Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. Quando visitamos um casal amigo com filhos pequenos, é permanente a experiência de que os miúdos começam por exaltar-se, mostrando-nos os seus novos jogos, desenhos, etc. Com o tempo, os adultos vamos às nossas conversas, ficando as crianças esquecidas. Mas elas vão de novo chamar a atenção, com o telemóvel, uma fotografia... Depois, como voltamos às questões dos adultos, pode não restar aos miúdos outra alternativa que não seja bater com o pé no chão, amuar, fazer birras...
Mas não são só os miúdos ou os adolescentes. O que os adultos fazem para chamar a atenção... O que se investe, o que se gasta, para parecer e aparecer!
Tudo para chamar a atenção... Afinal, é mesmo isto: não nos basta existir, estar aí pura e simplesmente. Queremos, temos fome ontológica de existir para alguém, para os outros. Não nos basta existir, sermos conhecidos; precisamos de ser reconhecidos pelos outros. As lutas, as pelejas que travamos para isso: para sermos reconhecidos!... Numa obra que constitui um dos cumes do pensamento humano, A Fenomenologia do Espírito, o filósofo Hegel, ao traçar o caminho das diferentes figuras da consciência até ao Espírito Absoluto, descreve a um dado momento, concretamente na dialéctica famosa do senhor e do escravo, a luta de vida e de morte entre as consciências, precisamente em ordem ao reconhecimento.
Também Sartre, nomeadamente em O Ser e o Nada, dedicou páginas célebres a esta questão do reconhecimento. Para que a nossa existência se legitimasse, este reconhecimento deveria ser incondicional. Daí, aquelas perguntas terríveis: será que ele, será que ela, seria capaz de mentir por mim?; será que, por mim, ela/ele seria capaz de matar? Mas, para Sartre, o reconhecimento é impossível, pois, concretamente mediante o olhar, ou eu coisifico o outro ou o outro me coisifica a mim. Apesar da nossa ânsia incontida de reconhecimento, não há possibilidade de sair desta luta. Por isso, "o inferno são os outros".
Foi com esta mesma problemática que se debateu São Paulo num dos monumentos culturais maiores da Humanidade: a Carta aos Romanos. De nada o ser humano precisa tanto como de justificar a existência, saber-se justificado. A nossa salvação consistiria no reconhecimento, na justificação incondicional da nossa existência pelo Absoluto, por Deus. Porque, seres humanos frágeis, falíveis, mortais, não podemos reconhecer-nos incondicionadamente, e, por conseguinte, salvar-nos. O Evangelho, a Boa Notícia do cristianismo, está precisamente em que Deus, em Cristo, nos justifica, isto é, nos acolhe incondicionadamente, de tal modo que a nossa vida vale a pena, pois vale para o próprio Deus. E, aqui, permita-se-me uma breve observação. Uma vez, em Maputo, numa palestra simples, tentei explicar isto da justificação. Soube mais tarde que um negro moçambicano ficou tão contente que fez pelo menos dez quilómetros a pé para ir dar a boa notícia a uma irmã de sangue: “Está lá, em Maputo, um tipo de Lisboa que esteve a explicar que nós todos valemos para Deus. Já viste? Valemos para Deus. Nós temos valor para Deus. Eu tinha de vir dizer-te isto.”
2. O ser humano, pessoa e não coisa, não tem definição adequada. Mas, reflectindo sobre a sua constituição, penso que Pascal, um dos maiores matemáticos de sempre e também um dos maiores cristãos europeus, tem razão, quando disse: o Homem mora ali algures “entre o nada e o infinito”. É isso. Aliás, a neotenia aponta também neste sentido. Nascemos prematuros, e, por isso, enquanto os outros animais nascem feitos — desde o primeiro dia fazem o que farão ao longo da vida —, o Homem, ah!, o tempo que demora a fazer um ser humano: tem de aprender quase tudo: a pôr-se em pé, a andar, a falar... Temos de receber por cultura e criando cultura o que a natureza nos não deu. Por isso, inovamos, criamos o novo, de tal modo que, se Platão, por exemplo, cá voltasse, encontraria os outros animais como os deixou, mas que dificuldades teria para se adaptar à nossa sociedade. O que isto mudou! Tendo vindo ao mundo por fazer, a nossa tarefa essencial, queiramos ou não, é fazermo-nos. O que andamos cá a fazer? Resposta: fazendo o que fazemos, andamos a fazer-nos..., e, no fim, o resultado será uma obra de arte ou uma vergonha...
Fazemo-nos uns aos outros e uns com os outros e ou colaboramos ou destruímo-nos. Entretanto, na luta pelo reconhecimento, não penso que sejamos piores do que os que nos precederam. Pelo contrário, até há mais consideração pela dignidade humana, pelos direitos humanos... O que se passa é que temos mais poder, incluindo, pela primeira vez na História, o poder de nos destruirmos como Humanidade. E, desgraçadamente, é tal a fome de reconhecimento, que se pode chegar à loucura de actos de terrorismo: “hão-de reconhecer-me; se não for a bem, será a mal”.
Em busca de reconhecimento, queremos sempre mais poder, como constatou Thomas Hobbes no Leviatã: “Assinalo, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e inquieto desejo de poder e mais poder, que só acaba com a morte. A razão disso radica no facto de que não se pode garantir o poder a não ser procurando cada vez mais poder.” Mas então, num mundo global e com armamento nuclear, o que pode esperar a Humanidade?
Finitos, queremos o Infinito. Mas, atenção!, só Deus é infinito e só Ele pode dar a plenitude, como escreveu Santo Agostinho: “Fizeste-nos para ti, ó Deus, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 2 de abril de 2022
1. Ninguém pensa a partir do nada, melhor, a partir de zero. Quando damos por nós, já cá andávamos e estamos sempre marcados pela nossa história desde o ventre materno, pelas experiências fundas dos nossos primeiros encontros e desencontros na vida, na família, numa determinada língua, com os vizinhos, com os amigos, ...
Há os pressupostos no sentido negativo: ir para um encontro, para um debate, já com preconceitos malévolos. Mas ninguém está na vida sem pressupostos no sentido indicado, positivo: a nossa história toda que nos marca positiva e negativamente. Ninguém se encontra na vida puro, sem pressupostos, sem preconceitos. Ninguém parte de um ponto inaugural puro e neutro.
Também o filósofo Jean-Paul Sartre foi marcado pelas suas experiências, desde tenra idade. Segundo Charles Moeller, ter ficado órfão de pai muito cedo e viver com o padrasto como um estranho foi uma experiência marcante. A sua posição face à fé é bem conhecida e essa sua experiência de órfão não lhe foi indiferente.
Para ele, o mundo é sem sentido, o ser está a mais, é “viscoso” — leia-se A Náusea. Na sua obra estritamente filosófica, O ser e o nada, quer explicar como é que o desejo do ser humano é ser Deus, mas o próprio conceito de Deus é contraditório. Por isso, é absurdo ter nascido, é absurdo viver, é absurdo morrer. Reclamando uma liberdade absoluta, nega a alteridade, o mundo, Deus.
Houve, no entanto, uma espécie de interregno neste seu posicionamento intelectual e existencial. Com a derrota do exército francês, foi feito prisioneiro, e precisamente em 1940, num campo de prisioneiros escreveu um auto de Natal — Bariona, ou le Fils du tonerre (Barjonas, ou o Filho do trovão), para ser representado num barracão, um auto que unisse cristãos e não cristãos. Ele próprio desempenhou o papel de uma das personagens, mas que se trata de uma espécie de interregno prova-o o facto de a sua primeira publicação, em 500 exemplares não comercializáveis, só se ter dado em 1962. Mas também escreveu a Simone de Beauvoir: “Parece que fiz um mistério de Natal muito comovente, de tal modo que um dos actores, quando representava, chegava a chorar.”
Não vou desenvolver o desenrolar da peça. Mas do que se trata, em vários níveis e desenvolvimentos, é do confronto entre, por um lado, o niilismo existencialista, colocar um ponto final ao absurdo e à Humanidade, e, por outro, a luminosidade de um novo nascimento, que abre esperança para um mundo novo, um recomeço, “um novo início”, como diz Massimo Borghesi, que estou a seguir.
Barjonas, que quer convencer Sara a eliminar o filho que tem no seu ventre, diz-lhe: “Mulher, essa criança que queres deixar nascer é como uma nova edição do mundo. Por meio dela, as nuvens, a água, o sol, as casas, as dores dos homens existirão mais uma vez. Tu recriarás o mundo. Fazer um filho é aprovar a criação do mundo do fundo do próprio coração, é dizer ao Deus que nos atormenta: ‘Senhor, tudo é bom e dou-vos graças por terdes feito o universo’. Queres realmente cantar esse hino? A existência é uma lepra horrenda que nos corrói a todos, e nossos pais foram culpados.”
Mas lá está também o rei mago Baltasar, personificado em cena pelo próprio Sartre e que representa o momento da esperança: “É verdade, somos muito velhos e muito sábios e conhecemos todo o mal da Terra. Por isso, quando vimos aquela estrela nos céus, os nossos corações alegraram-se como o das crianças, e tornámo-nos crianças e pusemo-nos a caminho, pois queríamos cumprir o nosso dever de homens que esperam. Quem perde a esperança, Barjonas, será expulso do seu vilarejo. Mas a quem espera tudo sorri e o mundo é dado como um presente.”
A esperança de Baltasar é como a esperança de Sara. Também ela quer ir a Belém: “Lá em baixo, há uma mulher feliz e satisfeita, uma mãe que deu à luz por todas as mães. É como se me desse uma permissão: a permissão de pôr no mundo o meu filho, dando-o à luz. Quero vê-la, vê-la, essa mãe feliz e sagrada.”
Em Belém, diante do estábulo, Barjonas encontra Maria de costas, não vê Jesus, vê apenas José: “Mas vejo o homem. É verdade, como ele olha para o Menino! Com que olhar! O que pode haver por trás daqueles dois olhos claros, claros como duas profundezas límpidas nesse rosto doce e marcado? Que esperança será essa?”
Sartre está mesmo à porta do mistério cristão, pondo Barjonas a afirmar: “Um Deus-Homem, um Deus feito da nossa carne humilde, um Deus que aceitaria conhecer este gosto de sal que existe no fundo das nossas bocas quando o mundo inteiro nos abandona, um Deus que aceitaria antecipadamente sofrer o que eu sofro hoje.”
2. E aí fica outra parte belíssima, a mais bela, do texto de Jean-Paul Sartre. Todas as mães olharão para o seu bebé com um encanto que só elas poderão sentir perante aquele milagre que vem delas e as ultrapassa infinitamente. Neste texto, Sartre descreve-nos o maravilhamento terno e a ternura maravilhada e também ansiosa, inexcedíveis, de Maria diante do seu “pequenino”.
“A Virgem está pálida e olha para o Menino. Seria preciso pintar no seu rosto aquela admiração ansiosa que se viu apenas uma vez num rosto humano.
Porque Cristo é o seu Filho, a carne da sua carne e fruto do seu ventre. Ela teve-O em si própria durante nove meses e dar-Lhe-á o seio e o seu leite tornar-se-á sangue de Deus.
Há momentos em que a tentação é tão forte que esquece que Ele é Filho de Deus.
Aperta-O nos braços e sussurra-Lhe: ‘Meu pequenino’.
Mas noutros momentos fica perplexa e pensa: ‘Deus está ali’ e é invadida por um religioso temor por este Deus mudo, por esta criança que, num certo sentido, incute medo.
Todas as mães ficam perplexas, por um momento, diante daquele fragmento da sua carne, que é a sua criança, e sentem-se exiladas perante esta nova vida feita da sua vida, habitada por pensamentos alheios. Mas nenhum filho foi arrancado à sua mãe de forma tão cruel e radical, porque Ele é Deus e ultrapassa completamente tudo o que ela poderia imaginar... Mas penso que houve também outros momentos, rápidos e fugazes, em que ela sente que Cristo é o seu Filho, o seu menino, e que é Deus.
Olha-O e pensa: ‘Este Deus é meu menino, meu filho. Esta carne é a minha carne, é feito de mim, tem os meus olhos e a forma da sua boca é semelhante à minha, parece-se comigo. É Deus e parece-se também comigo’.
E nenhum ser humano recebeu da sorte o seu Deus só para si, um Deus tão pequenino para apertar nos braços e cobrir de beijos, um Deus quentinho que sorri e respira, um Deus que se pode tocar e que ri.
É nesses momentos que eu, se fosse pintor, pintaria Maria.”
3. Sartre, conclui Massimo Borghese, “nunca mais escreveria assim, nem de Deus nem do homem. A obra do Natal de 1940 continuará a ser, deste ponto de vista, uma ‘excepção’, como se a atmosfera peculiar do campo de prisioneiros o tivesse tornado mais próximo do mistério da existência. Mas isso bastou para nos conceder uma das mais belas representações do Natal na literatura do século XX.”
4. Bom Natal! Feliz, habitado pela esperança que Jesus é para todos! No final da peça, Barjonas reúne os seus homens e está disposto a bater-se para salvar a vida de Jesus, que Herodes mandou matar. Como escreveu M. Perrin, “os homens de Barjonas vão em frente, talvez para morrer, mas morrerão para que não seja assassinada a esperança dos homens livres”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 22 DEZ 2019