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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

JESUS: O PODER E A AUTORIDADE

  


Terminada a festa do Carnaval, os cristãos entram na Quaresma: quarenta dias de mais profunda meditação, de mais intensa conversão, de amor mais vivo e perfeito, em ordem a poder celebrar com mais dignidade a Páscoa do Senhor enquanto passagem da escravidão à liberdade, da morte à vida.


Logo na quarta-feira de cinzas, é dita a cada um, a cada uma, ao mesmo tempo que lhe é colocada cinza na cabeça em sinal de humildade e exigência de reflexão, aquela palavra de Jesus no início da sua pregação: "Convertei-vos e acreditai no Evangelho”, a Boa Nova, notícia boa e felicitante.


De modo significativo, no primeiro Domingo da Quaresma, lê-se a passagem do Evangelho referente às tentações de Jesus. Ora, é importante que se diga que as três tentações estão todas referidas ao poder: poder económico, poder político, poder religioso. Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, foi para o deserto rezar, meditar, e tinha de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda alternativa que seguiu: "Eu não vim para ser servido, mas para servir", e servir até dar a vida.


Essencial: a única verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da dominação. Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável. Toda a questão consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram que Ministro, na sua etimologia, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve? Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Jesus disse aos discípulos, portanto, também ao papa, bispos, cardeais, padres: "Sabeis que os chefes das nações governam-nas como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós seja vosso servo".


Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo latino augere, que significa aumentar. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer crescer, aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na liberdade e na dignidade... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores, padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz crescer... Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos aqueles que clamam por mais liberdade e dignidade... Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a essa dignidade inviolável.


É curioso: quando se fala em tentações, o que vem normalmente à ideia é a tentação da carne, isto é, a tentação do sexo... Ora, sintomaticamente, Jesus também foi tentado, mas nenhuma das tentações se refere ao sexo; as tentações estão todas em conexão com o poder, com o domínio. Neste contexto, tenha-se presente o velho debate entre Freud e Adler: enquanto, segundo Freud, a pulsão humana fundamental está referida à libido e essencialmente ao prazer sexual, para Adler, essa pulsão tem a ver essencialmente com a auto-afirmação, com a vontade de poder. Ora, neste diferendo, é bem possível que seja Adler quem tem mais razão. Afinal, pensando bem, a própria sexualidade só constitui desvio quando alguém é utilizado como meio de prazer, quando a pessoa é instrumentalizada e coisificada.


Não; a grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Talvez isso explique até porque é que, no catálogo dos pecados, o sexo teve não só o predomínio, mas parecia, inclusivamente, deter a exclusividade do pecaminoso: no fundo, aninhava-se aí o medo de que o prazer subvertesse o poder... A tentação do poder nas Igrejas é tanto mais perigosa e deletéria quanto pretendam controlar, aprisionar o Sagrado e o Divino. Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: "Perdido o sentido do Mistério, instala-se a 'indoutrinação' e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder". A Inquisição, que pode sempre continuar sob formas subtis, deriva da pretensão de dominar o Mistério. Quem julga deter o saber todo sobre Deus faz-se fatalmente inquisidor, no dia em que tenha do seu lado o poder político. (Diga-se, entre parêntesis, que foi também isso que aconteceu com os regimes comunistas, por exemplo: pensavam deter a ciência da História e controlavam completamente o poder político.) O pretenso saber total torna-se poder totalitário.


A novidade do Deus cristão é que, em Jesus Cristo, não vem em poder e majestade, mas como aquele que serve… Isto significa que, se Deus não dispõe de nós, muito menos nós podemos dispor de Deus. Deus é Mistério indisponível. Quem julga dispor de Deus, seja de que modo for, não esquece apenas que a fé termina no Mistério e não nas fórmulas do dogma. Corre sobretudo o risco de, com toda a desfaçatez, dispor dos homens e das mulheres... De facto, quem julga dispor de Deus porque é que não há-de dispor dos homens e das mulheres?


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 de fevereiro de 2024

NATAL: O EMMANUEL

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       Há já alguns anos, o meu bom e ilustre amigo, o eurodeputado Paulo Rangel, e eu tivemos uma conversa muito agradável para mim sobre (imagine-se) Deus e a tentativa de dizê-lo e nos relacionarmos com Ele. Dela resultou um texto de Paulo Rangel, com o significativo título “Deus é Aquele que está”. Numa longa entrevista recente a Inês Maria Meneses, voltou ao tema, confessando a sua fé no Deus de Jesus, o Emmanuel, o “Deus connosco”. Para ele, Deus é “Aquele que está”, Deus não é “esse ser distante e estático” construído a partir da ontologia grega, o Deus que é, “mas antes o ser próximo e interactivo que está e estará connosco, Aquele que acompanha, Aquele que não abandona. Deus é Aquele que está, o Emmanuel.”

      Concordando plenamente com o amigo Paulo Rangel, volto, já em pleno Natal, ao tema, essencial nesta data. De facto, corre-se permanentemente o perigo de esquecer o determinante, já não referindo sequer a ameaça de se ficar amarrado a um consumismo devorador e à concorrência dos presentes: tenho de dar isto e aquilo de presente, para não ficar mal; não posso esquecer este, esta, e aquele, aquela, porque no ano passado também deram…  É preciso parar e reflectir, em primeiro lugar, para se não ficar encerrado em dogmas, quando a fé cristã se dirige a uma pessoa, Jesus confessado como o Cristo (o Messias) e, através dele, a Deus que Jesus revelou como Pai e poderemos e deveremos também dizer como Mãe, com todas as consequências que daí derivam para a existência.

       O que diz o Credo cristão, símbolo da fé? “Creio em Jesus Cristo. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.” Segundo a fé cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas segue-se a pergunta fundamental: o que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres, cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa, em contexto linguístico da ontologia grega. Ora, a teologia dogmática tem que ver com doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se: os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência para o melhor, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e estes para Deus?

      Exemplos mais concretos, um do Antigo Testamento e outro do Novo, até para se perceber a passagem do universo hebraico em que Jesus se moveu e o universo grego no qual aparecem redigidos os Evangelhos. No capítulo 3 do livro do Êxodo aparece a manifestação de Deus na sarça ardente e Moisés dirige-se a Deus: se me perguntarem qual é o teu nome, que devo responder-lhes? E Deus: “Eu sou aquele que sou”. Dir-lhes-ás: “Eu sou” enviou-me a vós. A fórmula em hebraico: ehyeh asher ehyeh (“eu sou quem sou”, “eu sou o que sou”) é o modo de dizer que Deus está acima de todo o nome, pois é Transcendência pura, que não está à mercê dos homens, mas diz também (a ontologia hebraica é dinâmica) o que Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos acompanha no caminho da liberdade e da salvação. Depois, com a tradução dos Setenta, compreendeu-se este ehyeh asher ehyeh como “Eu sou aquele que é”, “Eu sou aquele que sou”, o Absoluto. Filosofando sobre Deus, a partir daqui, Santo Tomás de Aquino dirá que Deus é “Ipsum Esse Subsistens” (O próprio ser subsistente), Aquele cuja essência é a sua existência. Isto é verdade, mas significa o quê para iluminar a existência? Perdeu-se a dinâmica do Deus que está presente e acompanha a Humanidade na história da libertação salvadora.

     No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar a Jesus se ele era o Messias. Jesus não afirmou nem negou. Mas deu uma resposta existencial, prática: “Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos vêem, a Boa Nova é anunciada, a libertação avança, a salvação está em marcha”.

     O que é que isto significa? A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura existencial, histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Assim, na perspectiva cristã, o essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está presente? Na linha dogmático-doutrinal, exige-se e até se pode dar um assentimento intelectual, subordinando-se, mas a existência continua inalterada. Corre-se então o perigo de uma “fé” em fórmulas doutrinais coisistas, petrificadas, sem qualquer transformação da vida. Ora, a vida cristã, se quiser ser verdadeiramente cristã, no discipulado de Jesus, tem de ser determinada mais pela ortopráxis do que pela ortodoxia (sem menosprezo, evidentemente, pela ortodoxia, segundo uma hermenêutica adequada): Jesus louvou a cananeia pela sua fé, que não era ortodoxa, deu como exemplo o samaritano, que não seguia a ortodoxia, mas praticava a misericórdia, e, sobretudo, leia-se o Evangelho segundo São Mateus, no capítulo 25 sobre o Juízo Final, no qual não há perguntas sobre fórmulas teóricas religiosas, mas sobre a prática: “Destes-me de comer, de beber, vestistes-me, visitastes-me na cadeia e no hospital...”.

     A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de todos, mensagem que mudou a História. Bom Natal!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de dezembro de 2022

HISTÓRIAS MUÇULMANAS SOBRE JESUS E O ESSENCIAL

 

1. No Evangelho, Jesus faz apelo ao essencial: “De que vale ao Homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma”, a sua vida, o essencial? Por isso, o amor a Deus e a avareza são inconciliáveis. Não se pode servir a Deus e à riqueza.


Jesus não é gnóstico (portanto, não é contra a matéria e os bens deste mundo), Jesus não é a favor da preguiça (pelo contrário, manda utilizar os talentos recebidos).


Jesus não combateu os ricos pelo facto de eles porem os talentos a render e criarem riqueza, recebendo o justo lucro. Aquilo a que Jesus se opôs de modo frontal e duro foi à avareza. E fê-lo, por dois motivos fundamentais. O primeiro refere-se à fraternidade e à generosidade. O rico, que o é de coração (neste sentido, até o pobre de bens materiais pode ser rico), o rico, que o é no seu íntimo, não é generoso nem fraterno. Por isso, banqueteia-se, enquanto ao lado o pobre geme e morre: lembremo-nos da terrível história contada por Jesus sobre o rico que se banqueteia enquanto o pobre Lázaro jaz para ali abandonado. Com a pandemia, segundo o último relatório da Oxfam, os 10 mais ricos do mundo duplicaram a sua fortuna e as desigualdades contribuem para a morte de pelo menos uma pessoa a cada 4 segundos... Face a esta situação explosiva, impõe-se tomar consciência de que é urgente acabar com este fosso entre ricos e pobres. Se o não fizermos por humanidade, façamo-lo ao menos por egoísmo esclarecido. De facto, este abismo intolerável pode incendiar o mundo, a ponto de o nosso bem-estar poder vir a transformar-se num inferno...


O outro motivo para Jesus açoitar o espírito de avareza, insaciável, diz respeito à diferença entre coisa e pessoa. A dignidade de ser Homem tem a sua raiz no facto de o ser humano ser pessoa. Como escreveu Tomás de Aquino, “a pessoa é o que é perfeitíssimo em toda a natureza”, e o que caracteriza e constitui a pessoa no seu núcleo é a liberdade. Ora, o avaro vive de tal modo agarrado às coisas que, a um dado momento, já não conhece a distinção essencial entre coisa e pessoa. De tal modo é escravo das coisas, do ter, que corrompe e deixa-se corromper; se for preciso, mata, corrompe, compra gente, escraviza, faz a guerra... Já não é livre, pois a liberdade e a pobreza de coração são irmãs gémeas. Ao corromper e deixar-se corromper, estando até disposto a vender e a comprar pessoas ou a matá-las, pela exploração ou pela guerra, degrada-se, isto é, abandona a dignidade infinita de ser pessoa para tornar-se coisa entre as coisas.


No seu aviso, Jesus é frontal: "Ninguém pode servir a dois senhores. Vós não podeis servir a Deus e a Dinheiro” — deve-se escrever com maiúscula, pois Jesus referia-se a Mamôn, uma deusa. Não se pode server a Deus, Pai/Mãe que quer a dignidade e a realização de todos, e a Mamôn.


2. Neste contexto, chamo a atenção para duas belas histórias, que vêm do islão, precisamente sobre este tema.


O amor e o respeito por Jesus são uma presença constante na literatura muçulmana. Tarif Khalidi, director do Centro de Estudos Islâmicos e membro do conselho directivo do King's College (Cambridge), reuniu em livro -- Jesus Muçulmano - as chamadas "máximas e histórias de Jesus", onde se encontram várias alusões aos Evangelhos. Uma delas diz assim, em síntese: 


Um homem juntou-se a Jesus, dizendo: "Quero ser teu companheiro." Seguiram viagem e, quando chegaram à margem de um rio, sentaram-se para comer. Levavam três pães. Comeram dois e sobrou um. Jesus foi ao rio beber água. Como, no regresso, não encontrou o terceiro pão, perguntou ao homem: "Quem tirou o pão?" Ele respondeu: "Não sei."


Continuaram viagem, e, no caminho, Jesus realizou dois milagres. Voltou-se das duas vezes para o companheiro, dizendo: "Em nome d'Aquele que te mostrou este milagre, pergunto-te: quem tirou o pão?" "Não sei", tornou a responder o homem.


Chegaram depois ao deserto e sentaram-se no chão. Jesus fez um montinho de terra e areia e disse-lhe: "Com a permissão de Deus, transforma-te em ouro", e assim aconteceu. Então, Jesus dividiu o ouro em três partes e disse: "Um terço para ti, um terço para mim e um terço para quem tirou o pão". Aí, o companheiro disse: "Fui eu que tirei o pão!" Jesus disse: "O ouro é todo teu."


Jesus continuou sozinho o seu caminho. Entretanto, chegaram dois salteadores que queriam roubar o ouro ao antigo companheiro. Este, porém, disse: "Vamos dividi-lo entre os três e um de vós vai à cidade comprar comida". Um deles foi à cidade e pensou: "Porque hei-de dividir o ouro com estes dois? Vou antes envenenar a comida e ficar com o ouro para mim!" E comprou comida, que envenenou.


Por sua vez, os que tinham ficado disseram: "Porque havemos de dar-lhe um terço do ouro? Em vez disso vamos é matá-lo quando regressar e dividimos o ouro entre os dois."


Quando o terceiro voltou, mataram-no. Depois, comeram a comida e também morreram. O ouro ficou no deserto com os três homens mortos ao lado.


Aconteceu que Jesus passou por ali e ao ver aquela miséria disse aos discípulos: "Assim é o mundo. Tende cuidado."


De outra vez, Jesus passou por uma caveira apodrecida. Ordenou-lhe que falasse. E ela disse: "Espírito de Deus, o meu nome é Balwan ibn Hafs, rei do Iémen. Vivi mil anos, gerei mil filhos, desflorei mil virgens, destrocei mil exércitos, matei mil tiranos e conquistei mil cidades. Que quem ouve a minha história não se deixe tentar pelo mundo, pois tudo isso foi como o sonho de um homem adormecido." Jesus chorou.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 5 de fevereiro de 2022

FELIZ NATAL!

 

Não sei, ninguém sabe, qual a data certa e o lugar real do nascimento de Jesus... Tampouco a maioria das pessoas pensará hoje no sentido deste evento natalício: a Festa do Natal, agora, é sobretudo social e profana, promovendo férias e encontros, libações várias, fúria consumista. Mas no âmago secreto da nossa cultura permanece esta celebração cristã do solstício de Inverno, quando do fundo da noite e do frio nasce a esperança, a certeza - que é fé - de que a luz não tardará a voltar, esplendorosa como o amor que nos aquece o coração e nos devolverá fraternidades perdidas.

Seja Feliz em nós, e promissora, a festa do Natal da misericórdia!

 

Camilo Maria
      

Camilo Martins de Oliveira

FÉRIAS: TEMPO FESTIVO

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1. O ser humano tem como uma das suas características ser laborans (trabalhador). Não apenas para ganhar a vida — uma expressão extraordinária, embora dura: a vida foi-nos dada e, depois, é preciso ganhá-la, e uma das coisas que me têm sido ensinadas pela experiência é que quem nada tem que fazer para ganhar a vida, trabalhando, porque tudo lhe é oferecido, nunca atinge uma adultidade madura —, mas também para se realizar autenticamente em humanidade. De facto, é transformando o mundo que a pessoa se transforma e faz. Isso é dito no étimo de duas palavras: a palavra trabalho vem do latim, tripalium, um instrumento de tortura (trabalhar não é duro?), mas também dizemos de alguém que realizou uma obra e que se vai publicar as obras de alguém (do latim, opera) — em inglês, trabalhar diz-se to work, e, em alemão, Werk é uma obra, sendo o seu étimo érgon, em grego. Ai de quem, à sua maneira, não realiza uma obra, a obra primeira que é a sua própria existência autêntica! Fazendo o que fazemos, o que é que andamos no mundo a fazer? A fazer-nos, e, no final, seria magnífico que o resultado fosse uma obra de arte.

Logo no princípio, Deus disse que o Homem tem de trabalhar. É próprio do Homem trabalhar, pois ele é constitutivamente relação com o mundo. Esta relação com o mundo é mais do que uma relação de trabalho para a produção de bens em ordem à subsistência: o trabalho é também realização própria, social e histórica: construindo o mundo, a Humanidade ergue a sua história de fazer-se.

Jesus também trabalhou, e trabalhou no duro. Normalmente, diz-se que era caprinteiro, mas o grego — os Evangelhos foram escritos em grego — diz que era um téktôn (donde vem arquitecto), isto é, o que antigamente se chamava um “faz-tudo”: era capaz de ajudar a erguer uma casa e preparar instrumentos agrícolas. Foi nessa relação dura com o trabalho, e foi a trabalhar que passou a maior parte da sua vida, que percebeu melhor a vida e, por exemplo, as relações entre quem tem muito dinheiro e os outros... Estou convencido de que, se o clero tivesse mais experiência do trabalho duro, haveria outra compreensão da Igreja na sua missão no mundo... A vida é exaltante, mas também é dura, esmagadora por vezes. Isso diz-se nos rituais dos mortos, quando se reza: “Dai-lhe, Senhor, o eterno descanso... Descansa em paz. Amén.” Tantas são as canseiras da vida!...

 

2. Mas Deus também estabeleceu um dia de descanso e Jesus, diz o Evangelho, também descansou. É necesssário sublinhar que a Bíblia faz questão de dizer que Deus deu o mandamento de um dia feriado semanal, santo, sem trabalho, para que o Homem fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar — e duro —, mas não é besta de carga. E aí está o Domingo ou o luxo de um feriado aqui e ali. Aí estão as férias.

E as palavras não são arbitrárias. A palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de "descanso, repouso, paz, dias de festa". No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de "comemoração festiva", enumerando-os como feria prima, feria secunda, tertia, quarta, quinta, sexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feria, secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria, sexta feria. Daí, ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: Lunes, Martes, Lundi, Mardi, etc., o português ter seguido a designação eclesiástica: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira enquanto mercado esteja igualmente associada a feria deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias.

O importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias. Assim, em espanhol férias diz-se vacaciones e em francês vacances. Ora, vacaciones e vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, e isso quer dizer em dias santos. Os alemães, esses têm Ferien ou Urlaub. Ora, a raiz de Urlaub é Erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.

Se pensarmos bem, as férias não têm como finalidade  serem apenas um intervalo no trabalho, para repor as forças em ordem a trabalhar outra vez e mais. As férias têm o seu fim em si mesmas: a experiência de que o ser humano é um ser festivo. É preciso apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ler a grande literatura, ouvir música, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a ver o sol a nascer e a pôr-se, e a exaltar-se com a lua enorme — cheia — ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade não se vê. É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma “rosa sem porquê”, como dizia Angelus Silesius, o inútil do ponto de vista da produção — "o fascinante esplendor do inútil", escreveu George Steiner —, exaltar-se com o enigma de um rosto, o mistério do ser e de ser. É preciso ter tempo para a Família, para os amigos, para ouvir o Silêncio onde se acendem as palavras que iluminam. É preciso ter tempo para a beleza: não é a beleza que redime o mundo, como disse Dostoiévski? Tempo para o melhor: ouvir Deus, dialogar com o Infinito. Rezar.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 21 AGOSTO 2021

    

DEUS MORREU? TESTEMUNHOS

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Há quase 150 anos (1882), Nietzsche proclamou a morte de Deus. Desde então, o mundo não é o mesmo. É certo que para Nietzsche o cristianismo é que é propriamente uma religião niilista, de tal modo que, com a proclamação da morte de Deus, é o mar infindo das novas possibilidades do sim à vida que se abre. “Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!” “Nunca existiu acto mais grandioso.” No entanto, à morte de Deus não se seguiria a morte do Homem e do sentido último de toda a realidade? Nietzsche tem consciência aguda do que se segue: “Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?”

Segundo Gilles Lipovetsky, "Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levou, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo": isto escreveu ele em A era do vazio. Os espíritos mais atentos acham, porém, que é necessário dar antes razão a L. Kolakowski, o filósofo polaco agnóstico, quando afirmou que, desde a proclamação da morte de Deus por Nietzsche, nunca mais houve ateus serenos: "Com a segurança da fé desfez-se também a segurança da incredulidade. Ao contrário de um mundo familiar, protegido por uma natureza benéfica e benigna, como era proposto pelo ateísmo iluminista, o mundo sem Deus dos nossos dias é sentido como um caos opressor, eterno. É um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura. De há cem anos a esta parte, praticamente nunca mais vimos ateus serenos. A ausência de Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que tenha sido o esforço feito para esquecê-la, recorrendo a toda a espécie de narcóticos." De qualquer forma, no seu livro posterior, A Sociedade da Decepção, o próprio Lipovetsky, reconehcendo “a reafirmação do religioso”, veio dizer que, “privados de sistemas de sentido englobante, numerosos indivíduos encontram uma tábua de salvação no reinvestimento de antigas e novas espiritualidades capaz de oferecer a unidade, um sentido, referências, uma integração comunitária: é do que o Homem necessita para combater a angústia do caos, a incerteza e o vazio.”

Como escreveu o filósofo Eusebi Colomer, a própria expressão "morte de Deus" não é unívoca, pois pode ter e tem múltiplos sentidos. Pode significar que Deus realmente nunca existiu, embora só recentemente tenhamos feito essa descoberta. Pode querer dizer que talvez Deus exista, mas os seres humanos, que outrora se lhe dirigiram pela fé e pela invocação, hoje já não acreditam nele. Talvez queiramos apenas exprimir a experiência de ausência e aparente silêncio de Deus, própria do nosso tempo. Talvez estejamos apenas a referir-nos à necesssidade de transcender constantemente as nossas ideias acerca de Deus, e, neste sentido, a "morte de Deus" significa a morte dos ídolos fabricados por nós. Afinal, que Deus era esse que morreu? Se o Deus verdadeiro é o Deus sempre maior, que transcende sempre tudo quanto possamos pensar ou afirmar dele, então os deuses enquanto ídolos têm que morrer, para ser possível a fé no Deus verdadeiro...

Neste domínio, a pergunta essencial consiste em saber se é possível ser Homem sem colocar honestamente a questão de Deus. É que ser Homem é a abertura ao Infinito, e, assim, a questão do Homem é a questão de Deus precisamente enquanto questão. Neste contexto, afirmar Deus não é então também um modo de expressar a confiança no Sentido último, como sugeriu o filósofo L. Wittgenstein?

De facto, como disse Marion Gräfin Dönhoff, co-editora do conhecido semanário alemão “Die Zeit”, "o fixar-se exclusivamente no aquém, que corta o Homem das suas fontes metafísicas, e o positivismo total, que se ocupa apenas com a superfície das coisas, não podem dar aos seres humanos um sentido duradouro e estável, e, por isso, levam à frustração".

Isto tudo não prova, evidentemente, a existência de Deus. Significa apenas que o Homem se não compreende cabalmente sem colocar a questão de Deus. Aliás, a relação de cada um com Deus é um mistério para si próprio. Para ficar na actualidade, lembro que o insigne psiquaiatra Daniel Sampaio, com quem tive o privilégio de debater uma vez na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto a questão do sentido da vida e o suicídio, declarou, depois da luta pessoal duríssima que travou com a covid-19, que durante a doença chegou a lembrar-se de Deus e agradeceu a quem por ele rezou a um Deus que ele, não crendo, respeita.

Continuando na actualidade, investigações científicas recentes — uma da prestiagiada Universidade Católica de América, em Washington, a outra, publicada na conhecida revista MedNext —, concluíram, respectivamente, que “as pessoas que se mostram activas nas comunidades religiosas tendem a ter níveis mais altos de bem-estar, tendo sido este o caso durante a pandemia”, e que há uma “relação salutar entre a espiritualdiade e o sistema imunitário”.

Por fim, o nadador norteamericano Caeleb Dressel, que se afirma profundamente cristão e que trouxe dos Jogos Olímpicos em Tóquio cinco medalhas de ouro, declarou que Jesus é mais importante do que as medalhas de ouro: “a minha felicidade está em Deus”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 14 AGOSTO 2021

O PERIGO DE UM DEUS BOM

 

1. Julgo que o que no Papa Francisco provoca mais a admiração das pessoas, dentro e fora da Igreja — talvez até mais fora —, é ele ser um cristão. Por palavras e obras.


O que é ser cristão? É ser discípulo de Jesus, tentar viver como ele. Jesus é o autor da maior revolução da História, que consiste na revolução da imagem de Deus. Até pessoas que se dizem cristãs continuam com a ideia de que Deus manda epidemias, por exemplo, de que Deus precisou da morte do seu Filho Jesus para se reconciliar com a Humanidade. Pergunto: que pai ou mãe decentes exigiriam a morte de um filho? Em relação ao Deus que tivesse mandado o Filho ao mundo para, pela sua morte na cruz, poder aplacar a sua ira e reconciliar-se com a Humanidade só haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu.


Na realidade, Jesus, veio, pelo contrário, revelar que Deus é Pai/Mãe, amigo de todos, que a todos dá a mão, que compreende e perdoa e quer a salvação de todos. Deus é Amor incondicional, “o seu nome é Misericórdia”, diz o Papa Francisco, que faz como Jesus: anima a todos, dá a mão aos mais pobres, abandonados, marginalizados, denuncia a economia financeira especulativa e corrupta, que mata...


Afinal, na Páscoa, a pergunta que precisamos de fazer é sempre esta: Quem mandou matar Jesus, crucificando-o? Dá que pensar e até causa arrepios: Jesus foi mandado matar, em primeiro lugar, pelos sacerdotes do Templo. Eles não toleravam que Jesus dissesse, colocando na boca de Deus estas palavras: “Eu não quero sacrifícios (de pombas, ovelhas, vitelos...), mas sim justiça e misericórdia.” Os sacerdotes viviam, até financeiramente, da exploração do povo em nome da religião. Quem mandou crucificar Jesus, a pedido dos interesses do Templo, foi o representante do Império, Pilatos. Para que é que existem os impérios senão para idominar, explorar, escravizar? Pilatos teve medo de que o fossem denuncar ao imperador por libertar um subversivo com consequências para o poder imperial. De facto, o Deus de Jesus não quer escravos nem explorados por impérios ou seja pelo que for. Deus quer a dignidade de todos.


Não é esta dignidade e justiça para todos que Francisco também anuncia, quer e pratica?


Até parece que nos damos mal com um Deus bom para todos. Talvez não seja só parecer; em geral, damo-nos mesmo mal. É que, se Deus não fosse bom, não seríamos obrigados também nós a ser bons; se Deus fosse vingativo, também nós podíamos vingar-nos; se Deus não fosse o Deus da justiça e da paz, nós também podíamos roubar, ser corruptos, fazer a guerra, matar em nome de Deus ou invocando o seu nome...


Será que temos meditado suficientemente sobre o que levou Jesus à Cruz? Jesus não morreu na cruz por vontade de Deus. Morreu por vontade dos homens. Jesus não morreu para satisfazer um Deus irado. Morreu pela causa de um Deus bom, amável. Morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor: Deus é Amor... e só quer o bem de todos. Quem nunca ouviu falar da parábola do filho pródigo, dos banquetes de Jesus com pecadores públicos, com prostitutas, acolhendo todos em nome de Deus?...


O sofrimento físico, psicológico, moral, de Jesus durante o julgamento, o abandono e a fuga dos discípulos mais próximos, a flagelação, a coroação de espinhos, o caminho do Calvário, aquelas horas de horrores na cruz, é inimaginável. Rezou a Deus, que tratava por “Abbá” (Pai querido), que o libertasse daquele suplício, que se aproximava, sentiu pavor, suou sangue, rezou aquela oração que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”. Mas as últimas palavras foram de perdão e de confiança filial: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito.”


Tantas vezes a cruz verdadeira de Cristo foi insultada com cruzes peitorais de ouro com pérolas incrustadas para ostentação de quem as utilizou...


2. Aparentemente, foi o fim. Mas, lentamente, os discípulos — a primeira foi Maria Madalena,, porque amava mais — foram reflectindo sobre tudo o que viveram com Jesus, o que Ele disse, o que Ele fez, o modo como o fez até à morte e morte de Cruz, e foi-se tornando claro para eles, numa experiência avassaladora de fé, que aquele Jesus crucificado para dar testemunho do Deus que é Amor, não podia ter sido devorado pela morte. Na morte, não encontrou o nada, mas o Deus que é a Vida e Amor. Jesus é o Vivente. E reuniram-se outra vez e foram anunciar o Deus que Jesus anunciou, por palavras e obras. Deram testemunho dEle até à morte. “Vede como eles se amam”, diziam os pagãos sobre os cristãos. E uma nova esperança percorreu o mundo. E quando parecia que tudo se afundava, o cristianismo venceu, como sublinhava o ateu religioso Ernst Bloch, por causa desta proclamação: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”.


3. As primeiras comunidades cristãs reuniam-se e celebravam a Eucaristia com alegria nas suas casas, lembrando Jesus, a sua vida, a sua morte, a sua ressurreição, e aunciando a esperança da vida eterna plena: “Fazei isto em memória de mim”.


Mas damo-nos mal com um Deus bom. E, lentamente, porque eram acusados de ateísmo por não oferecerem sacrifícios à divindade, a Eucaristia foi transformada em sacrifício oferecido a Deus, e surgiram os sacerdotes com ordens sacras para oferecerem o sacrifico da Missa, e reapareceram os senhores do Sagrado e as duas classes na Igreja: o clero e os fiéis.


Introduziram-se as cerimónias, com mais ou menos solenidade, das cortes imperiais. O que restou (resta?) da Ceia de Jesus?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 MAIO 2021

JESUS E A IGREJA. 4

 

Na Igreja, haverá líderes no, com e para o Povo de Deus, para celebrar nas comunidades e com as comunidades a Eucaristia: a vida, a morte e a ressurreição de Jesus e da Humanidade inteira. A Eucaristia é memória da última Ceia e também de todas as refeições que Jesus tomou concretamente com pecadores e excluídos, precisamente para indicar a presença e actuação do Reino de Deus. Esses banquetes tinham causado profunda impressão nos discípulos. Jesus aliás comparou a realidade do Reino de Deus a bodas e banquete. Não se trata, pois, do padre-sacerdote do culto ritual-sacrificial. Jesus rejeitou o sacerdócio judaico e o culto sacrificial do seu tempo, e nada indica que quisesse instituir um novo culto sacrificial. Ele próprio não era “sacerdote” nem nenhum dos “Doze” nem Paulo. As suas relações com o Templo e o culto nele realizado pelos sacerdotes foram de ruptura, de tal modo que foi o sacerdócio judaico que o levou à cruz. No Novo Testamento, a palavra “sacerdote” no sentido sacrificial-cultual foi evitada. A concepção sacrificial da Eucaristia, que implica a introdução do sacerdote, é posterior, tendo na sua base sobretudo a vontade de impedir a acusação de ateísmo pelo facto de os cristãos se recusarem a prestar culto aos deuses e não oferecerem sacrifícios. Mas então o “povo sacerdotal” transformou-se na “Igreja dos padres”, e, esquecendo a Eucaristia como memorial do amor incondicional de Cristo pela Humanidade até ao fim na vida e na morte, a sua compreensão como sacrifício contribuiu para a concepção do Deus que precisa do sangue das vítimas, a começar pelo sangue do próprio Filho, em ordem a aplacar a sua ira. Deste modo, porém, continuou a história do deus sádico Moloch, em nome do qual é possível legitimar todo o sangue derramado. De facto, se Deus precisa, para ser aplacado na sua ira divina, do sangue de vítimas e até do do próprio Filho, porque é que nós não havemos também de poder derramar sangue e de vingar-nos?


Não se pode esquecer que o divino andou sempre vinculado ao belo, de tal modo que não há encontro autêntico com Deus sem o encontro com a beleza. Ora, é necessário reconhecer que frequentemente as celebrações das comunidades cristãs são confrangedoras no seu mau gosto. Quando nas igrejas se ouve a música que se ouve e se tem de escutar  as homilias que se sabe, é de espantar como é que há ainda tanta gente que vai à igreja. São necessárias celebrações familiares e belas, em que pré-apareça e se experiencie a beleza que nos redime de um quotidiano tantas vezes vulgar e vazio. Por outro lado, em casos especiais, como na situação de confinamento, por exemplo, nunca se pode esquecer que, como fizeram as primeiras comunidades, há possibilidade da celebração em casa. 


Será de acrescentar que hoje, oficialmente, só se consideram sete sacramentos. Mas Santo Agostinho falava em dezenas. E com razão, pois, se no Antigo Testamento Deus fala através de sinais e se no Novo Testamento Jesus fala mediante sinais, também a Igreja o deve fazer. Trata-se de sinais que mostram que o Reino de Deus está presente, trazendo salvação e força à Humanidade, manifestando a bondade de Deus e a sua solicitude. O que é preciso é adaptar e transformar o universo simbólico da Igreja para os novos tempos e necessidades.


Concluindo. Como escreveu J. A. Pagola, “O objectivo de Jesus foi introduzir no mundo o que ele chamava ‘o Reino de Deus’, uma sociedade estruturada de maneira justa e digna para todos, como Deus a quer. Quando Deus reina no mundo, a Humanidade progride em justiça, solidariedade, compaixão, fraternidade e paz. A isto se dedicou Jesus com verdadeira paixão. Por isso foi perseguido, torturado, executado. ‘O reino de Deus’ foi o absoluto para ele”. A conclusão é evidente: a força, o motor, o objectivo, a razão e o sentido último do cristianismo é “o Reino de Deus”, não outra coisa. “O critério para medir a identidade dos cristãos, a verdade de uma espiritualidade ou a autenticidade do que faz a Igreja é sempre ‘o Reino de Deus’. Um reino que começa aqui e alcança a sua plenitude na vida eterna.” Assim,  concluindo: “Uma das ‘heresias’ mais graves que se foi introduzindo no cristianismo é fazer da Igreja o absoluto. Pensar que a Igreja é o centro, a realidade à qual tudo o resto se há-de subordinar; fazer da Igreja o ‘substituto’ do Reino de Deus; trabalhar pela Igreja e preocuparmo-nos com os seus problemas, esquecendo o sofrimento que existe no mundo e a luta por uma organização mais justa da vida.”


O cristão acredita que o Deus Pai de Jesus Cristo é o Criador do mundo. Por isso, esta vida sobre a terra não é uma passagem ou um simples treino para a vida verdadeira do Além. Não! Esta existência neste mundo, aqui e agora, é já vida real e verdadeira, de salvação, com Deus. Mas ainda não somos o que seremos. Aguardamos a consumação e céus novos e uma terra nova. Uma religião que esqueça a Terra está inevitavelmente sob a suspeita de ilusão, como um mundo sem transcendência fica inevitavelmente sob a ameaça da desumanidade.


Como escreveu E. Schillebeeckx, quando a Igreja vive seguindo Jesus na oração e na libertação dos homens e das mulheres, “a fé na ressurreição não conhece por isso mesmo qualquer crise”. Mas, por outro lado, é preciso reconhecer e proclamar que “é melhor não ter fé na vida eterna do que confessar um Deus que, com o olhar num Além melhor, rebaixa, empequenece e humilha politicamente os seres humanos no ‘aqui e agora’”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 MAIO 2021

JESUS E A IGREJA. 3

 

Os baptizados formam um povo de profetas, reis e sacerdotes. A ruptura numa Igreja de irmãos deu-se com a ordenação sacerdotal, que originou duas classes: clero e leigos.


Todos os cristãos são sacerdotes: oferecem a sua vida a Deus e à sua causa, que é a causa dos seres humanos. Aqueles e aquelas que se reúnem convocados no baptismo pela pessoa de Jesus e o seu Reino formam a Igreja e são povo sacerdotal e sacramento de um mundo outro. Mas é necessário que haja homens e mulheres que dedicam a sua vida ao anúncio do Reino de Deus, conselheiros espirituais que despertam para a transcendência, animadores e coordenadores das comunidades...


Neste sentido, embora sem ordens sacras, continuará o ministério de padres, presbíteros, bispos, líderes das comunidades. Homens e mulheres, casados ou não, escolhidos pelas comunidades ou com a sua participação. Alguns temporariamente, outros de modo permanente. E para quê?


1. Para que a questão de Deus não morra entre os homens enquanto questão. Se a simples palavra "Deus" deixasse de existir, o Homem deixaria de ser Homem, como escreveu Karl Rahner: "A morte absoluta da palavra "Deus", uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu." Até filosoficamente, toda a pergunta pelo "sentido da acção humana", o perguntar pelo "sentido do processo do mundo na totalidade" exigem "um conceito de Deus". Com o eclipse de Deus, desaparece o sentido do mundo, que o Homem "em vão tenta reencontrar mediante uma acumulação de racionalidade". Mas já Georges Gusdorf tinha prevenido: "O caos, o absurdo, hoje, não propõem possibilidades abstractas; campeiam por todo o lado, não por insuficiência de racionalidade, mas por superabundância e excesso de lógica, de técnica, de intelectualidade parcelar, num universo em que a imensa acumulação de pormenores contraditórios oculta, ou mesmo destrói, a ordem humana. Deus morreu, a História enlouqueceu, o Homem morreu: tudo fórmulas desesperadas que exprimem a tomada de consciência, e o ressentimento, da ausência do sentido." O mundo parece encontrar-se perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a Humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e "abdica da sua procura de sentido".


Mas o Homem enquanto for Homem não deixará de perguntar, e toda a pergunta, em última instância, desemboca na pergunta pelo Ser Absoluto e Fundamento Último. Como diz Ciorán, "tudo se pode sufocar no Homem excepto a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, e inclusivamente ao desaparecimento da religião". No mesmo sentido, afirma L. Rougier: "A Igreja pode declinar, mas o sentimento religioso grávido de um impulso para o ideal, de uma sede do Absoluto, de uma necessidade de superar-se, que os teólogos chamam transcendência, subsistirá."


2. Líderes, para que a causa de Jesus, que é o Reino de Deus enquanto causa do Homem, não morra entre os homens. Líderes, portanto, exercendo, com o Povo de Deus, o tríplice múnus de Cristo, profeta, rei e sacerdote.


Profetas, anunciando o Deus Pai/Mãe que quer a salvação de todos os homens e mulheres. Não um deus do terror, mas o Deus da alegria e da vida; não um deus da exclusão, mas o Deus do perdão sem condições, que a todos acolhe, sobretudo aqueles e aquelas que são excluídos e marginalizados por motivos sociais, económicos, sexuais, religiosos; não um deus infantil, infantilizante e imoral, mas o Deus que é força de autonomização e dignificação. Profetas, que, parafraseando Kafka, falam sobre Deus, porque primeiro aprenderam a falar a Deus e com Deus. Profetas que sabem ler os sinais do mundo e dos tempos, que perguntam e escutam, e preparam anunciadores do Reino de Deus, implicados numa pastoral da interrogação, que tem a ver com dar razões da dúvida e razões da fé e da esperança. A fé não pode encerrar-se nas muralhas de um dogmatismo fixo, coisista e morto, mas tem de abrir-se ao diálogo e à razão crítica.


Líderes com um múnus régio. Jesus respondeu a Pilatos: sim, sou rei; nasci para dar testemunho da verdade. E já tinha dito: "Vim para servir, não para ser servido." Líderes, portanto, para animar comunidades cristãs fraternas, de serviço à dignidade infinita do ser humano. Desgraçadamente, a globalização está a ser sobretudo mundialização do mercado, no quadro ideológico do neoliberalismo, que cava cada vez mais fundo o fosso entre ricos e pobres. Os números não param de chegar, alarmantes e falando por si. Para quem tenta seguir Jesus Cristo, este estado de coisas é intolerável, bem como toda a exploração do trabalho, o racismo, os vários tipos de discriminação, qualquer violação dos direitos humanos. Trata-se, portanto, do combate lúcido e eficaz pela dignidade livre e pela liberdade com dignidade de todos os homens e mulheres, a começar pelos mais pobres, pelos humilhados e excluídos.


3. Não há religião verdadeira sem justiça e solidariedade. Mas isto implica que a justiça e o respeito pelos direitos humanos têm de começar pelo interior da própria Igreja. Na Igreja, Jesus até queria mais do que uma democracia, pois o que ele propunha era uma filadélfia, isto é, comunidades de irmãos e amigos (lê-se no Evangelho de S. João: "Já não vos chamo servos, mas amigos").

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 MAIO 2021

JESUS E A IGREJA. 2

 

1. A interpretação da Eucaristia como sacrifício teve várias consequências perniciosas. A maior foi a da ordenação sacra sacerdotal. Mas o Novo Testamento evitou a palavra hiereus — o sacerdote sacrificador de vítimas para oferecer à divindade e aplacá-la e pedir os seus favores. Jesus, que era leigo, foi vítima dos sacerdotes do Templo e, citando os profetas, colocou estas palavras na boca de Deus: “Ide aprender: eu quero justiça e misericórdia e não sacrifícios; os vossos sacrifícios aborrecem-me”. Evidentemente, com a ordenação sacra, a mulher, ritualmente impura, ficou excluída de presidir à Eucaristia.


O Novo Testamento diz que, pelo baptismo, todos formam um povo de sacerdotes, profetas e reis. Mas, com a ordenação sacerdotal, surgiu a distinção, essencial e não de grau, entre  o “sacerdócio comum” dos fiéis e o “sacerdócio ordenado” e, com ela, o estabelecimento de duas classes na Igreja: o clero e os leigos. E entrou “a lepra do clericalismo”, na expressão do Papa Francisco: de facto, a “hierarquia” (poder sacro) fica com todos os poderes — julgo que não se pensa suficientemente no que significou ser padre ou bispo, com o poder de “trazer Cristo à Terra, com a consagração”, perdoar os pecados, decidindo da salvação eterna ou da condenação das pessoas... —, usando e abusando do poder..., até à tragédia da pedofilia, privilégios de toda a ordem...


A Missa foi concebida como “immolatio” e “mactatio” de Cristo, embora se discutisse se essa imolação é real, moral, mística, ou sacramental. O sacerdote tinha o poder de realizar o milagre da transubstanciação do pão e do vinho, que deixavam de ser pão e vinho. Esta concepção substancialista e coisista da presença de Cristo na Eucaristia arrastou consigo vários equívocos. Em primeiro lugar, precisamente a concepção coisista da presença de Cristo. Hegel viu bem o perigo desta coisificação: referindo-se à celebração da Eucaristia, escreveu que, segundo a representação católica, “a hóstia — essa coisa exterior, sensível, não espiritual — é, mediante a consagração, o Deus presente — Deus como coisa”. Outro equívoco foi o da divisão e separação da realidade em sagrado e profano, de tal modo que o padre era retirado do profano para se consagrar ao sagrado (ainda hoje, a linguagem eclesiástica fala dos “consagrados”, sendo todos os outros, implicitamente, os profanos). A Eucaristia já não era celebração em que todos participavam activamente, mas sacrifício objectivo autónomo, que o padre até podia celebrar sozinho e que oferecia pelas almas do Purgatório e outras intenções — ainda há padres a celebrar, sós, Missas contínuas. E era possível esta contradição nos termos: “ir” à Missa, que até se dizia em latim e de costas para o povo, sem comungar, quando Jesus disse na Última Ceia: “Tomai e comei”. Está-se na Missa, mas de fora, ignorando que a celebração da memória de Jesus implica uma real e autêntica conversão, com a entrada activa na dinâmica do seu Reino, que é o Reino da justiça, da fraternidade, da verdade. Chegou-se a esta distorção: é-se convidado para um banquete, mas é de fora que se assiste à festa, às “cerimónias”. Por isso é que há as “missas oficiais” a que assistem agnósticos e indiferentes. Paradoxalmente, com a interpretação coisista da presença de Cristo, contra o sentido profundo do que S. Paulo diz aos Coríntios — “quem come do pão e bebe do cálice do Senhor indignamente torna-se réu do Corpo e do Sangue do Senhor” —, muitos cristãos, indo à Missa e não comungando, vêem-se libertos da urgência da conversão ao projecto de vida de Jesus. Ora, precisamente nesta não conversão, é que, segundo S. Paulo, nos tornamos “réus do Corpo e do Sangue do Senhor”, isto é, culpados da sua morte: de facto, o que S. Paulo condena nas comunidades são as suas divisões e que enquanto uns se fartam outros passam fome.


É, pois, necessário ser consequente: uma vez que se deve partir do pressuposto de que quem vai à Missa é porque quer sinceramente entrar no espírito de Jesus, não se compreende que não comungue. Evidentemente, se se estiver na dinâmica da conversão, com capacidade de entrega e sacrifício em ordem a uma vida pessoal e familiar digna e ao combate por um mundo de verdade, justiça e paz. Ainda neste sentido, torna-se igualmente claro que a celebração eucarística terá de acontecer no quadro das diferentes culturas do mundo. Assim, é claro que no Japão ou na China ou entre os esquimós não se deveria impor o pão e o vinho. A não ser que a Igreja queira continuar a ser uma instituição de clonagem cultual e cultural...


O que na Igreja Católica está em questão é se a presente constituição hierárquica é de instituição divina e, por isso, imutável. Já vimos que não, e é significativo que, segundo o Pontifical Romano. Ordenação do bispo, dos presbíteros e diáconos, o próprio ritual de ordenação já não diga “sagração episcopal” nem “ordenação sacerdotal”, mas “ordenação do bispo” e “ordenação dos presbíteros”.


A Igreja Católica precisa, com urgência, de uma nova constituição: uma constituição de mais comunhão de discípulas e discípulos, sem duas classes, que ponha fim a uma das últimas monarquias absolutas do mundo, com respeito pelos direitos humanos, que consagre a igualdade de homens e mulheres, que termine com o celibato obrigatório, com uma nova atitude perante a sexualidade. Como poderá ser a Igreja Católica, se se deixar orientar pelo Evangelho, por aquilo que Jesus anunciou e queria?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 ABR 2021