e não figurativos, portadores de uns engenhos que reproduzem em muitas cópias os textos batidos em chumbos e já não manuscritos... Esses homens são tão estranhos como o seu vestuário, alimentação e bebidas, o modo como cumprimentam e falam, os produtos e animais que trazem. Os biombos nanban são retratos fiéis dessa nova realidade e da estranheza admiradora que provoca, e ainda dão asas à imaginação de como seriam as terras de onde vêm, como podemos hoje ainda ver nos painéis que representam a partida dos kurofune, dessas naus enormes que vão ancorando nos portos do sul do Japão. Das armas de fogo à medicina, da astronomia à cartografia, da imprensa a tantos objetos e usos do quotidiano, os nanban jin trazem muitas novidades. E estas caem bem nessa época de ouro da arquitetura e outra artes japonesas, que dá pelo apelido Momoyama. Pessoalmente, sem querer desvalorizar, antes pelo contrário, a designação do período Azuchi-Momoyama (1568-1600), que tem precisamente a ver com a reunificação do Japão, por Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi, logo antes de Tokugawa Yeasu, acho que, para efeitos de sentimento e avaliação das artes, ele se pode iniciar nas duas últimas décadas da era Muromachi (ou no fim do shogunato Ashikaga) e prolongar-se até ao fim definitivo do século cristão, ou seja 1640... mais ou menos! Comecemos então um percurso pelas artes dessa era.
Muito embora se diga que esse século Momoyama artístico, de meados do XVI a meados do XVII, seja o da arte para os senhores, os poderosos -- os conceitos estéticos que a regem chegam da era Muromachi, impregnados de cultura zen, valorizando, com "raffinement", a rusticidade, a simplicidade, a pobreza engenhosa. Na cerimónia do chá, por exemplo, o rigor da simplicidade de utensílios e ritos, já ensinada aos Ashikaga pelo mestre Murata Juko (1453-1503), é retomado pelo mestre de chá de Toyotomi Hideyoshi, o famoso Sen no Rikyu, sem prejuízo de algumas inovações, entre elas os gestos retirados da liturgia católica em uso nas igrejas portuguesas dos jesuítas. Mas a influência dos portugueses nas artes e na arquitetura da era Momoyama foi mais extensa e profunda. Desde logo, porque a Nau do Trato, oferecendo regularmente novas oportunidades de comércio aos japoneses, promoveu o desenvolvimento de uma classe burguesa de comerciantes, cuja fortuna podia pagar trabalhos aos artistas e artífices, estando, por exemplo, bem documentados os objetos de laca e metais preciosos, e de outros materiais, de clara inspiração cristã ou lusíada, tal como vestuário e acessórios, tudo isso a que se chamou a moda nanban. Mas deixo a palavra a Murase Mieko, japonesa, professora de história da arte na Columbia University, em Nova Iorque: Um acontecimento histórico singular deveria desempenhar um papel direto e crucial na evolução artística da era Momoyama: a chegada dos Portugueses ao Japão... ...Os Japoneses deram mostras de grande curiosidade relativamente a eles, interessando-se pelo seu porte, pelo seu modo de vida e pelas mercadorias que negociavam... ...Inúmeros biombos foram pintados para comemorar a chegada dos Portugueses ao porto de Nagasaki... …Um número mais reduzido de imagens e pinturas cristãs realizadas no Japão, imitando estilos ocidentais, constituem um parêntese na história da arte japonesa... ...Mas os pintores japoneses também copiaram pinturas europeias profanas, representando ocidentais em vestuário tradicional, mas sobre pano de fundo exótico. E eu posso acrescentar, que, com os portugueses, aprenderam eles a desenhar e pintar mapas, e a identificar, pela pintura, regiões e gentes de longínquos continentes... E, dando como exemplo, precisamente, o castelo de Himeji, a professora Murase reconhece a inesperada contribuição dos Portugueses para a arquitetura militar do Japão -- como já vimos, por força da introdução das armas de fogo e a consequente necessidade de reforçar, por desenho e materiais utilizados, as muralhas das praças fortes, e rodeá-las de fossos.
Himeji é exemplo dessa contribuição dos portugueses. Inicialmente erigido ainda por Toyotomi Hideyoshi, creio que em 1581, foi finalmente construído pelos Tokugawa, terminado em 1608. Apesar dos éditos anticristãos do primeiro -- aliás nunca rigorosamente aplicados -- e de algumas "apostasias" de daimyo, como Omura Sumitada, que fora distinto apoio dos nossos missionários, o cristianismo e a Igreja japonesa conheceram tempos felizes no início do shogunato Tokugawa que, todavia, os perseguiria mais tarde. O jesuíta português João Rodrigues, o Tçuzu ou intérprete, ainda por volta de 1606, era estimado e prestigiado na corte shogunal. Mas já fora expulso, ele também, quando, em 1635/36, se edificou, em Nikko, a noroeste de Edo (hoje Tokyo), o mausoléu do primeiro shogun da dinastia Tokugawa, outra visita imperdível. Curiosamente, em 1873, na afirmação da restauração Meiji, ali se ergueram também os mausoléus de Minatomo Yorimoto, o 1º shogun, e de Toyotomi Hideyoshi que, sem ter recebido o título de condestável, foi o generalíssimo que transmitiu a Tokugawa Yeasu, o Japão unificado pelo movimento que, antes dele, o seu chefe, Oda Nobunaga, iniciara.
3 (B). História política das religiões japonesas: poderes rivais e sincretismo religioso
Quem quiser percorrer o caleidoscópio do Japão budista, encontrará em Kyoto quase tudo, ou um pouco de tudo: desde o Nishi Honganji, popularíssimo templo Jodo com que Tokugawa Yeasu embirrou, ao Toji, da seita Shingon. Mas imperdível mesmo -- e talvez merecendo um dia inteiro de percurso a pé -- é a zona leste de Kyoto, do Ginkakuji ao Kyomizudera, pela senda dos filósofos e o Maruyama Koen, sempre pelo sopé do Higashiyama.
Outro dia bastará para os imperdíveis de Kyoto ocidental, mais o palácio imperial e o Nijojo. Destes dois falaremos noutro capítulo. Mas na zona ocidental de Kyoto, é incontornável a visita ao Ryoanji, templo zen, fundado em 1473, pelo daimyo Hosokawa Katsumoto, poderoso senhor, aliás antepassado de uma família que se converteria ao cristianismo, e daria ao Japão, já em finais do século XX, o seu único primeiro ministro católico. Aqui se encontra o célebre jardim desenhado por Soami e considerado a quintessência do jardim zen, o tal em que, num mar de gravilha, assentam quinze rochinhas, como ilhas, qua ninguém consegue contar de uma assentada: seja qual for o nosso ponto de vista, o máximo que contamos é catorze... Antes, vindos do centro da cidade, poderemos (devemos) passar pelo complexo de templos de Myoshinji, de 1373, onde se recolhem, quer o mais antigo sino de bronze fundido no Japão, em 698, quer o mais antigo sino cristão, fundido em Portugal, em 1576, e que serviu no campanário da igreja da Assunção, dos jesuítas, na Kyoto imperial do século nambam. Finalmente, é por ali que se encontra o pavilhão dourado, o Kinkakuji, impecavelmente reconstruído, em 1955, no mesmo local e em cópia exatíssima do original, datado de 1397, erigido pelo 3º shogun Ashikaga, para sua casa de retiro e, depois da sua morte e por sua ordem expressa, sagrado templo pelo seu filho Yoshimochi. O tal que um monge incendiou, no século passado, como conta Mishima no seu romance. Daqui, poderemos avançar para leste e começar a nossa visita de Kyoto oriental pelo Ginkakuji, o pavilhão de prata, ali edificado, em 1482, por outro shogun Ashikaga, Yoshimasa, o 5º da dinastia, neto de Yoshimitsu, que levantara o de ouro. Quis assim imitar o avô, já na fase final da glória dos Ashikaga, muito enfraquecidos pelas guerras civis que assolavam o Império. O sítio é aquático e frondoso, convida ao descanso, e há quem diga que Yoshimasa por lá passou uns bons tempos, com poesia, música, mulheres e saké. Seja como for, o shogun Ashikaga Yoshimasa, a quem os historiadores tendem a apontar responsabilidades no declínio da dinastia Ashikaga, foi certamente mecenas e patrono das artes zen, ao ponto de haver quem diga que, na era Muromachi, a arte se pôs ao serviço do budismo zen. A ideia de que "quanto menos, mais", que, afinal, despoja a intuição de artifícios -- e tal explica o êxito do espírito zen junto dos militares, como o gosto da pintura a tinta da china, ou da caligrafia como gesto concentrado e simples -- sente-se bem na arquitetura dos edifícios, como na sua decoração interior, e ainda nas artes ditas menores, como o arranjo de flores, a cerâmica, e muito mais: a cerimónia do chá, o teatro nô, as retenções ou reservas convencionais no comportamento convivial das pessoas. Diferentemente de muitos outros templos zen, que têm jardins secos, isto é, sem águas e, sobretudo, feitos de gravilha e pedras, as vilas-templos que são o Kinkakuji e o Ginkakuji erguem-se, tal como o Byodoin dos Fujiwara, no meio de grandes jardins, desenhados de forma a oferecerem ao passeante o agrado de árvores, sombras, flores, águas e rochas. Mas quero chamar a atenção, e vão perceber porquê, para os interiores do Pavilhão de Prata, de que estamos a falar: uma sala búdica, no piso superior, com janelas desenhadas em ponta de lança, ao estilo zen; o Togudo, anexo, era a capela privada do shogun, composta de uma salita de quatro tatamis e meio (tatami=1,83mx91cm), o dojinsai, exemplar mais antigo do gabinete de trabalho ou shoin, que havia nos mosteiros e em residências nobres. Aí, Murata Juko, mestre de chá de Yoshimasa, preparava o espesso chá verde, folhas esmagadas e cruas, agitadas em água quentíssima, mas sem infusão, bebida amarga que os monges primeiro ingeriam como medicamento, ou para os ajudar a longas horas de meditação. Murata, em reuniões de gente seleta convocada pelo shogun, em que tal chá era cerimoniosamente servido e bebido, explicava, com intenção estética, virtudes zen, como simplicidade, sobriedade e elegância, ou mesmo princípios propriamente estéticos, como a assimetria ou a importância da imperfeição para a beleza. Um pequeno defeito realça sempre a maior beleza do conjunto. Esta qualidade está bem presente na cerâmica rústica do Japão, por exemplo, nas xícaras ou tijelas em que se toma o chá na cerimónia respetiva, e que os convivas silenciosos longamente contemplam.
Deste ponto, isto é, do Ginkakuji, iremos caminhando para sul, percorrendo, primeiro, a senda da filosofia, 1200 metros ao longo de um ribeiro ladeado de sakura e de bordos... Assim chegaremos ao Nanzenji.
É este o mais importante templo zen de Kyoto. No século XIII, levantara-se aqui uma residência de lazer para o imperador Kameyama, arderam os edifícios em guerras civis, os atuais datam do século XVI. Tudo por aqui merece visita, não só o templo e mosteiro principal e o enorme portão sanmon (com a vista que se alcança lá de cima), mas os outros templos, sobretudo o Nanzen-in, com as suas águas e jardins, e ainda a possibilidade de, de fora, podermos enxergar monges lá dentro, em meditação... Há, à volta alguns excelentes restaurantes de cozinha monástica, designadamente de yodofu, pratos de tofu fervido. Bem bons! Mais abaixo, nas proximidades do parque público de Maruyama Koen, dois templos, o Shoren-in, da seita Tendai, e o Chion-in, da Jodo, merecem um salto para ver as magníficas pinturas de escola de Kano que encerram. Continuando, atingiremos a Kyomizuzaka, a ladeira que nos conduz, por entre casas tradicionais de comércio, ao templo de Kyomizudera, cuja gigantesca estrutura de madeira foi erigida em 798, reconstruída em 1633. Só estando lá se sente o fascinante encanto do lugar, e se alcança a vista de Kyoto, mas sobretudo, no Outono, a explosão cromática dos momiji. Ao fim da visita, pode-se ir devagar, paulatinamente, andando até Gion, ver as gaikko ou gueixas que, pelas ruas do bairro antigo, vão indo para as casas de chá ou de pasto em que atuam. E jantar lá.
3 (A). História política das religiões japonesas: poderes rivais e sincretismo religioso
A chegada do budismo ao Japão, como já foi dito, encontrou, na corte imperial a cuja porta batera, reações opostas: uns eram por, outros contra. O imperador (o rei de Yamato) Kinmei não decidiu sem antes consultar uns e outros: Soga no Itamo, e o seu clã, próximo da família imperial, arguiu que se os países vizinhos veneravam Buda, não via razão para que o Japão não o fizesse; Mononobe no Okoshi e Nakatomi no Kamako opuseram-lhe os argumentos relatados no Nihon Shoki: Aqueles que governaram o Império neste nosso Estado sempre cuidaram de louvar na Primavera, no Verão, no Outono e no Inverno os 180 Deuses do Céu e da Terra, e os Deuses dos Campos e do Grão. Se agora mesmo começarmos a louvar em vez deles Divindades estrangeiras, pode temer-se que incorramos na cólera dos nossos Deuses Nacionais... [Isto até nos traz à memória, o diferendo bíblico entre Moisés e Aarão...] O imperador decidiu não autorizar o budismo como religião nacional, mas permitiu a Soga no Itamo o culto privado dele. Este levou então para casa a estátua de Buda que o rei coreano de Paekche oferecera ao Imperador, e ali montou um templo. Para sua infelicidade, estalou uma epidemia e muita gente morreu. Claro que os seus adversários logo reclamaram dizendo que os Deuses locais castigavam assim o facto de Soga guardar a estátua do Buda. Por ordem imperial, esta teve então de ser lançada ao rio, a casa de Soga foi incendiada. Poucos anos passados, porém, o príncipe Shotoku e a família Soga derrotam os anti-budistas, e nem a queda dos Soga, vinte e três anos após a morte de Shotoku, afetará o avanço do budismo no Japão: os Fujiwara, vencedores dos Soga e seus futuros substitutos junto da linhagem imperial, por casamentos, começarão por impor a reforma Taika -- digamos, em termos genéricos, que é uma constituição budista do Império do Sol Nascente -- e serão, por muitas e longas décadas, os regentes do mesmo, além de grandes protetores da seita Hosso, do Kufokuji, em Nara, tal como instigadores da mudança da capital de Heijokyo (Nara) para Heiankyo (Kyoto), cidade onde edificaram dois dos mais interessantes exemplares da arquitetura budista japonesa, o Chosunji e o Byodoin, designadamente este último, consagrado ao Buda Amida. Durante a era Heian (de 794 a 1185), com a capital em Kyoto, o budismo ganha mais peso político, na sequência da sua afirmação em Nara: não esqueçamos que o facto desta ter sido a primeira capital fixa do Japão, e a segunda, depois de Fujiwara, a ser desenhada segundo o modelo imperial Tang, não é apenas um símbolo da legitimação budista do imperador... Na verdade, se os reis de Yamato se reclamavam da linhagem divina de Amaterasu, o conceito político de império vem da China. Cabe-nos agora tentar perceber como se japonizou o budismo, como se politizou, como se sincretizou com o shintoísmo nacional.
O que acabo de referir terá servido, aos de ouvido interessado, para balizar o interesse das questões que, displicentemente, abordaremos de seguida: uma tem a ver com o estrangeirismo da nova religião e com a sua inculturação política, se assim me posso exprimir; outra diz respeito à rivalidade entre as seitas budistas, não tanto por questões de ordem doutrinal, sobretudo de interpretação e modo de praticar os ensinamentos do Buda, mas mais em função dos benefícios materiais e das portas de poder que diferentes fações da aristocracia e da família imperial a cada uma pudesse conceder e abrir; finalmente, concluiremos com esse quadro, persistente na vida da maioria dos japoneses, que serenamente conseguem ser simultaneamente shintoístas e budistas. A expressão "portas do poder" (kenmon) foi criada na teoria do kenmon taisei, ou sistema das portas do poder, de Kuroda Toshio (1926-1933),que analisa as três grandes eras do Japão medievo (Heian, Kamakura e Muromachi) pela perspetiva do poder partilhado por três zonas de influência: a nobreza da corte (koke ou kuge), a aristocracia guerreira (buke) e os templos e santuários (jisha,). Além de partilharem responsabilidades de governação, trocam entre si apoios e benesses. No caso particular do budismo, durante as três eras que já acima referi, tal cumplicidade dos templos budistas com algumas grandes famílias, entre as quais a imperial e a Fujiwara, no período Heian, ou a Ashikaga, com os zen, no Muromachi, é promíscua, e vamos dando exemplos. Nos períodos Nara e, já na idade moderna, Edo ou Tokugawa, ressalta mais a mútua obrigação entre o Estado e o Budismo: este, na sua organização e atividade, era controlado pelo outro que, em contrapartida, o financiava e protegia.
O budismo encontrou, no Japão, estranheza inicial (se a corte se dividiu, o povo, esse, nem sequer o entendeu logo), bem como conseguiu uma adoção posterior que tem manifestamente a ver com um projeto político, ou seja, o da afirmação do poder da casa imperial sobre os clãs que povoavam o país -- para o que pareceu útil a invocação da centralização praticada ou desejada por vizinhos chinos e coreanos, a título, digamos, de aula prática, posto que as teorias dos sábios chineses só a poucos seriam acessíveis... Deitaremos, depois, um olhar sobre como veio paulatinamente a desenhar-se o budismo japonês. A princípio, houve rivalidades cortesãs, e entre clãs: os Soga eram pró-budistas, os Nakatomi eram anti. Shotoku ergueu-se acima de todos e começou a obra, deixando marca. Mas morreu cedo e, vinte e três anos depois, os Nakatomi derrubavam os Soga, e fizeram-se as reformas Taika (646), reforçando o novo modelo de estado iniciado por Shotoku. Convertido às novas ideias, o clã Nakatomi transformar-se-á em Fujiwara, nome que, no ocaso do século VII, situava a primeira capital imperial de modelo Tang no Japão. Mas o povo nada percebia, nem da nova religião, nem da reforma política. Para a gente do campo, Buda (Butsu) era o nome de mais um kami, este estrangeiro, a juntar aos inúmeros espíritos e divindades que incorporavam o universo, e o animavam. Esta ocorrência iria ser aproveitada, pelos monges budistas, não para diferenciar as suas crenças das do shintoísmo popular, mas para proselitismo: afinal, Butsu e seus kami, quando devidamente invocados, também podiam acudir, socorrer, curar doenças, abençoar sementeiras e colheitas. E o surto de templos e mosteiros desempenhava, junto do povo, a função de visibilidade do budismo, e, pelas prédicas e celebrações que fomentava, a de instrução, catequização. Acabou por conseguir, por exemplo, que, em caso de aperto, tanto valesse recorrer a um santuário shinto como a um templo budista. Uma das características do budismo japonês será assim a importância de práticas mágicas e de ritos propiciatórios no seio de algumas das suas seitas, designadamente aquelas mais próximas das camadas populares. A nova fortaleza do estado centralizado e do poder imperial, mesmo se exercido pelos seus regentes, como os Fujiwara, a partir das reformas Taika, teve de assentar a sua implantação popular pela proliferação de kokubunji, ou templos budistas regionais, subsidiados pelo governo, por iniciativa do imperador Shomu, também patrocinador do Todaiji, onde se acolheu o grande Buda Vairocana, e se invocava sobretudo o Sutra da Luz de Ouro, pela proteção da nação. Esse templo-mosteiro simbolizava, ao mesmo tempo, a unidade do universo e o poder imperial, como tradicionalmente era acreditado, mas já numa perspetiva budista. Em Nara se inicia um longo período de "budistização" da casa imperial, que se continuaria na era Heian, na capital Kyoto, e, depois, pelos tempos fora, até à restauração Meiji, movimento que oporá o poder imperial ao shogunato e ao estabelecimento político vigente, e ressuscitará, exorbitando até o seu antigo esplendor e significado, os ritos e a proclamação da legitimidade shintoísta que, sem terem sido abandonados nem esquecidos, haviam permanecido na sombra, enquanto liturgia oficial.
Retomando o fio à meada dos grandes templos ou mosteiros históricos budistas a não esquecer numa visita ao Japão, passamos a Kyoto. E já que estamos com os poderosos Fujiwara, começaremos o nosso percurso de Heiankyo pelo Byodoin, o mais esplendoroso exemplar do que alguém chamou estilo Fujiwara, certamente o mais interessante e sugestivo templo do budismo dito da Terra Pura, consagrado ao Buda Amida. Vale a pena ir até lá só para contemplar, desde leste, a fachada do corpo principal do templo, que é o Pavilhão da Fénix: arquitetura elegante, leve, divinamente proporcionada, sugere-nos a ave mítica a pousar, de asas ainda abertas. Ela, que sempre renasce das próprias cinzas, símbolo alado da ressurreição, acolhe-nos. Ao centro do pavilhão encontra-se a sala preciosa, onde sobre um lótus se senta Amida. Visto de baixo para cima, o Buda dourado, em posição de meditação, parece elevar-se ao céu, pelo efeito da ascendente chama de ouro que o envolve e das apsaras que o rodeiam, em prece ou tocando músicas celestiais. Mas se, à hora certa, estivermos atentos e virmos chegar o raio solar que, penetrando por uma abertura circular, lhe iluminará o rosto, então teremos compreendido tudo... Ou quase!
Entretanto, vamos trepando a história, saltamos para Kamakura, já voltaremos a Kyoto. Aqui, em Heiankyo, afinal, permanecem os imperadores até à restauração Meiji. Mas os governos efetivos andarão por aí, o Japão periférico acorda, revela-se, talvez não assuste demais porque a corte imperial se entretém com o umbigo poético, artístico e maneirista... O bakufu (governo) de Kamakura é o primeiro caracteristicamente militar, surge, não só pela vitória do clã Minamoto sobre o Taira, na guerra Gempei, mas por razões mais profundas e extensas, pela necessidade de afirmação da classe militar, uma nova abertura de portões do poder; pelo sentimento de que o centro do Império se consumia em jogos e caprichos de corte, em modos supérfluos, sem consideração pela dureza da vida do povo, e do próprio exercício da autoridade do estado nas províncias: a governação tem de sair de Kyoto, e tem de ser entregue aos militares que, desde o século X, vêm servindo como administradores e polícias das províncias japonesas. Assim, Minamoto no Yoritomi será o primeiro Shogun, Condestável do Império e, simultaneamente, cabeça do bakufu, isto é, chefe do governo. Doravante, os shogun terão sempre presente a necessidade da sua legitimação pelo imperador, mas já não são cortesãos como os regentes Fujiwara, antes serão os senhores feudais, ou da guerra, que se impuserem, num Japão desunido, e que também irá conhecer guerras fratricidas. Mantendo-se a identidade nacional à volta, não já de um imperador budista chefe de estado, mas de um imperador praticante do budismo, ainda que carregando a linhagem shintoísta de Amaterasu. O segundo e o terceiro shoguns foram assassinados, o poder efetivo passou para as mãos da família da viúva de Yoritomi, os Hojo, que foram controlando uns shogun comandados, reservando para eles o título de regentes, em jeito de manter aparências para Kyoto ou, melhor, para recordar que, mesmo longe da residência do imperador, e nas mãos de um shogun, o poder se legitima sempre pelo elo que o liga ao celeste soberano e à sua capital. Em 1281, o regente Hojo Tokimune desbarata os invasores mongóis, graças aos kamikaze ou ventos dos deuses, tufão que destruiu a armada inimiga. Em 1333, o imperador Godaigo tenta um restabelecimento do seu poder efetivo, mas em 1336 impõe-se o shogunato dos Ashikaga, que durará até a chegada dos portugueses. É este que nos leva de volta a Kyoto, em visita aos pavilhões de prata e de oiro. Em Kamakura, onde tinha amigos que várias vezes visitei, é agradável estar, sobretudo para os hanami das cerejeiras em flor. Mas há pouco para ver, penso, quando é curta a estadia no Japão, mesmo o grande Buda é mais pequeno do que se abriga no Todaiji, em Nara.
Antes, porém, de visitar monumentos em Kyoto -- tantos deles são templos e mosteiros Zen! -- cabe dizer aqui umas palavras sobre a chegada dessa escola budista ao Japão e das suas relações com a classe bunke, ou os guerreiros samurai. Passa-se isso ainda na era Kamakura. Aliás, nesse período da história do Japão se desenham três orientações do budismo japonês, todas elas nascidas no seio da escola Tendai: a Jodo, ou da Terra Pura, a Zen, e a Nichiren. Esta chama-se pelo nome do seu fundador, monge profético, promotor da reforma do Estado pelo budismo, de modo a evitar guerras intestinas e assegurar o bem estar geral (razão por que teve apoio da pequena e média burguesia urbana e comerciante): o monge Nichiren acabou exilado na ilha de Sado, o budismo com o seu nome continuou como projeto político nacional, no século XX sendo mesmo nacionalista. É o mais nipónico de todos. A escola Jodo reage às mesmas incertezas e interrogações de um período histórico conturbado, mas não tem projeto político próprio, antes confia na misericórdia salvífica do Buda Amida, o que a torna atraente para as classes populares. O Zen, como mais alongadamente explico no meu Fomos em Busca do Japão, cria fortes laços com a emergente classe guerreira dos samurai, opõe-se ao budismo tradicional e ritual da aristocracia cortesã.
2. A herança oriental da cultura japonesa: China, budismo e escrita
Buda, como sabemos, é o nome que adquiriu o príncipe nepalês Sidarta Gautama, do clã real dos Sakya, por isso também por vezes referido como o Sábio (ou Sage) dos Sakya, depois de ter atingido o despertar ou iluminação, debaixo da Árvore da Sabedoria (ou Sageza), Árvore da Bodhi. A sabedoria conseguida revelou-lhe que viver é penar até à morte, se nos ativermos ao nosso egoísmo e gosto pelas coisas sensuais e passageiras, sendo a própria morte o início de uma reincarnação do nosso sofrimento e dor em nova vida do mesmo. E mais lhe ensinou como, pelos oito caminhos (crenças, aspirações, pensamentos, palavras, modo de vida, atos, ascese e meditação), se atinge o Nirvana, ou a morte sem reincarnação. Mais tarde, em certas escolas, o Nirvana ganhou outro sentido possível, que curiosamente o aproxima dos conceitos cristãos de salvação e eternidade: o Buda seria imortal, apenas revestiu forma humana para ensinar, o Nirvana sendo então regresso ao Paraíso donde veio e onde agora espera os seus fiéis. Esta ideia é prevalecente no budismo Mahayana, ou da Porta Larga, que se espalhou pelo norte do extremo oriente, enquanto que o da Porta Estreita, ou Hinayana, se estabeleceu no sul e sudeste asiático. Neste, é apertada a entrada no Nirvana, conseguida, à vez, por cada um. No outro, a porta abre-se de par em par, de forma a que se salve o maior número possível. E para dar uma ajuda, lá aparecem os bodhisattvas (bosatsu, em japonês), que renunciaram a entrar logo no Nirvana, para andarem por cá a apoiar-nos. Como os santos católicos que por nós intercedem lá no Céu. É este Mahayana que chega à China e à Coreia, donde o rei Song de Paekche manda, em 552, ao imperador Kinmei do Japão uma mensagem missionária e uma imagem do Buda. Assim, é ainda no início da era Asuka (552-710), que a nova religião chega ao Japão. No ponto seguinte desta exposição aprofundaremos a história da estranheza e reconciliação entre budismo e shintoísmo. Por agora, limito-me a referir que, ao tempo da chegada do budismo, o imperador Kinmei consultou os seus ministros sobre a admissão dessa crença, tendo sido dividida a resposta entre os que eram por e os do contra. Falemos antes do príncipe Shotoku, neto de Kinmei e filho do imperador Yomei, depois regente da imperatriz Suiko, sua tia, que dele fez o seu sucessor. Mas ele morreu antes de ser, como o avô e o pai, imperador também.
Falar dele é, necessariamente, falar de Horyuji e muito mais. Vejamos, primeiro, o retrato que dele fez o professor da Universidade Imperial de Tokyo, Hiraizumi Kiyoshi, famoso defensor do nacionalismo japonês e do regime imperial. Recorro ao doutor Hiraizumi, precisamente por essa sua característica, que o leva, em Uma História do Japão -- sua última obra, escrita bem depois dele se ter demitido da Universidade, na sequência da derrota das forças imperiais na 2ª Grande Guerra -- a procurar valorizar a japonização do budismo na legitimação do poder imperial e da organização política do Japão, na que, afinal, terá sido, no fim da era Asuka, e mesmo antes da era Nara (710-794), a primeira constituição escrita do Império do Sol Nascente. Traduzo: O nome Príncipe Shotoku,cujo significado é "sagrado e virtuoso", provém da admiração do povo pelo seu carácter. Originalmente, chamava-se Príncipe Umayado (Príncipe Porta do Estábulo do Cavalo). Este nome veio-lhe do facto de sua mãe, a Imperatriz, que passeava pelo palácio, ter entrado em trabalho de parto à entrada do estábulo e aí ter dado à luz. Ele era superiormente inteligente. Conseguia prestar atenção simultaneamente a oito diferentes pessoas argumentando as suas respetivas causas, e emitir veredictos corretos sem qualquer confusão. Cheio de espanto, o povo também o apelidava de Príncipe dos Oito Ouvidos. Tinha vinte anos quando foi instituído Regente. A autoridade da corte imperial, que decaíra, por infortúnios vários, recuperou a sua glória e esplendor com este talentoso Príncipe Herdeiro e Regente... ...Outro feito do Príncipe Shotoku foi a Constituição. No 12º ano de reinado da Imperatriz Suiko (604), ele criou a Constituição de Dezassete Artigos. O art.º 1º estipula: "A Harmonia tem de ser valorizada, e deve ser honrada a recusa de oposição caprichosa". ...O art.º 2º diz: "Reverenciem sinceramente os Três Tesouros do Buda [a Sutra do Lótus, o Discurso sobre a Verdade Última e o Livro sobre a Zelosa Decisão], a Lei e o Sacerdócio"... ...O art.º 3º é o mais importante: "Quando receberes ordens Imperiais, nunca deixes de escrupulosamente lhes obedeceres. O senhor é Céu, o vassalo é Terra. O Céu estende-se por cima, e a Terra sustém por baixo. Quando isto é assim, as quatro estações seguem o seu curso, e os poderes da Natureza obtêm a sua eficácia. Se a Terra tentasse estender-se por cima, o Céu cairia simplesmente em ruína. Por isso é que quando o senhor fala, o vassalo ouve; quando o superior age, o inferior traz-lhe apoio. Consequentemente, quando receberes ordens Imperiais, não deixes de as executar escrupulosamente. Se deixares que haja desleixo nesta matéria, a ruína será o resultado". Outros artigos disporão contra a corrupção por "cunhas", as sevícias públicas, tal como encorajarão a justiça e a equidade, o mérito e a sua remuneração, as decisões refletidas e o trabalho aturado dos funcionários. O art.º 9º insiste na necessidade da boa fé, como fundamento do direito em todas as circunstâncias. E o 12º avisará contra o despotismo possível de funcionários públicos, prevenindo: "Num país não há dois senhores. O povo não tem dois senhores. O soberano é o mestre do povo de todo o país. Os oficiais a quem ele entrega cargos são todos seus vassalos". Há muito de Confúcio nisto.
O Horyuji, perto de Nara, é o único sobrevivente dos templos budistas que se ergueram no Japão, depois da vitória do Príncipe Shotoku sobre os adversários do novo culto, que tornara possível que este se tornasse público. É, portanto, não só o mais antigo edifício, religioso ou não, existente no Japão, como a mais idosa construção de madeira em todo o mundo. Foi fundado em 607, como reza uma inscrição feita na auréola da belíssima estátua do Buda Yakushi, ou da medicina, hoje conservada na sala dourada doutro templo, o Yakusiji, consagrado ao deus da cura. Deve-se essa fundação à ordem do imperador Yomei a seu filho Shotoku, para que este fundisse uma estátua daquele Buda, como ex-voto para a cura da doença que o afetava. Assim foi feito, mas o templo original foi destruído por um incêndio em 670, tendo a sua reconstrução sido feita em terreno próximo, e terminada em 711, quase 90 anos depois da morte de Shotoku, já na era Nara. Não obstante, o complexo atual ainda alberga a mais completa coleção de escultura budista da era Asuka, incluindo a tríade do Buda Shaka, notável peça de Tori Busshi, escultor de origem coreana, encomendada em 622, como ex-voto para a cura do Príncipe que, todavia, viria a morrer nesse mesmo ano, com sua consorte, um ano antes da escultura estar terminada. De Horyuji só posso dizer que sempre aconselho a visita e, nos meus tempos de Japão, levei lá muita gente... Sem querer ser maçador, lembro que há quem divida, compreensivelmente, a era Asuka entre esta, propriamente dita, e a Hakuho (645-710), este último período sendo o que vai da queda do clã Soga, ligado a Shotoku, já morto há 23 anos, à mudança da corte para Nara. De reter é que o vencedor dos Soga foi Nakatomi no Kamatari, fundador do clã Fujiwara, família que, além de ter condensado as relações familiares com a linhagem imperial, terá que ver, como adiante relatamos, com a Murasaki dos Contos de Genji e o magnífico templo de Byodo-in, em Uji -- "pátria" japonesa do chá: leia-se O Culto do Chá do nosso Wenceslau -- junto a Kyoto. Tal apelido deriva da cidade de Fujiwara, onde se instalara a capital imperial (de 694 a 710), a primeira, aliás, a corresponder ao padrão Tang chinês. Do que eu chamaria o subperíodo Hakuho (finais do século VII), que marca o início da ascensão dos Fujiwara, datam precisamente os mais antigos edifícios de Horyuji: o portão principal, o pavilhão dourado e o pagode. O Yumedono (pavilhão dos sonhos) é já do século VIII (Nara) e ergue-se no sítio onde estivera o palácio do Príncipe Shotoku.
Mas, neste capítulo, não nos demoraremos aí: vamos continuar a trepar pela história do Japão, apoiando-nos em monumentos da sua arte budista. Recorrerei a alguns exemplos que considero mais ilustrativos, deixarei de parte outras considerações, designadamente observações de pormenor ou análises críticas... Ainda durante a era Asuka (de 552 a 710), quando o budismo se "instalou" no Japão, a capital imperial mudava de sítio a cada morte de imperador. E assim também era queimado o palácio imperial, tudo isso pelo nojo shintoísta à morte e ao seu contágio, que se exprime já na visão de Izanagi, quando tenta salvar Izanami do mundo das trevas... Será com a vinda do budismo e a posterior estadia da corte imperial em Nara, que esta se tornará na primeira capital permanente do Império do Sol Nascente. O modelo político, como já vimos, vem da China, do Celeste Império. O urbanístico e arquitetónico também: Nara, com seu palácio imperial, segue as regras de construção da dinastia Tang, em Xian, a tal relíquia que hoje atrai milhões de visitantes à China... O plano elementar é retangular, como o de Chang-an (Xian) e, mais tarde Heiankyo (Kyoto), só que a cidade de Heijokyo (a capital Nara) desapareceu. Mas ficaram os grandes templos budistas de Kofukuji, Toshodaiji e Yakushiji, que, a vários títulos, referimos alhures. Mais imponente de tudo o que ficou -- e cujo pavilhão principal é a maior estrutura de madeira do mundo -- é o templo de Todaiji (ou grande santuário oriental), construído em 752 (reconstruído em 1709) para acolher uma gigantesca estátua do Buda Birushana, por ordem do imperador Shomu, na sequência de devastadora epidemia, em 748. Todos estes monumentos -- e as obras de arte neles conservadas -- podem ser visitados hoje em dia, não vou descrevê-los, apenas apontarei para algumas histórias, que são factos históricos, que os envolveram. Assim, por exemplo, houve grande rivalidade entre os monges de Todaiji e Kofukuji, ambos os mosteiros estando, aliás, localizados no Parque de Nara (Nara Koen). Certo dia de 1102, já a capital estava em Kyoto, os de Todaiji celebravam um festival em honra dos seus kami protetores, e os de Kofukuji alegravam-se em dengaku, dança relacionada com ritos agrícolas. Os colegas do lado não acharam graça, e desataram a frechar os vizinhos, tudo resultando em batalha campal, com danos infligidos aos edifícios de ambos os templos e mosteiros. [Lembro-me dos monges de S. Bento, no norte de Portugal, que, ao tempo das guerras miguelistas, saíam a terreiro para desatarem à cacetada aos liberais...] Ao Toshodaiji está ligado o nome do monge chinês, padre budista, Ganjin, com fama de santidade, vindo ao Japão em 754, com a missão de reformar comunidades corrompidas e conferir ordens canónicas a monjas e monges japoneses. Instalar-se-á no Todaiji, antes de ser para ele edificado o Toshodaiji. Este movimento de renovação "eclesial" -- que abrangeu as seis seitas budistas de Nara -- impunha-se, no final do século VIII, também pela necessidade de castigar a promiscuidade entre os mosteiros, a corte e o poder político. Ilustrativa é a história da intimidade da imperatriz Shotoku com uma espécie de Rasputine chamado Dokyo, escândalo que foi fator influente da posterior mudança da capital para Kyoto. Antes de para esta cidade passarmos, seja-me permitido acrescentar umas observações incidentes sobre a introdução da escrita chinesa no Japão.
Tanto quanto saiba, os primeiros documentos da sua prática no Império do Sol Nascente relacionam-se com o comércio. Aliás, antes do mais, com objetos ali comercializados, provenientes da Coreia, mesmo quando de origem china (utensílios e ferramentas, armas, artigos de luxo). Entre estes, contavam-se espelhos de bronze com ideogramas chineses gravados; pelo século V, começou-se a copiar, no Japão, esses caracteres, para aplicação em espelhos de fabrico local. Mais tarde, essa escrita passou a ser utilizada para registos de transações ou operações oficiais, feitos por funcionários chamados fubitobe, na maioria originários do continente. Só com a chegada, pelo século VI, de letrados confucionistas (gokyo hakase), vindos também da Coreia, e do encontro com o budismo, se foi cultivando a leitura dos clássicos e desenvolvendo, entre a aristocracia nipónica, a aprendizagem da escrita, de forma a reproduzir e imitar as lições dos mestres e os ensinamentos de Buda. O cume deste exercício é atingido pelo príncipe Shotoku que, já vimos, devoto budista, era estudioso e profundo conhecedor das letras e do pensamento clássico chinês. Dispunha, além disso, da autoridade política necessária ao processo educativo e legislativo que tinha em vista. Num convento de monjas anexo ao Horyuji, conserva-se um bordado feito por encomenda da consorte do príncipe: regista um dito de Shotoku a sua mulher: O mundo é folia, só o Buda é verdade. Tal pensamento é alheio ao espírito japonês original, onde não cabia, bem pelo contrário, qualquer ideia de separação da natureza ou de transcendência do homem. Por isso muitos consideram que, como afirma o professor Saburo Ienaga, tal como a filosofia grega começou com Tales de Mileto, e a chinesa com Confúcio, o pai da japonesa foi Shotoku.
Sem entrar aqui em alongadas considerações sobre as vicissitudes e evolução do que, finalmente, foi a adaptação da escrita chinesa às exigências fonéticas e sintáticas do japonês, deixo todavia duas pistas. A primeira leva-nos à existência atual de três grafias e "alfabetos" (expressão aqui manifestamente incorreta, ainda que sugestiva) do japonês escrito: os kanji, ou caracteres chineses originais, sendo 1850 -- mais 92 para escrever nomes pessoais -- os aprovados pelo Mombusho (Ministério da Educação), dos quais 881 são de aprendizagem obrigatória na instrução primária; os hiragana, ou caracteres simplificados e cursivos, que logo apareceram para os não letrados, bem como para a escrita de vocábulos nativos e sufixos, sendo em número de 48; e os katakana, ou caracteres cortados (kata... como em katana!), servindo para transcrição fonética de palavras estrangeiras, sobretudo nomes próprios, tendo este silabário o mesmo número de caracteres que o anterior. A segunda pista conduz-nos ao fenómeno da dupla pronúncia dos kanji; a chinesa, ou on-yomi, e a japonesa, ou kun-yomi. Para ilustrar este ponto, vou aos quatro pontos cardeais: norte pronuncia-se hoku ou kita; sul é nan ou minami; leste diz-se to ou Higashi; oeste dá por sai (ou sei) ou nishi. Como tom final de ironia, lembro que o silabário hiragana, estava reservado também para as mulheres, já que estas não podiam integrar a categoria dos letrados, a mesmo título que os homens. Por isso, Murasaki Shikibu, no século XI, apesar de conhecer os kanji e os clássicos chineses, teve de redigir em hiragana aquele que é o primeiro grande romance da literatura japonesa quiçá mundial, ainda hoje um dos maiores de sempre: Os Contos do Genji...
1. Origem mítica, natureza e raça: o sentido telúrico da pátria do sol nascente e sua gente
O mito fundador do ser nacional nipónico, e da sua história, consta da mais antiga narrativa escrita do nascimento do solo e do sangue japonês: O Registo das Coisas Antigas ou Kojiki, coletânea das antigas lendas, que começou a ser redigida no século VII, por ordem do príncipe Shotoku Taishi (574-622), filho do imperador Yomei e, depois, regente. Parece-me importante referir, desde já, que este príncipe era não só budista convicto, mas grande admirador e estudioso das coisas da China, desde urbanização, arquitetura e artes à organização política e administrativa; como dos ensinamentos de Confúcio, sobretudo pelo ênfase destes nas virtudes da lealdade e da ordem social. Conhecedor, também, da língua e literatura chinesas, cuja escrita tratou de aplicar ao japonês, até então iletrado. O Kojiki é coevo do Nihon Shoki ou Crónicas do Japão, ambos datando dessa introdução da escrita. Ambos produzidos por iniciativa oficial -- tal como, antes, o tinham sido, no Celeste Império, ou do Meio, as histórias Shih chi e Han shu -- foram sofrendo perdas e danos em guerras e incêndios, até terem os seus textos fixados, já no século VIII, respetivamente em 712 e 720, sob o imperador Gemmei. Cabe aqui nomear também os Fudoki ou Registos do Clima, todos estes oriundos de diferentes regiões do Japão, coligindo lendas e narrativas locais, mas registando também nomes e localizações de montanhas, rios, povoações, culturas agrícolas, com seus climas respetivos. Como veremos adiante, todas estas crónicas e observações se reúnem à volta de um propósito claro: identificar o Império do Sol Nascente, a origem e a história da terra e da gente que o constituem. Tal intenção não é originalmente nipónica, como testemunham registos mais antigos, quer chineses (como os Shih chi e os Han shu, acima citados), quer coreanos (como os Paekche Shinch´an e os Paekche Pon´gi, novos e velhos registos de Paekche -- um dos três reinos coreanos da altura, em contacto com o Japão -- ou a História dos Três Reinos, a Samguk Sagi). Mas, para quem, como eu, viveu no Extremo Oriente, terá sido mais viva a memória presentemente encontrada no Japão, talvez pelo maior lugar dado ao Kojiki, quer na cultura popular, quer nas escolas, quer na liturgia oficial do culto do Tenno (imperador), desde logo pela necessidade de preservar a cultura popular shintoísta e autóctone do esmagamento com que o triunfo do budismo a ameaçava. Na verdade, essas obras escritas -- o Kojiki já num esforço de adaptação da escrita chinesa à língua japonesa, o Nihon Shoki em chinês clássico-- quando do Império do Meio tinham chegado os caracteres e a literatura, tal como confucianismo e budismo, e ainda o esquema da organização política e administrativa de um império, preocupam-se sobretudo com encontrar, na tradição oral nipónica, e divulgar, mitos e contos primitivos que, primeiro, identificassem a origem da terra e da nação japonesa, e legitimassem o novo poder imperial e a sua divina ascendência.
Mas tentemos compreender melhor aqueles temas mobilizadores. Simplificando, diremos que deparamos ali com uma genealogia (tal como conhecemos outras em livros muito distantes destes, como a Bíblia) e com crónicas várias. A genealogia ou Sumera mikoto no hitsugi (linhagem solar dos soberanos) decorre da origem mítica da família imperial, as crónicas são relatos ou registos antigos dos tempos primordiais (Saki no yo no furugoto). Os deuses iniciais são surtos espontâneos, entre os quais aparecem Izanagi e Izanami, cuja união sexual é criadora. Da consumação desse casamento nascem as ilhas do Japão. Mas, por sua iniciativa, a deusa Izanami dá vida a uma deusa ardente, cujo fogo a queima e atira para o reino das trevas (Yomi no Kuni), vindo a ser infrutíferas todas as tentativas de Izanagi para a libertar, conseguindo apenas tapar a porta de Yomi com o seu corpo, pois a visão que teve do mundo inferior foi a do nojo da morte. O deus Izanagi deverá então criar outros Kami, com partes do seu próprio corpo, que serão o universo natural nas suas várias facetas. Do seu olho esquerdo formará o mais importante de todos: Amaterasu, a deusa solar. Um irmão desta, Susa no O, torna-se seu rival e inimigo, o que a levará a fechar-se numa gruta, assim privando de sol a terra e a vida. Mas Susa no O, trazendo-lhe um espelho (que hoje ainda é um dos atributos divinos do imperador) e com dança erótica, consegue tirá-la da gruta, pelo que será expulso do céu.
Visitei várias vezes, no Japão, os santuários shintoístas de Ise -- na costa do Pacífico, consagrado a Amaterasu -- e de Izumo, na costa do Mar do Japão, onde se originou o culto de Susa no O. Só quando Amaterasu envia o seu neto à terra, Okuni Nushi, descendente de Susa no O, deverá ceder-lhe o poder terrenal, que ficará na casa imperial, em troca da permanência do próprio culto dela em Izumo. Este o relato do Kojiki. Mas já no Nihon Shoki se regista o nascimento de Amaterasu como fruto direto da união sexual de Izanagi e Izanami. A diferença talvez se possa explicar pelo carácter mais japonês do Kojiki que, menos determinado por cânones chineses, não deixou de parte uma mitologia quiçá mais antiga. Não me demorarei nessa questão, apenas direi que ela é outro sinal da concorrência, sobretudo até à era de Nara (Heijo-kyo, 720-794), das tradições culturais, religiosas e cultuais, vindas da China, com as nativas nipónicas.
[Aliás, nem devemos estranhar dualidades de relatos antigos, também o livro do Génese tem duas versões da criação do homem e da mulher. Observo ainda que também na mitologia greco-latina encontramos analogias possíveis com as histórias aqui referidas a mitos nipónicos, desde Orfeu que tenta salvar Eurídice do inferno de Hades, cujo nome latino é Plutão, o deus do mundo subterrâneo, o tal que rapta Prosérpina, filha de Júpiter e Ceres, a deusa da terra ("mãe" dos cereais), levando-a para o seu reino inferior, casando com ela e enraivecendo a deusa sua mãe que então lança a maldição da escassez de luz e colheitas sobre a terra. Tal castigo, como sabemos, levará Júpiter a obrigar Plutão a devolver a filha à mãe, uma vez por ano: eis a festa criadora da Primavera. Histórias de benesses e raivas dos deuses, de colheitas e pão (ou arroz), todas têm a ver com a vulnerabilidade da condição humana... Faço este parêntese para alertar para a natureza original da alma humana, em contos diferentes sendo, sempre e jamais, a mesma.]
Mesmo antes do século III, advento do reino de Yamato, com seus sacerdotais soberanos hereditários -- que edificaram montes tumulares conhecidos por kofun -- teria havido, no Japão, sobretudo depois da introdução da cultura do arroz, cerca do ano 300 antes de Cristo, monarquias hereditárias reclamando-se de poderes divinos. No livro de Man´yoshu (Dez mil folhas), antologia poética de finais do século IX, a primeira de língua japonesa, com 4416 waka numerados, encontrei esta elegia que Kakinomoto no Hitomaru dedicou ao príncipe herdeiro Kukasabe, quando este morreu em 689:
No princípio do céu e da terra,
todos os milhares de miríades de kami,
reunidos em alto conselho
nas praias douradas do Rio Celeste,
entregaram o governo do Céu
à Deusa Hirume, a Luz dos Céus,
e, para todos os tempos,
enquanto céu e terra durarem, deram o governo
do País do Arroz abundante, dos campos de Bambu
ao poder da sua descendência,
essa que, abrindo as oito dobras da celeste nuvem,
fez a sua divina descida sobre a terra.
Eis o nosso nobre Príncipe, filho de Quem Brilha lá no alto,
olhando para esta terra sobre a qual,
como um Deus, reina o gracioso Rei
O que para aqui importa é lembrar essa mais do que milenar tradição, bem enraizada na alma japonesa, de uma terra, um povo, um imperador de singular origem divina, ali intocáveis, como tal, desde tempos imemoriais, na sua própria união: natureza, povo e rei. A par da consciência de terem nascido no sagai kuni -- o país dos desastres naturais, terramotos, maremotos furacões... -- os japoneses festejam social e religiosamente os encantos coloridos da primavera (p. ex. os hanami, festadas sakura ou cerejeirasem flor) e do outono (os momiji ou folhas de outono dos bordos) e, pelo calendário dos anos, os seus mortos e antepassados, as crianças de 7, 5 e 3 anos (shichi-go-san se chama a festa), e sobretudo o shogatsu (o Ano Novo, o dia certo do mês inicial: nessa noite, além do jantar ritual em família (hatsumode), vai-se aos santuários shinto dar graças, cumprimentar os kami e pedir-lhes proteção e ajuda; e, pela madrugada, vai-se ver o sol nascer (hatsuinode): é o Novo Dia, por excelência o dia do Sol Nascente... São inúmeros, e estão por todo o lado, como as festas das nossas aldeias cristãs, os Matsuri ou festivais de inspiração shintoísta. E outros há, os nenju gyoji, de origem chinesa, budista ou confucionista, alguns que até compõem calendários de ritos imperiais, mas não são esses para aqui chamados. Na origem, os matsuri são festas religiosas, ritos de propiciação dos deuses e dos espíritos dos mortos, pelas sementeiras e boas colheitas, saúde e paz, afastamento dos maus espíritos e temíveis ameaças. São, portanto, celebrações, muito populares, da comunhão da terra, dos povos e dos kami, com forte estrutura coletiva. Por isso incluem refeições com os deuses (naorai), oferendas aos santuários, ritos de bênção de campos, sementeiras e colheitas, pessoas e seus instrumentos, invocações de tradições da vida e de alegrias históricas, muitas vezes em divertimentos coletivos, das procissões de andores a representações teatrais, de justas de tiro ao arco a concursos hípicos. Um dos matsuri mais populares -- e grande atração turística -- contudo, não é um festival propriamente shintoísta: trata-se do Jidai Matsuri (Festival das Idades, ou dos tempos históricos) celebrado em Kyoto a 22 de Outubro, todos os anos. Foi instituído em 1895, em plena Restauração Meiji, com a mudança do imperador para Edo, que passou a chamar-se Tokyo, ou capital oriental. Um cortejo sai do palácio imperial de Kyoto e vai até ao templo de Heian, numa sucessão de procissões, andores e carros alegóricos dos períodos da história da cidade capital (Heian kyo, ou Capital da Paz, sendo o primeiro nome de Kyoto) desde o ano de 794, quando, de Nara, para ali se mudou a casa imperial. É importante não esquecer que este festival, não sendo religiosamente shintoísta, traduz, à sua maneira e com intenção política, a fulcralidade da linhagem imperial na identificação nipónica: os imperadores tinham residido em Kyoto por mil anos, 600 deles mesmo depois de se ter iniciado uma sucessão de governos shogunais instalados noutras localidades, sendo que o de maior longevidade foi o dos Tokugawa (1600-1867), sediado em Edo, e a única exceção a do shogunato Ashikaga (1338-1573), sediado em Kyoto, durante a era conhecida por Muromachi. Quando, após a restauração do poder imperial efetivo, com o imperador Meiji, este decide levar a sua residência para Edo, de forma a não ficar afastado dos titulares e serviços da administração central, que ali fora domiciliada pelo shogun, à nova capital imperial será então dado o nome de Tokyo, mas o Jidai Matsuri lembrará que, afinal, capital mesmo só a do imperador...
Para não me acusarem de obliterar os factos da atualidade, regresso ao que acima deixei dito sobre as celebrações do Ano Novo, as ceias rituais, as visitas aos santuários, o nascer do sol... Nem todos os japoneses ainda assim procedem: muitos há, sobretudo entre os jovens emancipados e casais de namorados, que preferem ir para um hotel celebrar a passagem de ano à ocidental. Como muitos europeus vão passar o Natal em férias nos trópicos... Tal como se tornou, nessa mesma classe etária, muito popular a noite de amor e champanhe de S. Valentim... Também outros, e de outras gerações, são hoje céticos ou descrentes dos mitos fundadores, e mesmo opositores da tradição imperial. Mas, apesar da Constituição de 1949 já não consagrar a origem divina do imperador, considerando-o apenas um símbolo do Japão, Nihon ou Nippon (Japão), continua a significar a origem ou raiz do sol, e os dois caracteres que dizem imperador, Tenno, em português lêem-se assim: Céu Rei, isto é, Imperador Celeste. Se a isto acrescentarmos a regular uniformidade física dos nipónicos e os modos, usos e costumes que, nas escolas, desde pequeninos, os formam como seres sociais, compreenderemos que, mesmo empalidecidos ou apagados, os mitos antigos marcam uma identidade.
Em 2010, à volta da preparação da viagem do Centro Nacional de Cultura ao Japão, fui convidado a participar em charlas várias e a proferir algumas palestras, mesmo fora do CNC, de que destaco as realizadas no Museu do Oriente, no Grémio Literário, no Real Club Tauromáquico Português. E, sobretudo depois de feita a peregrinação ao Japão da nossa história, muitas vezes me pediram que participasse em almoços e jantares particulares, para falar do Império do Sol Nascente, sobretudo a grupos de amigos que planeavam, por sua conta e vez, uma viagem até lá. Entretanto, também fui contando memórias e outros, vários, pensares e sentires, designadamente em crónicas publicadas no blogue do CNC, algumas das quais recentemente coligidas em livro editado pela VERBO / BABEL. Esta edição valeu-me um recorrer de entrevistas e contactos, sobretudo novas solicitações de dicas e pistas para visitar o Japão. Entre elas, uma da Associação de Amigos do Museu do Oriente, para que fizesse uma exposição oral de cerca de sessenta minutos, naquele museu, por ocasião do seu 8º aniversário, em 8 de Maio de 2016. Dá-se aqui uma coincidência de 8´s, número fasto chinês. Sobretudo pela preocupação de evitar repetir-me, reproduzindo o que já dissera ou escrevera no livro, em crónicas, em palestras e entrevistas, decidi redigir previamente a minha próxima exposição. Eis a razão dos textos que se seguem. Antes de os apresentar, quero, contudo, lembrar o que escrevi para a apresentação pública, no Círculo Eça de Queiroz, a 4 de Fevereiro deste ano, do Fomos em Busca do Japão, e que, aliás se encontra registado, e pode ser consultado, no tal blogue do CNC, com data de 31 de Janeiro. Ali realço que a visita feita em 2010 se inseria no ciclo de peregrinações promovido pelo CNC sob a designação Os Portugueses ao Encontro da sua História, e sublinho que desde logo me foi proposto um tema, que não só me instruía um propósito, como também me antepunha o esboço de um itinerário: eu teria de conduzir uma visita a uma espécie de Japão luso-nipónico, e não propriamente apenas àquele que eu conhecia e gostaria de apresentar.Aceitei esse desafio, que aliás se revelou muito gratificante, porque, para além de me dar uma nova oportunidade de pôr o coração na nossa história, foi a ocasião de falar, com portugueses, dum Japão que fugia a retratos feitos e a circuitos turísticos comerciais, na minha tentativa de "recriar" a gente, a terra e a cultura que os nossos compatriotas quinhentistas tinham procurado e vindo a encontrar. A proposta de projeto ou itinerário de viagem que os textos seguintes encerram corresponde ao que eu gostaria também de fazer com amigos meus ou, melhor, a um largo trecho desse percurso do desejo, que corresponde a um trepar pela história cultural do Japão, desde a introdução da escrita, no século VI, até à Restauração Meiji, no XIX. Se tivéssemos mais tempo, percorreríamos ainda sítios e testemunhos da construção, crescimento, expansão, exorbitação e queda do Dai Nippon, o grande Japão Imperial, desde 1868 a 1945, tal como da atual democracia social-nipónico-capitalista (qualquer dia terei de explicar este conceito), tecnológica, científica, exportadora e fervilhante de modas e modelos de novas culturas. Iríamos também ao encontro dos abrigos e segredos escondidos, desde aqueles retiros repousantes perdidos nas montanhas, onde saboreamos o prazer inolvidável de uma imersão em águas termais bem caldas, num tanque cavado na rocha, contemplando, ao ar livre, a circundante paisagem de neve, saboreando depois uma refeição japonesa, de peixe daqueles riachos, raízes, tubérculos e legumes colhidos nas serranias... até às demarcações dos muitos territórios sagrados de kami shintoístas, aos ritos animistas praticados nas aldeias e nos arrozais, aos templos budistas rodeados de montanhoso silêncio, ao habitat dos kakure kirishitan. E, em contraste com tudo isso, experimentaríamos a agitação disciplinada das grandes metrópoles, os grandes centros de comércio eletrónico como Akihabara, as tasquinhas de petiscos, cerveja e sake de várias procedências, os bares de karaoke, os excelentes -- e caros -- restaurantes japoneses de kaiseki ryori, com soberbos arranjos das porcelanas e lacas ao serviço de paladares delicados... e do culto das estações da natureza!
Há sempre um Japão secreto, muito íntimo, que nos pede namoro e é como o fruto do Paraíso: depois de provado, deixa-nos a boca cheia de inesquecível sabor. De saudade, talvez. O silencioso amor dos japoneses pelo fado -- a mesma íntima escuta que senti quando, logo depois do terrível terramoto de Kobe, em 1995, lá levei o Coro Gregoriano de Lisboa -- tem certamente a ver com essa lembrança irreparável do leite materno, que a palavra amaetão bem traduz. Saudade e amae chamam-nos à origem de nós, a esse ponto de interrogação que nos habita e em que, confusos, nos misturamos com Deus.