Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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JERUSALÉM, JERUSALÉM… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Escreveu Paul Claudel sobre a sua conversão: «Tel était le malheureux enfant qui, le 25 décembre 1886, se rendit à Notre-Dame de Paris pour y suivre les offices de Nöel». Começava então a escrever e pensava que nas cerimónias católicas, consideradas com superior diletantismo, eu encontraria um excitante apropriado e matéria para alguns exercícios decadentes. Assim disposto, acotovelado e empurrado pela multidão, assisti, com medíocre prazer, à missa solene. Depois, como nada mais tinha para fazer, voltei para as "vésperas". Os meninos do coro, vestidos de branco, e os alunos do Seminário Menor de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, que assistiam, cantavam o que, mais tarde, soube ser o Magnificat. Eu mesmo estava de pé, no meio da multidão, junto do segundo pilar, à entrada do coro, do lado direito da sacristia. E foi então que se produziu o acontecimento que domina toda a minha vida. Num instante o meu coração foi tocado e EU ACREDITEI. Acreditei, com tal força de adesão, com tal comoção de todo o meu ser, com tão poderosa convicção, com certeza tal que não deixava lugar a qualquer dúvida, ao ponto de, desde então, todos os livros, todos os raciocínios, todos os acasos de uma vida agitada, não puderam abalar a minha fé, nem, na verdade, lhe tocarem sequer". Isto tem algo de paulino. No livro dos Atos dos Apóstolos, regista-se uma arenga de S. Paulo aos judeus de Jerusalém, em que, a dado passo, o fariseu de Tarso narra a sua conversão à "Via": "Estava a caminho e aproximava-me de Damasco, quando, de repente, cerca do meio-dia, uma grande luz vinda do céu me envolveu com o seu brilho. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ´Saúl, Saúl, porque me persegues? ‘Respondi: ‘Quem és tu, Senhor?’ E ele então disse-me: ´Sou Jesus Nazareno, que tu persegues´." E o mesmo Paulo escreverá na sua carta aos Gálatas: "Com Cristo estou crucificado. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. Se ainda vivo dependente de uma natureza carnal, vivo animado pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Não quero tornar inútil a graça de Deus, porque se a justificação viesse por meio da Lei, então Cristo teria morrido em vão". Nestes e noutros testemunhos, a conversão irrompe no duplo sentido que a palavra latina "rutura" em línguas latinas significa: a rutura que nos chegou por via erudita e quer dizer cisão, separação; e a rotura, adveniente por via popular, com que dizemos corte interno, golpe, ferida. O convertido rompe com o seu passado, crenças e pertenças antigas. Mas também sente que, no fundo de si, uma ferida se abriu, que o mantém alerta e ele não deverá deixar sarar. A vocação de Deus à transformação dessa criatura num "homem novo", cega pelo brilho da luz da revelação. Quando reabrir os olhos e sentir a dor profunda de uma alegria nova, verá tudo com outro olhar e saberá que nada poderá fazer com que estremeça a fidelidade interior ao destino que então descobriu. Outras conversões houve e há que seguiram um percurso mais lento, estudioso até: as dos Maritain, Jacques e Raïssa, e de Vera, irmã desta; a de Edith Stein. E outras que nunca se manifestaram em confirmações públicas, mas não terão, por isso, sido menos profundas, como a "Attente de Dieu" de Simone Weil. As Escrituras não dizem se Saúl de Tarso ia a cavalo no caminho para Damasco. Mas tombando de um cavalo o foi representando a arte europeia, talvez para realçar a nobreza da personagem, a violência do acontecimento, o efeito da força que vem de cima. Miguel Ângelo pintou a cena numa parede da Capela Paulina, no Vaticano: seguindo o relato de S. Lucas, representa Cristo nas alturas, rodeado de anjos guardiões sem asas, desferindo o relâmpago da graça que fere S. Paulo e o deita ao chão, cego de luz... O tema da graça foi muito discutido antes e durante o Concílio de Trento, cujo papa foi Paulo III, que encomendou o fresco, iniciado por Miguel Ângelo em 1542. O grande artista regressou muitas vezes a ele, incluindo em poemas que compôs no fim da vida. Os exemplos das conversões repentinas e estrondosas parecem sustentar as teses da predestinação, de Calvino aos jansenistas: a graça de Deus opera independentemente da vontade dos homens... No quadro de Caravaggio - que também vimos juntos em Roma,lembras-te? - Cristo inclina-se, suspenso no ar por um anjo que parece transportá-lo, para estender a mão direita a Paulo derrubado, gritando de dor, com ambas as mãos postas sobre os olhos que a súbita iluminação cerrou, e que só voltarão a ver depois da revelação interior lhe ter transformado o olhar. Um soldado tapa os ouvidos, não quer ouvir a voz que fala a Paulo, e não vê a luz, como no relato de S. Lucas; outro, mais idoso, nada ouve, mas a luz tira-lhe a vista e ele aponta para cima, contra quem não pode ver, a lança que manipula. A graça de Deus escolhe? Ou será como a Palavra na parábola da semente lançada à terra, cujo destino dependerá do solo em que for cair? Estou no meu antro, nem pássaros já cantam no jardim. Todos dormem por estas longitudes. Vem ainda longe a manhã. Vou ao sermão 71 do "meu" Mestre Eckhart: "Surrexit autem Saulus de terra apertisque oculis nihi videbat". O místico dominicano alemão, que ainda viveu no século de Petrarca e foi condenado em Avignon (fala-se hoje em canonizá-lo!), cita da "Vulgata" latina este passo dos "Atos" de S. Lucas, que diz: Paulo levantou-se do chão e, de olhos abertos, não viu nada. E comenta: "Não poderia ver o que é Uno. Nada viu, era Deus. Deus é um nada e Deus é um algo. O que é algo, isso também é nada. O que Deus é, é-o plenamente. Por isso Dinis, o luminoso, diz, quando escreve sobre Deus: Ele é para além ser, para além vida, para além luz; não lhe atribui nem isto nem aquilo, e quer dizer que Ele é não se sabe o quê que é tão longe para além. Alguém vê qualquer coisa, ou qualquer coisa cai no teu conhecimento, não é Deus; não o é pela simples razão de que Ele não é isto nem aquilo. Aquele que diz que Deus está aqui ou ali, não acrediteis nele. A luz que Deus é, brilha nas trevas. Deus é uma verdadeira luz; aquele que deve vê-la tem de ser cego e deverá manter Deus à parte de toda qualquer coisa. Diz um mestre (Santo Agostinho): aquele que fala de Deus por qualquer comparação, fala d´Ele de um modo que não é límpido. Quanto ao que fala de Deus por nada, esse fala d´Ele de modo apropriado. Quando a alma chega ao Uno e entra num límpido despojamento de si mesma, então ela encontra Deus como num nada. Pareceu a um homem, como em sonho - era um sonho acordado - que ele estava prenho de nada como uma mulher com um menino, e no nada nasceu Deus. Ele era o fruto do nada. Deus nasceu do nada. Por isso ele diz: ´Levantou-se do chão e, de olhos abertos, não viu nada´... Aquele sonho acordado teve-o Mestre Eckhart. A linguagem dos místicos é sempre um pouco difícil para nós, sobretudo por vivermos no mundo confuso das imagens. Ela é simplíssima, magra, não se perde em pietismos ou devoções sentimentalmente antropomórficas. Procura comunicar a experiência íntima de evidências que só no silêncio se descobrem e só na disciplina interior do silêncio podem ser partilhadas. Ao ser derrubado e cego, S. Paulo apenas pergunta: ´Quem és tu, Senhor?´ E só isso faz sentido." O marquês de Sarolea tinha dois mundos: o da sua circunstância, onde folgadamente se movia, e o do seu mistério interior, a que pertencia.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 24.09.13 neste blogue.
Segundo as Nações Unidas neste ano de 2024 há — imagine-se! — 64 conflitos armados no mundo É o horror pura e simplesmente.
A opinião pública estará sobretudo voltada para os conflitos na Ucrânia e em Gaza. Deixo aí, com repetições, uma breve reflexão concentrada no confronto entre palestinianos e judeus, pois está a ser objecto da atenção pública, também por causa das intervenções recentes do Papa Francisco em Verona e do bispo José Ornelas em Fátima. Sem esquecer, evidentemente, que o ataque terrorista do Hamas no passado dia 7 de Outubro é pura e simplesmente inqualificável. Não há realmente palavras para aquele horror monstruoso.
No passado dia 13 de Maio, no final da Missa que encerrou a peregrinação internacional, o bispo José Ornelas pediu “paz para a Ucrânia, naquela cruel guerra que já dura há tanto tempo. Paz para a Terra de Jesus, a Palestina, onde mais de 35 mil pessoas já perderam a vida e a maioria, escândalo dos escândalos, são crianças”; e disse também: “o pior de tudo, o que não se pode permitir, é proibir que chegue a ajuda alimentar necessária para mais de um milhão de pessoas que estão a morrer de fome. Daqui, da Cova da Iria, apelo, apelamos para a paz. É inconcebível para um coração humano que isto esteja a acontecer no mundo.”
No passado dia 18, em Verona, Francisco participou num acontecimento verdadeiramente profético, a anunciar que é possível o milagre da paz. Subiram ao palco e disseram: “Papa Francisco, sou Maoz Inon, sou de Israel e os meus pais foram assassinados no dia 7 de Outubro pelo Hamas; Papa Francisco, chamo-me Aziz Sarah, sou palestiniano e o meu irmão foi morto pelo exército israelita. Somos empresários e acreditamos que a paz é a coisa maior que podemos conseguir”, e apelaram à paz. As dezenas de milhares de pessoas que enchiam o anfiteatro romano de Verona ficaram suspensas num suspiro emocionado, a ansiar pela paz. A multidão aplaudiu de pé. O Papa agradeceu: “Tiveram a coragem de se abraçar, um testemunho não só de paz mas também de um projecto de futuro.” Abraçaram-se os três, no meio de aplausos e de lágrimas dos presentes.
Francisco tem sido incansável no apelo à paz, nomeadamente na Palestina, com a posição que sempre tem mantido, aliás na linha da diplomacia tradicional do Vaticano quanto aos dois Estados e ao estatuto especial de Jerusalém, cidade santa para judeus, cristão e muçulmanos.
Neste espírito, relembro, por exemplo, uma Carta de Francisco ao Grande Imã de Al-Azhar, no Egipto, Amehd el-Tayeb: “A Santa Sé não deixará de recordar com urgência a necessidade de que se reate o diálogo entre israelitas e palestinianos em ordem a uma solução negociada, encaminhada para a coexistência pacífica de dois Estados dentro das fronteiras entre eles acordadas e reconhecidas internacionalmente, no pleno respeito pela natureza peculiar de Jerusalém, cujo significado está para lá de qualquer consideração sobre questões territoriais. Só um estatuto especial, também garantido internacionalmente, poderá preservar a sua identidade, a vocação única de lugar de paz a que apelam os Lugares Santos e o seu valor universal, permitindo um futuro de reconciliação e esperança para toda a região. Esta é a única aspiração de quem se professa autenticamente crente e não se cansa de implorar com a oração um futuro de fraternidade para todos.”
A quem se admire com este pedido de um “estatuto especial garantido internacionalmente” para Jerusalém, em ordem a preservar a paz, aconselho que relembre o acordo das Nações Unidas sobre esta temática, e a quem quiser aprofundar a questão, a leitura de duas obras monumentais do teólogo Hans Küng: O Judaísmo, O Islão.
Como é sabido e repito, em 29 de Novembro de 1947, por maioria sólida e com o beneplácito dos Estados Unidos e da antiga União Soviética, as Nações Unidas aprovaram a divisão da Palestina em dois Estados: um Estado árabe e um Estado judaico, com fronteiras claras, a união económica entre os dois e a internacionalização de Jerusalém sob administração das Nações Unidas. Note-se que, apesar de a população árabe ser quase o dobro, os judeus, que então possuíam 10% do território, ficariam com 55% da Palestina.
O mundo árabe rejeitou a divisão e são conhecidas as guerras sucessivamente travadas. Mas, à distância, mesmo admitindo a injustiça da partilha e as suas consequências — é preciso pensar na fuga e na expulsão dos palestinianos —, considera-se que a recusa árabe foi “um erro fatal” (Hans Küng). Aliás, isso é reconhecido hoje também pelos palestinianos, pois acabaram por perder a criação de um Estado próprio soberano pelo qual lutam.
Como se tornou claro, a guerra não gera a paz, que só pode chegar mediante o diálogo, a diplomacia, cedências mútuas, com dois pressupostos fundamentais: o reconhecimento pelos Estados árabes e pelos palestinianos do Estado de Israel e o reconhecimento por parte de Israel de um Estado palestiniano viável, independente, soberano. E Jerusalém?
Como já aqui escrevi, na continuação de Küng, o conflito do Médio Oriente é sobretudo político. Mas não haverá paz enquanto os membros das três religiões monoteístas, que se reclamam de Abraão, se não tornarem activos, impedindo o fanatismo religioso. Com base nos seus livros sagrados — Bíblia hebraica, Novo Testamento, Alcorão —, judeus, cristãos e muçulmanos devem reconhecer-se mutuamente e lutar pela paz. Esta é a mensagem de Roma para Jerusalém.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 25 de maio de 2024
O que ultimamente se tem passado em Jerusalém é preocupante, mas sobretudo muito triste: as provocações e retaliações homicidas de judeus e palestinos muçulmanos relativas à ocupação ou utilização de lugares santos para eles - e para cristãos também - radicam não só no pretenso estatuto da cidade como capital do estado sionista de Israel ("Jerusalém completa e unificada é a capital de Israel" diz a lei do estado ocupante, ao arrepio de decisões das Nações Unidas) e na reivindicação palestiniana de que ela seja a capital do estado a que os palestinos têm direito, nem apenas na submersão do diálogo inter-religioso, nem na deterioração do convívio étnico. O caso tem raízes históricas, com pesadas responsabilidades de potências ocidentais, que não devem ser escamoteadas. Todos sabemos, por exemplo, que, para efeitos de enfraquecimento, pelo interior, do Império Otomano, seu inimigo na Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico fomentou levantamentos de súbditos (judeus e árabes) daquele, prometendo-lhes estados independentes. Tal como, durante séculos, durante e depois dos tempos bíblicos, houve quezílias, destruições e exílios, mas também períodos de entendimento mútuo e partilha (mesmo sob domínio otomano), estes sempre que o poder hegemónico foi permitindo e fomentando o convívio e a paz entre etnias, confissões religiosas, fações políticas... O povo, os povos, afinal, talvez prefiram a harmonia possível ao afrontamento brutal. Também na música, o concerto é um despique que se resolve nas consonâncias procuradas, e na final que se conseguir alcançar. Não vou agora repetir relatos do que hoje se passa, nem narrativas do que se passou. Há livros de história e reportagens jornalísticas que contam coisas, talvez demasiadas coisas, pois cada qual procura puxar a brasa à sardinha, poucos quiçá fazendo apelo ao universalmente humano desejo de coexistência na tranquilidade. Pensossinto que, se não se manipulassem multidões, aspirações e opiniões, talvez, terra a terra, a cidade dos homens pudesse ser de todos, por tanto, tão pouco ou tão muito, sentida por cada um como sua. Que assim não seja, ou tão difícil pareça poder sê-lo, resulta sobretudo de não haver prioridade da consulta aberta dos povos, que são muitos e partes legitimamente interessadas, sem interferência de títeres, que são poucos e partes ilegitimamente interesseiras. Os nossos sistemas políticos - ditaduras, sublevações, terrorismos ou democracias - sofrem desse mal endémico que é pretender, pela força do poder instalado ou revolucionário, ou pela matreirice do "marketing" eleitoral, impor vontades e destinos alheios ao que as gentes do dia a dia, feito de trabalho, família e comunidade, desejam. Os anseios dos povos são assim dados lançados no tabuleiro dos jogos do poder. Num jogo que mal disfarça a ganância financeira de uns, a soberba pretensiosa e dominadora de outros, o egoísmo totalitário de todos eles... Serei muito estúpido, mas não acredito na distribuição da riqueza pela ditadura marxista, nem pelo funcionamento dos mercados. Talvez ela fosse possível pelo funcionamento organizado de um ou do outro sistema, desde que sempre inspirado pelo sentido da partilha comunitária... Mas todos já sabemos que, por muito que essa beleza se apregoe, nunca assim aconteceu, e até pode piorar pelos tempos que correm. E também nos parece que, apesar de necessário e indispensável, o princípio ético da solidariedade e da justiça, não funcionará ao deus dará... Há certamente uma reforma das mentalidades que deve ser feita. Mas será possível fazê-la sem o adequado enquadramento institucional? Esta questão é quase como aquela de quem surgiu primeiro, se o ovo, se a galinha. Ser eminentemente social, o homem não muda em abstrato, e as instituições são a incarnação comunitária de ideias. Assim, por exemplo, esse conceito que se vai desenvolvendo, a partir das propostas de Michael Porter e Mark Kramer do lucro como criação de valor participado (investimento em inovação e competitividade a longo prazo, avaliação do impacto social e ambiental que deverá beneficiar da riqueza criada) não passará de uma aspiração enquanto não se lhe encontrarem práticas consignadas na lei que tutela a atividade empresarial. Tal como nunca se conseguirá uma reforma dos mercados financeiros, sem a terminação institucional das transações bolsistas especulativas, que tanto têm viciado o valor das empresas e a correta e transparente apreciação dos investimentos a fazer. E quanto mais forem nominativas as subscrições (em vez da distribuição vagabunda que facilita todas as manobras e reforça a manipulação de valores pelos grandes acionistas que, ainda por cima, detêm o poder de eleger os órgãos sociais e, por aí, influenciarem decisões e relatórios) tanto mais social será a empresa e responsável a participação beneficiária dos respetivos lucros. A economia privada tem vantagens indiscutíveis, pela responsabilização adveniente da propriedade, pela inovação fomentada pela concorrência. Por isso mesmo essa propriedade deve ser transparente e partilhada pela valorização democrática do capital e do trabalho; e deve a concorrência seguir regras de jogo limpo. Será que a questão fulcral do nosso destino global tenha hoje a ver mais com o vermo-nos nos espelhos dos outros, com raivas de ressentimentos ou com aspirações de emulação? Não só no interior de cada uma das nossas comunidades divididas por desigualdades, como ainda - e cada vez mais, por força dos media que nos mostram um mundo comum em desequilíbrio de direitos e benesses - na ordem internacional? Meditemos sobre os índices de satisfação (ditos de felicidade) das nossas "sociedades de afluência" e na curiosa comparação que Niall Ferguson faz entre a colonização da América do Norte e a da que se situa a sul do Rio Grande norte-americano. Professora na Sorbonne, Claudia Senik publicou agora (Paris, Seuil, outubro de 2014) L´Économie du Bonheur, que introduz assim: A modernidade democrática fez da felicidade uma ideia nova, um princípio constitucional, quase um dever. Desde que o indivíduo é reconhecido como figura central da sociedade, a sua felicidade torna-se objetivo supremo. Mas se a felicidade é a medida de qualquer escolha, importa encontrar-lhe uma métrica, mesmo aproximativa... ...Trata-se do nível de felicidade subjetiva, declarado pelos indivíduos em resposta a inquéritos feitos à população... ...O inquérito dos economistas concerne particularmente o papel da riqueza enquanto fundamento da felicidade. Dará o dinheiro a felicidade? O crescimento torna mesmo as pessoas mais felizes? Em caso contrário dever-se-á optar pelo decrescimento ou, pelo menos, medir o bem-estar para além do PIB? Poderiam então as políticas públicas utilizar a quantificação da felicidade como uma espécie de bússola? Este tipo de medida permite compreender porque é que os franceses sobrem de tanto "défice de felicidade", apesar de condições de vida objetivamente satisfatórias. Estamos aqui perante outro sinal dos tempos: em sociedades de abundância e consumo, onde o dinheiro parece ter-se tornado o único substituto dos valores que prezávamos - e medida de tudo, até mesmo do estatuto social e da consideração pessoal - eis que as pessoas se interrogam sobre o que é ser feliz... Bem sei que muitos se sentem infelizes por se pensarem discriminados relativamente aos que mais têm e usufruem, donde resulta ressentimento, inveja, sofrimento de injustiça. Ou, ainda, se sentem explorados, enganados e prejudicados por um sistema mercantil que os envolve de publicidade e promessas e os arrasta para o endividamento... Penso que uma das virtudes de maior justiça distributiva e frugalidade seria, precisamente, a de tornar uns menos soberbos, outros menos revoltados, e todos mais razoáveis e fraternos. Tal como Claudia Senik, gosto de recordar aquele discurso de Robert Kennedy, em 1968, quando era candidato às presidenciais norte-americanas e o mataram, como antes a seu irmão John: O PIB não reflete a saúde dos nossos filhos, a qualidade da sua educação, nem o prazer das suas brincadeiras. Não inclui a beleza da nossa poesia, a força dos nossos casamentos, a inteligência do debate público, a probidade dos nossos funcionários. Não mede a nossa coragem, nem a nossa sabedoria, nem a nossa devoção ao nosso país. De facto, mede tudo menos aquilo que faz com que valha a pena viver a vida, e diz-nos tudo sobre a América menos porque é que nos orgulhamos de ser americanos. A abrir o capítulo III do seu Civilisations, já nestas crónicas referido, o escocês Niall Ferguson, professor em Harvard e Oxford, interroga-se sobre as razões do maior êxito civilizacional da América colonizada pelos britânicos, em comparação com a América latina. Vou apenas traduzir aqui duas citações com que o autor sugere o seu pensamento. A primeira é de John Locke que, em 1669, na qualidade de secretário do conde de Shaftesbury, redigiu as Constituições fundamentais da Carolina (hoje dois estados dos EUA). Diz aquele filósofo: A liberdade define-se como a liberdade de cada um para regular e comandar a sua ideia, a sua pessoa, os seus atos, as suas posses, e tudo o que lhe pertence, no âmbito das leis a que está submetido; portanto, de não depender da vontade arbitrária de outrem... ...O fim principal e capital, em vista do qual os homens se associam em repúblicas e se submetem a governos é, portanto, a preservação da sua propriedade. Claríssimo: nascemos livres, e os pactos sociais são expressão da nossa livre vontade, a propriedade privada sendo garante dela. Mas nem a liberdade individual, nem a propriedade privada são um privilégio de alguns, antes são um bem comum a todos e que todos devem comumente preservar. A outra citação é de Simon Bolivar, o "libertador" da América espanhola do sul, no séc. XIX: Somos os vis descendentes desses predadores espanhóis que desembarcaram na América para a sangrarem até ao fim e se reproduzirem com as suas vítimas. Mais tarde, os rebentos ilegítimos dessas uniões uniram-se com os dos escravos importados de África. Surtos de tal mestiçagem racial e dotados de moral tão exemplar, como poderíamos permitirmo-nos colocar as leis acima dos chefes e os princípios acima dos homens? Sabendo embora como a consciência da mestiçagem pode por vezes determinar ressentimento no mestiço, não posso nem quero atribuir-lhe qualquer culpa de desacatos ou injustiças. Mas guardo, de Bolivar, o reconhecimento, também, de que as leis e os princípios devem sempre colocar-se acima dos homens e dos seus chefes. Os princípios do humanismo: liberdade, igualdade (na dignidade), fraternidade que, no cristianismo, dão pelo nome genérico de valor divino do humano. As leis que os reconheçam e proclamem, e garantam o seu respeito e aplicação. Outro dia falaremos de diferendos e progresso do direito positivo internacional. Por agora, deixo outra pergunta: será possível que a ONU se imponha ao respeito e as suas decisões sejam exequíveis, enquanto a sua própria organização, como muitas das suas regras de funcionamento, não respeitarem os princípios universais acima enunciados? Enquanto teimar ser uma Animal Farm do George Orwell: All animals are equal, but some animals are more equal than the others...?
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 26.12.2014 neste blogue.
Lá no apartamento em Jerusalém numa janela aberta para a rua os olhos do Poeta refletem a ambição de segurar nas mãos Nova Iorque ou Alexandria. Quase zangado, quase desesperado, quer dizer da saudade com as fotografias nas mãos, e nada o contenta das palavras que a definem. Afinal a saudade é um lugar de desejo, de perseguição, de punição e pede-se a Faulkner que feche a cortina ao de leve e que se deite o Poeta por entre os lençóis da cama que lhe fazem sentir um habitar Jerusalém, na cama da sua meretriz, ou Muro, que impele a sua partida dali. E fecha os olhos o Poeta, com as faces rosas de sangue que lhe recordam a cor das bochechas do filho, nascido livre, e agora outra noite, filha do livro-mãe, filha da conclusão e da pergunta com nome de destino, com nome de veleiro.
O filme começou assim, exprimindo um rosto com tudo o que deve exprimir antes que seja tarde, antes que os enigmas de cansem de ser perguntados e que o Poeta jure por Deus que não descodificou o perfume.
E o filme mostra o frasco de cristal ricamente trabalhado e de tampa de cortiça, pousado na mesinha de cabeceira: o Poeta adormece, um tanto, só um tanto, pois que as flores desbotadas que o frasco contém, embrulham o porvir, as proporções das novas estradas, placentas informatizadas que já tinham trocado o mundo do simulacro pelo Mundo da vida, e assim, mergulhadas no mar amniótico do frasco, a elas devia estar atento o Poeta.
No dia seguinte, o Poeta desce a encosta das videiras, acaricia os cachos de uvas, e súbito, pressente o perigo não cruxificado de poder partir apenas na altura que ele conhece não haver caminho, e pergunta:
- Qual a razão para que ninguém me diga de frente que só o perfil pode agir nas noticias do amor; naquelas que se aceitam em nós e nós por elas cheios de atualidade, a sabermos que podemos partir do Médio oriente seguros do que Arquimedes nos ensinou: falo da alavanca, esta que vos mostro na qualidade de vedor e que torço como se torcesse o umbigo do mundo.
O écran, surge agora com a cor e a forma de uma laranja, os gomos parecem-se a músculos iniciáticos que oferecem sumo a todos os que rodeiam o Poeta, e que ele domina afinal com o saber das coisas escondidas dando de beber e sorrindo, sereno.
E surge um forno, uma lareira, um lume que inunda os olhos de todos e que o Poeta explica tratar-se apenas de uma existência muito viva, e que antes do seu salto olímpico e mortal, arde para que todos conheçam o benefício da dúvida que as flores da música de Mozart sugerem. A casa de Mozart está toda pintada pela mão dos impressionistas. Todos, sejam quem sejam todos, pois que entrem neste noivado consumado e cuja chave é uma fábula. Uma fábula de poder. A fábula de poder dos Poetas. Sentam-se então todos numa montanha, na bainha de uma montanha, à procura de um outro início. A bainha parece igual à dos cortinados de Jerusalém. As linhas enroladas são similares a batalhas que o Poeta regista no seu caderno de apontamentos e recorda-se que isto é o significado de mesmíssimo. O essencial inalterado, afinal. O céu da tarde lança ao Poeta um cabo e ele desce por ele até fitar o que o perturba. O Poeta é sempre a conjunção do cerne dos elementos do mundo, e olhando as aguas empurra-as para o beijo, até que o lápis descreva de um outro modo a tez morena das mulheres com sarongs coloridos.
E surge a casa a tal iluminada pela candeia do Poeta: a tal do coração e da espada, do cavalo e do segredo de o montar, e lá longe de tão perto, a noção de que só do não conhecido é o futuro. Big-Bang ou a primeira batalha, a tal que não conhece a bandeira branca. O Poeta, ingénuo do poder, não julga. O Poeta continua a crer no ato limite que exponha a poesia, finalmente como solução, nem que seja por sinais de mímica, mas que a deixe a cobrir como uma pele, o mundo velho dos deuses e lhes diga que coragem é ir por onde perigoso é o norte.
Eis a Grécia!
O Poeta tem à cintura pássaros vivos e livres que assim desejam estar. É sua a vontade deste modo se acomodarem; esse o édito das suas manhãs. E o Poeta escreve que se não desliga dos incêndios das verdades, nem que lhe citem Roland Barthes. Se necessário arrendam-se as nuvens sem contrato e as suas águas transformam as florestas em verde para que todos as interpretem e ele, sozinho, arda nos factos irrelevantes que mataram os dias: nada de novo, afinal. De nada novo a não ser a estrela que se solta sem ser vista e lá do céu explica os factos todos.
Os dromedários transportavam gentes e sal pelo deserto. O tuaregue do filme «Um chá no deserto», voltou a adormecer nas dunas, olhando a mulher estranha às origens da sua cor. E sim, correu água sobre a areia no deserto durante três dias como diz o Poeta Lídia Jorge ou o amor nu, em cada canto não tivesse sido descoberto.
Em muitas circunstâncias e tempos se faz o caderno dos apontamentos do Poeta. Até o cocheiro atento ou não à maioridade da rapariga, aceitava o seu corpo doado e ainda não amado, ainda não noivado, ou, ainda era o Poeta demasiado jovem para entender aquele estado? Eu mãe-Poeta digo:
- Ó minha filha não fales alto, ninguém tem de saber que ainda estás no comboio dos nadas e que só depois da lucidez te repetirás e com ela entenderás os preceitos.
O comboio seguia junto ao mar porque ali o rio parecia o mar. O Poeta pela janela olhava o horizonte e aqui e ali presumia as cavernas nas rochas, aquelas que guardavam as sabedorias que não correspondiam à verdade. Enfim, era a viagem. Era a suspeita aqui e ali de que o livro procurado se faz ao Poeta ladrando como um cão que o arreda da esperança de entrar no carreiro da montanha. Esse carreiro, como nos mostra o filme, é um pedaço de terra que serpenteia até ao céu. E para quê? Para nos demonstrar que só estamos acompanhados de nós. Mas há futuro dizia Rui, o Belo.
Num vasto campo de milho, o Poeta utiliza a natureza por decifração e abre uma especial carola que guarda o correio que lhe é destinado. Depois de tantos anos chegar à primeira desilusão, é duro, e é duro, partir daí. O bosque que o Poeta já foi, ilumina-se só com uma arvore e lhe não basta: aquela. Parece-lhe ver uma terra de infâncias no meio daquele milho, no meio daquele acontecimento que se inicia também com pedras, pedras das montanhas, pedras com formato de condição humana, fosse o que viesse a ser essa condição em Jerusalém.
Assim, li este extraordinário livro de poesia de Lídia Jorge. Deste modo sugeri o filme: a flor de lymo que poderia dizer melhor do Poeta, quando do fim do périplo ao ponto inicial do pôr à prova, dali mesmo partiu ele, sorrindo, com o seu frasco de desbotadas flores na mão, e acredita-se que se fez de novo à expectativa.
Till we have built Jerusalem, In Englands green & pleasant Land. O dia abre com sentimento fundo de saudades ― da civilidade de Oxfordshire, dos campos viçosos do Kent, da atitude geral do doing the right thing. À mente vêm notas de Herr Martin Heidegger sobre os estados de espírito. Voam, para dar lugar utilitário ao better Socrates de Mr John Stuart Mill (1806-73).
O filósofo do Middlesex é um dos profetas da liberdade, não por acaso. — Chérie! Qui se ressemble s'assemble. O cenário de um segundo referendo sobre a partida do United Kingdom da European Union é publicamente admitido por Sir Brexit. Mr Nigel Farage adverte os Brexiteers para se prepararem para a last dramatic battle, antes que esta lhes seja imposta por maiorias hostis nas Houses of Parliament. — Umm. Why not the best vote of three!? Sandhurst recebe a Anglo-French summit, reunindo o French President Emmanuel Macron com a Prime Minister Theresa May e Cabinet Ministers a par dos Princes William e Harry. Em Berlin, a Bundeskanzlerin Frau Angela Merkel continua a negociar eventual Grosse Koalition entre a sua eurocética CDU com o eurófilo SPD de Herr Martin Schultz. Já pelas ilhas, a ala corbynista do Labour Party reforça a participação no National Executive Committee. Vai crescer. A mega empresa de infraestruturas Carrillion sucumbe na praça da monarquia, sem o resgate à última hora pedido a Downing Street.
Sky partly cloudy at Great London. A town talk está submersa em torno das semânticas da Brexit, após mais uma peculiar remodelação governamental, Há novos talentos nas fileiras conservadoras. A estampa inicial do pretty much as before é incontornável ao fim do dia, porém. Aliás, algo que evoca os tempos do Major Govt. Uma mexida sensível ocorre na ligação do executivo ao partido: a líder aponta RH Brandon Lewis como new Tory chairman, nome que quer conjugar com o rejuvenescimento da militância. Sob o denominador comum da missing oportunity, o comentário na honorável Press é misto. Assinalemos as extremas da rossio. No jornal crítico dos críticos de Mrs May retrata-se uma tela cruel das subidas e descidas num Cabinet de 25 membros, cuja balança interna soma sete Brexiteers ― Premier excluída. Resume o London Evening Standard do arquirrival Mr George Osborne: “You have to hand it to May. With this week’s «farce,» she has now achieved the hat-trick of the worst reshuffle, the worst party conference speech and the worst manifesto in modern history.” Ouchh. Recorde-se que o editor do assanhado LSE é o anterior Chancellor of The Exchequer, o qual a senhora destituiu ao entrar na residência de Downing Street, Mais equitativo é o favorável Daily Telegraph. Explica Mr James Kirkup que o presente rol de winners & loosers segue o padrão habitual dos “messy and managerial affairs.”
Mas Monsieur Macron is coming… again. Em oposição ao divisivo US President Donald J Trump, que acaba de cancelar uma visita a London para inaugurar a nova embaixada americana no reino, Westminster está de braços abertos para com o “young JFK,” O apoio explícito do Number 10 ao ido candidato aquando da corrida ao Palais de l'Élysée dá frutos. O dirigente da Rue du Faubourg vem com o seu top ministerial team e gera expetativas em todos os quadrantes políticos quanto à intermediação parisiense nas duras negociações da Brexit em Brussels. Ver-se-á se, desta feita em contraste com o European Commission President Jean Claude Juncker, no fim da cimeira não há queixas do cozinheiro local e antes louvores à aliança diplomática que secularmente une os primos atlânticos do English Channel. No countdown das chancelarias, faltam 19 meses para a saída dos Brits da Other Union. Justamente quando há uma incrível inscrição no flanco dos disponíveis para re-run referendário. Isto é: A bandeira do #EUref II não é mais exclusivo dos Liberal Democrats, de Sir Vince Cable, para gáudio escocês. É agitada pelo mesmo protagonista que, à frente dos ukippers, há décadas defende o estado soberano insular contra o superestado continental: Mr Nigel Farage MEP, por cá cada vez mais visto em mediáticas cavaqueiras com destacados Remainers como Mr Alastair Campbell (o ex Press Secretary do PM Tony Blair) ou Lord Adonis (o chairman da National Infrastructure Commission que se demite do cargo em protesto contra a política europeia de Mrs May). ― Quite surprising, indeed. What are those three cooking? A new lord?!
A amenizar esta paisagem política, eis uma excelente notícia para os apaixonados do countryside. Whitehall dá luz verde à plantação de 50 milhões de árvores num “120-mile corridor” entre Liverpool e Hull.
A novíssima Northern Forest arranca na primavera e contém cabaz misto de latifoliadas e coníferas, visando criar habitats para espécies variadas como morcegos, pássaros ou os adoráveis red squirrels. Mais: O plano ecológico prevê espaços próprios de observação, para visitantes humanos, espalhados de Leeds a Manchester. O plantio dispõe de um orçamento central de £5.7m e £10m do Woodland Trust, num custo final global de quase £500m. — Well. Not so much. Remember the long life of that beautiful poem pennedby Master Will around the Stratford’s mulberry leaves:— “Under the greenwood tree / Who loves to lie with me, / And turn his merry note / Unto the sweet bird's throat, / Come hither, come hither, come hither: / Here shall he see / No enemy / But winter and rough weather. | Who doth ambition shun, / And loves to live i' the sun, / Seeking the food he eats, / And pleas'd with what he gets, / Come hither, come hither, come hither: / Here shall he see / No enemy / But winter and rough weather."
Jerusalém, hoje ocupada pelos israelitas, há muito tem sido motivo de afrontamentos e conflitos, objeto de veneração e desejos de posse, como bem sabes. A cidade do Templo judaico é santa, também, para cristãos e muçulmanos, centro de orações, destino de peregrinações. Para os cristãos assim é, intensamente, desde o século IV.
A sua conquista, em 614, pelos persas será anulada pela reconquista do imperador cristão bizantino Heráclio, catorze anos depois. Mas a expansão islâmica, pela jihad, no Médio Oriente e Norte de África, permitiu a sua ocupação pelo islão e veio dificultar, por vezes com violência persecutória, o seu acesso aos peregrinos da cruz. Lembra-te, todavia, de que o califa Omar, que ocupou a Cidade Santa em 637, respeitou a rotunda do Santo Sepulcro de Cristo, tornando Jerusalém santa também para o Islão, até porque Jesus é profeta maior no Corão.
Carlos Magno conseguiu, no século IX, autorização dos califas para as visitas de cristãos peregrinos e, mesmo, para a instalação de mosteiros. Mas o advento do califado Fatimita, que ocupou Jerusalém em 965, estragou tudo, já que o califa Al-Haquim, fanático e perseguidor de judeus e cristãos, destruiu, em 1009, aqueles lugares santos. Seguiu-se um período de exclusão dos cristãos, até 1054, ano em que o imperador bizantino conseguiu um acordo com o califa fatimita da altura, acordo em que, inclusive, se previa a reconstrução da Rotunda. Mas o triunfo dos Turcos Selêucidas voltou a trazer perseguições e a impedir peregrinações, massacrando os participantes. Até que Godofredo de Bulhão, com seus cruzados (a primeira cruzada fora lançada pelo papa Urbano II em 1095), a conquista em 1099.
Nasce então o reino cristão de Jerusalém, que terá de ser defendido. Tal como deverão ser protegidos, no seu caminho para lá, os fiéis cristãos que, tendo atravessado o Mediterrâneo, por terra vão chegar ao Santo Sepulcro. Em 1118, nove nobres cavaleiros francos decidem consagrar as suas vidas a essa tarefa de proteção dos peregrinos e congregam-se numa milícia a que chamam Cavaleiros Pobres de Cristo. Serão, no reinado de Balduíno II de Jerusalém, apelidados Templários ou Cavaleiros do Templo, depois de o rei lhes ter cedido, para residência na Cidade Santa, parte do seu palácio do Templo. Apoiados por São Bernardo de Claraval, o grande reformador cisterciense, distinguiram-se entre as ordens religiosas militares.
Escreve aquele abade no seu De laude novae militiae (1130): Os Templários vivem sem nada terem de seu, nem sequer vontade própria. Vestidos com simplicidade e cobertos de poeira, têm o rosto queimado pelos ardores do sol, olhar brioso e severo; quando o combate se aproxima, armam-se de fé por dentro e de ferro por fora; as suas armas são seus únicos ornamentos; delas se servem com coragem no meio dos maiores perigos, sem temerem o número nem a força dos Bárbaros: toda sua confiança está no Senhor Deus dos Exércitos; e combatendo pela Sua causa, procuram uma vitória certa ou uma morte santa e honrosa. Ó feliz modo de vida, no qual se pode esperar a morte sem medo, desejá-la com alegria, recebê-la com segurança!
Não esqueças, Princesa, que os templários cedo desempenharam também um papel reconhecido na reconquista cristã da Península Ibérica, tal como os monges de Cister no povoamento de Portugal, onde os seus grandes mosteiros foram centros promotores da colonização agrícola do território. As terras geridas pelo de Alcobaça, por exemplo, estendiam-se por cerca de 45 mil hectares! E o território confiado à proteção permanente dos Templários cobria, tal como as atribuídas a outras ordens de cavalaria, parte considerável do território nacional em consolidação, situando-se os principais castelos da Ordem do Templo em Tomar, Castelo Branco, Soure e Almourol. A presença dessas ordens militares e suas fortificações na Península Ibérica justifica-se pelas guerras da Reconquista, aliás vistas como cruzadas. Mas - até 1291, quando, a 28 de Maio, cai a cidadela cristã de São João d´Acre - o centro da vida templária era a Palestina, muito embora continuassem em França as suas raízes, e em Paris a sua casa principal, que desde o século XII recolhia depósitos das finanças reais. Aliás, voltarei a falar-te nisto, quando nos debruçarmos sobre a queda em desgraça e extinção da Ordem do Templo...
Por hoje, recorro a La Vie des Templiers (Paris, Gallimard, 1974), de Marion Melville, com vários testemunhos coevos da vida dos cavaleiros em Jerusalém, por me parecer interessante "entrarmos" naquele ambiente:
«Entre as muralhas de Jerusalém e a Porta Dourada encontra-se o Templo. Há aí um espaço mais comprido do que um grande traço de seta, e com a largura de um lançamento de pedra, e daí se chega ao Templo. Esse espaço é lajeado e, passando o seu portal, encontra-se à esquerda o Templo de Salomão, onde moravam os Templários». Do terreiro sobem degraus até à Cúpula do Rochedo, o Templum Domini, onde os cavaleiros passeavam nas horas de lazer. O Templo era uma cidade na cidade, uma fortaleza na fortaleza.«À direita, do lado meridiano, encontra-se o palácio que dizem ter sido construído por Salomão. Nesse palácio ou edifício, vê-se uma cavalariça de tão maravilhosa e grande capacidade, que pode abrigar mais de dois mil cavalos ou mil e quinhentos camelos. Os cavaleiros do Templo têm muitos edifícios atinentes ao palácio, largos e amplos, com uma igreja nova e magnífica, que ainda não estava acabada quando a visitei» [...] O refeitório a que os judeus insistiam em chamar palácio era uma vasta sala abobadada e com colunas. Os muros estavam ornamentados com troféus de armas, desses que os Templários usam para decorar as igrejas: espadas, elmos forrados a damasco, escudos pintados, cotas de malha dourada tomadas ao inimigo. Os escudeiros arrumavam as mesas ao longo das paredes e cobriam-nas de toalhas de pano antes das refeições; os primeiros a chegar sentavam-se de costas para a parede, os outros à frente deles. Só o mestre e o capelão do convento tinham direito a lugares reservados. Juncavam-se as lajes de canas, como em todos os castelos, e apesar da proibição de os Templários caçarem, não faltavam cães deitados debaixo das mesas - e gatos também - sendo proibido dar-lhes os restos destinados aos pobres... Segundo João de Wirtzburg, «a casa do Templo dá esmolas suficientemente grandes aos fiéis de Cristo e aos pobres, mas nem chega ao décimo do que dá o Hospital». Todavia a caridade do Templo era grande e feita com muita cortesia. «E ainda é mandamento da casa que os irmãos, quando são servidos de carne ou de queijo, que cortem a sua peça de tal maneira que chegue para eles e fique a mesma bela e inteira tanto quanto possível... E assim se estipulou para que a peça fosse mais honrosa para ser dada a qualquer pobre envergonhado, e fosse mais honroso para o pobre aceitá-la».
Poderá soar-nos basto medievo este mandamento, que nos remete para um sentimento de honra eivada de brio. Mas não esqueçamos a sua inspiração cristã, essa boa novidade que foi a afirmação da igualdade intrínseca de todos os seres humanos, pois todos têm a mesma dignidade aos olhos de Deus. E nesse seu fundamental princípio assenta o dever - e a graça - do respeito mútuo, sem o qual não é possível haver caridade. Nem tampouco, dizemos nós hoje, democracia e justiça. Deixo-te, Princesa, a meditar nisto até à próxima carta...