Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Terminava a minha última carta, traduzindo-te um haiku do Kobaiyashi Issa, poeta que viveu de 1763 a 1828, bem depois de Basho. Jiro Taniguchi inclui-o no seu Furari, creio que por ser contemporâneo de Ino Tadataka, sob cuja direção se mediu e desenhou o Dai Nihon enkai yochi zenzu (1832), o primeiro mapa completo do território e mar do Grande Japão. Para o efeito, utilizaram-se técnicas europeias que, já no período Edo, antes mesmo da era Meiji, - na qual, erradamente, te disse que Tadataka Ino ainda teria entrado - começavam a "modernizar" o Japão. Terá sido esse cartógrafo, ou um seu colaborador, o inspirador da personagem sem nome do herói de Furari. O poeta Issa que, menino ainda, perdera a mãe e foi malquerido pela madrasta, tinha também hábitos peregrinos e um olhar cheio de ternura pela natureza e pelas pessoas, sobretudo as crianças e os mais fracos. Cedo perdeu os seus quatro filhos, deixando-nos este haiku pela morte do último sobrevivente, comparando a insignificância deste mundo e desta vida com a eternidade no paraíso de Buda:
Tsuyu no yo wa
Tsuyu no yo nagara
Sarinagara
É tempo de nada / de despedida de nada / despedida só - traduzo eu, muito livremente. Mas nota bem: neste, como noutros, em português, conto, ao nosso jeito, 5-7-5 sílabas.
(Vou guardando cá por casa os meus achaques, distrai-me e até me alivia este meu entretenimento com letras japonesas)
E faz como eu: conta também,em cada verso japonês (aqui posto em caracteres latinos ou romaji), as suas 5-7-5 sílabas, somando 17 no haiku inteiro, o verso nipónico sendo sempre um penta ou um heptassílabo. Diferentemente da língua chinesa, que é pobre foneticamente, servindo-se mais de tonalidades do que de diversidade de sons, o japonês tem uma fonética comparável, por exemplo, à do italiano ou do português, sendo cada sílaba formada por uma consoante e uma vogal. Todavia, a poesia nipónica não procura a rima, antes a evita. Por outro lado, é evasiva, o poema japonês é, por regra, inconclusivo, por vezes até só uma impressão da qual o próprio autor se ausenta. Como neste haiku de Basho (1644-94):
kumo no mine
ikutsu kuzurete
tsuki no yama
que traduzo assim: cúmulo de nuvens / descompõe-se em muitos flocos / montanha de lua...
Escolhi-o por acaso, mas ocorre-me que o mesmo serviu para o seguinte comentário do professor Donald Keene, da Columbia University (New York), quiçá um dos ocidentais que melhor conhece a literatura nipónica: Um poeta ocidental teria provavelmente acrescentado uma conclusão pessoal, tal como D. H. Lawrence no seu Moonrise, em que diz que aquela visão lhe deu a " certeza de que a beleza é algo para além do túmulo, essa perfeita experiência do brilho nunca cairá no nada". Eis algo que nenhum poeta japonês diria explicitamente: ou o seu poema o sugere, ou então falhou. Os versos de Basho acima citados terão claramente falhado se o leitor acreditar que o poeta ficou impassível perante o espetáculo que descreve. Mesmo para leitores sensíveis às qualidades sugestivas do poema, a natureza da verdade percebida por Basho diante da súbita aparição da montanha iluminada pela lua variará consideravelmente. Na verdade, Basho consideraria falhado o poema se este apenas sugerisse uma experiência de verdade. O que os poetas japoneses mais frequentemente procuram é criar com poucas palavras, o mais das vezes através de algumas imagens insinuantes, o enquadramento de uma obra cujos pormenores devem ser fornecidos pelo leitor, assim como numa pintura japonesa umas poucas pinceladas podem sugerir um mundo inteiro. Eis também porque pensossinto que traduzir poesia japonesa é como tentar captar o etéreo, tanto ela nasce de surpresas íntimas e instantâneas. Cada leitor sentirá a seu modo revelações de um poema surto noutro tempo. A forma poética normaliza comunicações, não comanda conteúdos.
Sendo fraquíssimo conhecedor do idioma nipónico, tenho lido toda a literatura que me chega através de traduções francesas ou inglesas. Mas sempre que se trata de encontrar uma versão portuguesa para algum curto texto, um qualquer conceito que repute importante, ou, sobretudo, um poema, encho-me de brios, deixo de contar o tempo a consumir, e atiro-me à obra. E ora decifro kanji (que me parecem fundamentais para o entendimento de certos conceitos e certamente do significado de nomes de pessoas, épocas e lugares) ou vou em busca de transcrições em romaji, que directamente traduzo, servindo-me rigorosamente do Dicionário Universal Japonês-Português, do padre Jaime Cepeda Coelho, SJ., querido amigo -para cuja edição pela Shogakukan, Tokyo, em 1998, também dei a minha ajuda -, mas sem esquecer A Guide to Reading & Writing Japanese (Charles E. Tuttle Co. Inc., 1959), pelo apoio que me dá ao reconhecimento dos romaji em caracteres sino-nipónicos. Fundamental. Não será obra, mas dá trabalho. Trabalho muito compensador, pois me aproxima mais das origens e espírito dos textos, e me traz um entendimento novo. Já agora, Princesa de mim, deixa-me dizer-te que esse esquecimento das nossas raízes, que me aflige, e de que tanto te tenho falado, essa transformação da memória e da cultura do espírito das nossas sociedades hodiernas em vagos registos efémeros, me recorda com frequência aquela imagem dada pelo Zygmunt Bauman: a dos registos magnéticos, em fitas ou discos, ou no que for, que depressa se apagam e substituem. Já não sabemos quem somos. Tampouco saberemos o que quer dizer muito do que dizemos: a nossa errante levitação audiovisual, acompanhada de novas ortografias e da ignorância geral das raízes da nossa língua, parece-me que nos corta o entendimento... Mas estou mesmo velho. Novo é ainda o professor Toru Maruyama, da Universidade Nanzan, em Nagoya - com quem mantive longas e amigas conversas - que se dedicou à aprendizagem do português só para poder restaurar a fonética da língua japonesa nos séculos XVI//XVII, já que a transcrição da mesma era feita, nesse tempo, pelos jesuítas portugueses ... em romaji ! Com o padre João Rodrigues, o tçuzu (intérprete), à cabeça, inventaram um sistema de transcrição que ainda hoje funciona! E a mim, por exemplo, me ajuda a dizer um haiku. Sem todavia me esquecer de chegar o melhor possível ao original, mesmo não tendo quaisquer pretensões a tradutor de poemas nipónicos, coisa que faço só por gosto, para afinal recitar a minha induzida inspiração. Assim, qualquer "haiku" meu é apenas o que essa palavra quer dizer em dois kanji lidos da direita para a esquerda: verso (ku) por graça ou gosto (hai). Just for fun. Sobretudo quando manhas de saúde não me deixam sair de casa...
Waka é, originalmente, desde o século VI, a designação da poesia japonesa, para a diferenciar do kanshi, ou verso chinês. Na verdade, este, composto em chinês por poetas chineses ou japoneses, não se casava com a poesia oral nativa, a Yamato no uta, ou canto do Japão Antigo (Yamato), pelo que foi este sendo registado em escrita sínica japonizada, obedecendo então a novas formas poéticas. Assim, o poema japonês de 31 sílabas (5-7-5-7-7) ou tanka (canto breve ou poema curto),torna-se a forma dominante do waka, confundindo-se com ele, contrapondo-se ao chosai ou poema longo. Surgem também, pela cultura nova de uma língua japonesa escrita:
1- o renga, poemas encadeados (como uma "desgarrada"!), que se encontra já no Kojiki (registo das coisas antigas, de 712) e é, na sua forma mais simples, um tanka cujos três primeiros versos são escritos por uma pessoa e os dois últimos por outra; lembra-me um pouco a nossa tradição de mote e glosas ou voltas, ao reparar em que, no decurso da era Heian, era passatempo de cortesãos, em que o segundo compositor procurava coroar os três versos do primeiro; mas, na verdade, o renga era muito praticado nos mosteiros budistas e entre poetas populares, e, afinal, podia desencadear-se quase sem fim -- um dos seus estilos tornando-se conhecido por haikai, no sentido de ligeiro, livre, simultaneamente, de regras restantes das composições chinesas e de temas sempre sérios;
2-o hokku, que é esse terceto inicial, dará origem a outra forma poética, largamente praticada ao longo de séculos, e hoje internacionalmente reconhecida e imitada, ainda que só no XIX lhe seja atribuído o nome de haiku; o primeiro terceto pode pois ser glosado como mote, mas ir-se-á chamando haikai ao que, originalmente, mais não é do que a autonomização do hokku, isto é, a "promoção" do primeiro terceto de um tanka renga a poema independente. Certo é que se confunde muitas vezes a designação haiku com hokku ou haikai... Mesmo entre poetas e letrados nipónicos surgem, em matéria literária, hesitações e confusões. Para melhor entenderes esse passo de tanka-renga-haikai (haiku), vou buscar ao Shin Kokinshu (Nova Antologia de Poesia Antiga e Moderna, de 1205) um poema de Minamoto no Toshiyori, que traduzo do japonês, com o indispensável auxílio do "meu" dicionário e do "meu" guia de regresso aos pertinentes caracteres sino-japoneses:
furusato wa
chiru momijiba ni
uzumorete
noki no shinobu ni
akikaze zo fuku
na casa natal / caem as folhas do bordo / cobrem o chão todo / e vão prender-se aos beirais / ao sopro do outonal vento...
Lê, Princesa, os romaji à portuguesa, mas abrindo as vogais todas, e contarás, por esta ordem, versos de 5-7-5-7-7 sílabas. Os três primeiros somam 17 sílabas e, por si, formam aquilo a que se pode chamar um haiku. Os dois últimos, acrescentados por um segundo compositor aos três primeiros, vão formar um renga. Mas se este mesmo poema tivesse sido escrito por idêntico autor seria simplesmente um tanka, com as suas 31 sílabas.
A escrita japonesa faz-se em kanji, ou caracteres chineses, em hiragana, ou caracteres chineses simplificados e cursivos, silábicos e fonéticos, e katakana, isto é, kanji cortados, constituindo um silabário fonético que serve para escrever nomes estrangeiros. Kanbun apelida qualquer texto em chinês clássico, composição literária, mesmo japonesa, escrita em chinês. É uma prática de escrita, reservada a letrados. De facto, só pelo século VI se começou a escrever no Japão: em letra chinesa, pois do Império do Meio viera a escrita então introduzida no do Sol Nascente. Aliás, os letrados nipónicos começaram por ler e escrever textos chineses, passando depois a utilizar a escrita sínica para redigirem textos em japonês, desde documentação comercial a histórias, lendas e narrativas constantes da tradição oral da cultura japonesa. Progressivamente, foram-se simplificando caracteres chineses, de modo a constituir-se um silabário fonético e a introduzir partículas próprias à sintaxe nipónica. Dos milhares de caracteres chineses, a gramática e a escola japonesas retiveram apenas 1850 - 881 dos quais considerados básicos e obrigatórios - mais uns tantos apenas utilizáveis em alguns nomes ou apelidos pessoais. A talho de fouce, posso acrescentar que também em coreano, que desde o século XVI inventou uma escrita própria, muito diferente da chinesa e das japonesas, os nomes que lemos em cartões de visita, por exemplo, se escrevem em caracteres sínicos...
Como aliás anteriormente te disse, Princesa, cada caracter chinês tem, pelo menos, duas leituras fonéticas possíveis em japonês: a on-yomi (leitura china) e a kun-yomi (nipónica). Mais ainda: um kanji, a compor uma palavra, pode esquecer o seu significado de ideograma, para reter tão só um seu valor fonético. Tal como pode reter ambos: assim, kanbun (nome dos primeiros escritos - em caracteres sínicos, claro, no Japão) - escreve-se com dois kanji, o primeiro (kan) querendo dizer chinês e o segundo (bun) escrito (ou composição literária). As pronúncias são, aqui, sínicas, tal com em kanji, que quer dizer chinesa letra. Bungaku significa literatura, já que bun é o escrito e gaku a ciência, ensino ou aprendizagem da escrita. Ora, nos primórdios da literatura no Japão - ainda no período de Nara - a escrita chinesa e a sua literatura eram apanágio e privilégio dos letrados, apesar de senhoras da corte imperial, já na era Heian, como a célebre Murasaki, autora do Genji Monogatari, terem acesso a elas. Mas, para escreverem (e eram relativamente correntes os diários, cartas, bilhetes e poemas, até porque mandavam as regras de uma corte polígama - onde se insinuavam clandestinas promiscuidades - que só aos maridos as mulheres pudessem mostrar o rosto, pelo que falavam com amigos e amantes, por detrás de um biombo ou outra divisória, e comunicavam, o mais das vezes, através de flores e bilhetes poéticos) recorriam ao silabário hiragana, não só porque esse lhes era autorizado, mas também porque lhes facultava uma expressão mais autêntica, fluente e matizada, do pensarsentir japonês... Aliás, desde muito cedo, os próprios caracteres sínicos foram sendo utilizados para se lerem à japonesa, isto é, sendo ideograma, o mesmo caracter podia ser pronunciado consoante a palavra chinesa correspondente, ou a sua equivalente nipónica, donde as leituras on-yomi e kun-yomi... E logo o idioma japonês se apropriou dos mesmos caracteres para reproduzir sons em textos. Explico: o ideograma chinês shu (mão), poderá ler-se té em japonês, com o mesmo significado, mas também como simples sinal fonético na composição de outra palavra. Quando, para tal função, ele é mais simplesmente desenhado ou caligrafado em hiragana ou, mais tarde, em katakana, o fonema serve exclusivamente a língua nipónica escrita, que assim se emancipa do colete da letra chinesa.
Da primeira antologia escrita da poesia japonesa, a Man´yoshu, já te falei há tempos, ou sobre ela escrevi alhures. Man diz dez mil, yo folha de papel, shu é sufixo para contagem de poemas, posso pois concluir que se fala de dez mil folhas de poemas ou antologia. Na verdade, tal coletânea de poesia japonesa anterior ao ano 759, contém, em 20 livros, 4516 waka, dos quais 4200 tanka (poemas curtos), 265 choka (poemas longos) e mais poucos poemas chineses e notas nesta língua, em também se escreveu o título da compilação. Curiosamente, o caracter usado para folhas (yo) pode, em leitura japonesa, querer dizer, era, reino, geração... Mas de antologias, espírito e inspirações da poesia nipónica te falarei noutra carta. Tal como voltarei ao Genjimonogatari, obra prodigiosa, escrita por uma mulher, e que tanto nos diz da vida da corte imperial e da estética da era Heian, período em que a capital que Kyoto foi, enquanto residência dos imperadores, durante um milénio, acolhia também o governo... O vício do esteticismo e o relaxamento dos costumes da corte fizeram todavia que este acabasse por se instalar noutras partes, começando por Kamakura, onde surgiu o primeiro shogun, Minamoto no Yoritomo em 1192...
Tão de ouro era a luz desta manhã, que me quedei na varanda quieta do meu quarto, aberta sobre os campos próximos e alegrada pelo voo de melros, pardais, verdilhões, toutinegras e poupas... São estas as mais raras, gosto de as ver pousar, para lhes admirar a poupinha e as penas zebradas. Senti muito a falta das andorinhas, tem-me feito sofrer a ausência delas, aqui na nossa Várzea da Pedra, nesta Primavera. Creio que, quando cá chegaram, não encontraram ninhos nem os beirais iguais aos que tinham deixado: as obras que tivemos de fazer no exterior da casa, apesar de eu ter pedido que poupassem os nichos das aves, levaram tudo a eito... E tenho saudades de ver valsar as andorinhas, e muitas mais de as ver compor, quais notas de música numa partitura, os fios elétricos e telefónicos que cruzam a vereda aqui defronte...
Mas contava-te que me pus de contemplação na varanda do quarto. Eis que, súbito, surge veloz no céu um peneireiro (falcão vulgar) que se projeta e toca o solo, mesmo na margem do lago ou charca que a quinta tem lá nos baixos do pereiral. Fulminou um rato e banqueteou-se. Lembrei-me então - pois ando em semana de releitura do Taniguchi - do milhafre que, num conto de Furari, se apropria dum peixe que o pescador, num bote, está a retirar das águas do rio Sumida, preso ainda ao anzol da linha da sua cana. O protagonista do conto e do livro todo - cujo título, Furari, se pode traduzir por Ao Sabor do Vento - é um geómetra e cartógrafo japonês do fim do período Edo e início da era Meiji (séc. XIX), que se entretém a percorrer Edo/Tokyo (e outras paragens) contando os passos com que vai medindo as distâncias. Cada passo mede sensivelmente 70cm, isto é, 2 shaku (30,3cm)e 3 sun (3cm), unidades de medição ainda hoje utilizadas para antiguidades. Para ele, a velocidade e golpe certeiro do milhafre é motivo de assombro e de imaginação sobre como se desenhará Tokyo, vista do céu, lá das alturas por onde a ave voa...
Furari é uma obra a que volto com frequência, não só pela sempre notável qualidade do desenho de Taniguchi, e pelo carinho perene e infantil espanto do autor pelas pessoas e o mundo à volta delas, como pela fidedigna descrição da cidade de Edo, das cenas de rua, das paisagens e das estações do ano, das vestimentas, usos e costumes, para não falar do encanto de um espírito científico e empírico sempre em caminhada de descoberta. E temos ainda o gosto das lendas e narrativas tradicionais, como na cena que a seguir para ti evoco.
Os mochi são uns bolos de massa de arroz, uma pasta pegajosa e plástica, que obrigatoriamente se comem pelo Ano Novo, infelizmente vitimando por engasgamento uma ou outra pessoa idosa, todos os anos, por ocasião da festiva refeição. O primeiro dia do ano é também data de se ver o nascer do sol, sinal de novo ano, nova vida. Agosto, por sua vez, é mês de contemplar a lua cheia. Assim como nós amamos o luar de agosto e as desfolhadas. No conto A Lua, de Furari, o nosso herói passeia-se de canoa, com sua mulher, pelo rio Sumida, em plena cidade de Edo (Tokyo). Também fiz essa experiência fluvial e romântica, petiscando, bebendo saké e olhando a lua. Deixam o bote flutuar ao sabor da corrente, vão silenciosamente gozando o momento. Mas Eï, a mulher, fala: Que beleza serena! Mas porque haverá um coelho que faz mochis na lua? E a conversa entre ambos vai continuando: Desde quando fala o budismo nisso?... Para expiar as faltas de um mundo anterior, um coelho corajoso quis fazer uma boa ação... e ofereceu a própria vida... Então Shakra comoveu-se lá no alto dos céus, e levou-o e instalou-o no reino lunar... Diz-se que é desde então que se vislumbra um coelho na lua... Será que os desenhos que vemos na lua já antes se pareciam com um coelho? ou será que essa lenda é anterior? Não sabemos. Mas seja como for, é facto que a lua é o astro mais próximo da terra... E isso de estar sempre a mudar de forma acentua ainda mais o seu mistério... Mas é um astro magnífico, que nos é familiar... Entretanto, à beira-rio, o poeta Issa escreve um poema: Apanha para mim / a lua / pede a criança chorando...
Mais tarde, tal como dantes, o caminhante Ao Sabor do Vento continuará a contar e a medir os seus passos, mas sempre de olhos no céu.
Por cá, o toque de alvorada é dado pelos melros, quando a luz que vejo lá fora, estremunhada e pálida, ainda nem põe cores nos campos mas apenas vai rompendo a escuridão da noite que foge, distinguindo contornos e tons. A noite que fundira num campo só seu todos os campos que eu via (lembrando Pessoa) deixa agora a alba abrir as sombras... E os melros cantam acolhendo o dia e reconhecendo-se nele. E eu quedo-me a sentir a luz da manhã que cresce e não comando. E então vou descobrindo como é alto o céu, e ocorre-me aquele desabafo do Hiroshi Nakahara, protagonista de Harukana Machi-E, de Jiro Taniguchi: O céu é tão alto... e, todavia, temos a impressão de que bastaria estendermos a mão para tocar nas nuvens... O céu é tão misterioso, como se fosse imutável para lá dos homens e do tempo... E se a eternidade fosse isso, um simples céu... Nunca ninguém se torna verdadeiramente adulto... A criança que fomos está aí, bem viva no muito fundo de nós... É como o céu... Com o tempo, julgamos que crescemos, mas a maturidade não passa de engano, mais não é do que um entrave à nossa alma livre de crianças... Reli esta noite essa maravilhosa narrativa do regresso sonhado de um homem maduro aos seus catorze anos, para compreender que não se muda a vida que nos construiu. Tal como não se reinventa o passado, e afinal permanecemos na incessante procura do desconhecido que somos. Numa das minhas primeiras cartas (seria ainda uma das muitas que escrevi por um homónimo antes de mim?) já te falava da difícil relação que tenho com o tempo, e tenho-te dito como, ainda hoje, procuro conciliar, na circunstância da intemporalidade, a aparente contradição entre tempo escatológico e tempo circular. Esta manhã, neste momento em que te escrevo, escuto as rolas que começaram a arrulhar lá fora. Já lá vão as seis horas da manhã e calou-se a música dos melros; dão agora as oito, será hora de rolas, mas não sei dizer-te se se deitaram tarde ou são preguiçosas. Também é verdade que te digo horas de hoje, mas, embora melro me pareça mais madrugador que rola, nem todas as aves acordam todos os dias à mesma hora. Quiçá melros e rolas, amanhã ou depois, se anunciem a horas diferentes das minhas, sempre contadas. Penso que o relógio das aves não é como os nossos: tem dois ponteiros, sim, mas um é a claridade da luz, e o outro a temperatura do ar. Ambos medem só o momentâneo, desconhecem a duração. Menos angústia, menos grilhões.
Noutro livro, Taniguchi adapta e desenha um romance de Hiromi Kawakami, intitulado Sensei no Kaban (literalmente A Pasta do Mestre, que, aliás, na narrativa ilustrada, ele visivelmente traz sempre consigo) - obra que, de certo modo, nos fala também de um passado revisitado e, simultaneamente, longínquo e intrometido na vida presente. Trata-se do reencontro de uma mulher de 37 anos com um seu antigo professor, agora com 67, reformado. Apesar da diferença de idades, de conhecimentos e cultura, entendem-se no gosto por passeios com paragem obrigatória e deliciada em tasquinhas de petiscos japoneses. Eu mesmo fiz, sozinho, essa experiência de comer sentado ao balcão, mandando vir pratinhos conformes ao deambular do meu apetite e sem mais conversa, e muitas vezes volto aos relatos que o Taniguchi faz de variados momentos gastronómicos do Petisqueiro, noutro dos seus livros. Até na diversificação dos pormenores, dos ingredientes, das cores, dos cheiros, dos paladares, a cozinha japonesa tem sempre algo de comunhão telúrica, e pode convidar ao silêncio e à meditação. No caso de Sensei no Kaban é também motivo de encontro e afeto.
A mancha urbana de Tokyo e cidades adjacentes terá mais de 43 milhões de habitantes, mas todavia está semeada de minúsculos jardins e pequenas hortas, de ruas estreitas que são caminhos de aldeia, de recolhimentos, cantos e campos esquecidos... Tudo muito seguro e limpo. Sair das grandes artérias e dos centros de azáfama para se deambular por ali é como viajar-se para muito longe pelo seu próprio pé. Assim, onde mais me senti como que no campo foi nos corações secretos da megalópole de Tokyo. Por aí também me consola o convívio com a obra de Taniguchi. O desenho é limpo e nítido, o pormenor nunca é esquecido, as cenas são enquadradas de modo a descobrirmos o sentimento das coisas e das pessoas - e as belezas escondidas, mesmo quando estas não são aparentes em paisagens urbanas monotonamente arquitetadas, nas ruas cobertas pelo cruzar de cabos elétricos e telefónicos, onde o belo reina pela simples sentida presença do asseio e da paz. Inesperado, súbito, surge um pequeno parque, um templo budista, o cemitério anexo, tudo verde e cinzento e antigo. Tudo calado. Ali se prolonga e instala o repouso da paz interior. A vida e a morte confundem-se na natureza.
Curiosamente - e talvez seja isto o que me ocorreu dizer-te hoje - tenho abertos, em prateleiras da sala cá de casa, dois livros grandes, de ilustrações: um, japonês, reproduz cem pinturas antigas referentes às estações do ano, e abri-o na página que nos mostra uma pintura de cerejeira em flor, do século XVI; o outro, português, é uma edição fac-similada das gravuras do De Aetatibus Mundi, do português Francisco d´Ollanda, e delas mostro a nº 69, alusiva ao tempo e à eternidade. É uma composição intrigante, apresenta-nos um gigante ajoelhado sobre uma mó, apoiado em duas muletas com rodas, assim conduzindo a mó para cima de um esqueleto humano, que uma foice identifica como morte. É velho barbudo, tem asas abertas, parece devorar um corpo de mulher que traz na boca, uma serpente enrosca-se na muleta esquerda e aponta a cabeça à mão desse lado. É, o nome inscrito na mó assim o indica, o Tempo. Por cima da cabeça, uma clepsidra, por detrás um sol radiante donde jorra, de cada lado, um arco íris que toca a terra onde dois veados, símbolos da esperança, pacíficos e alheios, pastam. Acima do sol abre-se um espaço circular e vazio: a Eternidade. Por debaixo da gravura, o rosto do Pretérito olha para trás, o do Futuro para a frente. Entre ambos inscreve-se Agora, e a legenda reza Finis Temporis. No reverso dessa gravura do século XVI, surge representada a Ressurreição de Cristo. Uma vez mais, é o Tempo que morre, e Vida e Morte se confundem.
Pego no catálogo, para mim autografado por um conservador do Museu Nacional de Tokyo, em romaji (caracteres latinos) e kanji (sino-japoneses), Seiroku Noma comissário duma exposição no Petit Palais de Paris, ao tempo de André Malraux, ministro da cultura, que tomara a iniciativa de propor a sua realização. A data da dedicatória é 16 de dezembro de 1963, e Seiroku Noma escreve a introdução ao catálogo da exposição intitulada L´Au-delà dans l´art japonais. Naquela, ele chama a atenção para a pintura aguada e o espírito do Zen, seita contemplativa do budismo, de afastar todas as preocupações terrenas e procurar uma visão intuitiva para assim surpreender a verdade da vida e do universo... ... Com vista a atingir o coração da verdade, era necessário eliminar as impurezas devidas aos acontecimentos e à circunstância. Na terminologia Zen, essa eliminação dos entraves e essa aproximação dircta da verdade são chamadas nada, vacuidade. É por uma contemplação esvaziante e por uma disciplina visando atingir o reino do não pensamento que Çakyamuni, o fundador do budismo na Índia, alcançou a iluminação suprema. Fui a este texto, que guardava de uma estadia em Paris, há mais de meio século, porque me ocorreu quando relia o 17º capítulo, A Pasta do Mestre, do romance de Kawakami que Taniguchi verteu para desenho, com o mesmo título em japonês: Sensei no Kaban. Ali se conta que, depois da união do pudor e da paixão poderosa e íntima do professor e da sua ex-aluna, aquele irá morrer. No dia do funeral. o seu filho entrega, em memória grata do pai, um presente à jovem senhora: quando esta, saudosa e só, o abrirá, encontra a pasta que todos os dias ele trazia consigo, e lhe legara em testamento: estava vazia, nada tinha dentro. Lembra-se então de um poema de Seihaku Iraku que o Mestre um dia lhe ensinara: Tanto viajei / que trago a roupa gasta / e o frio a trespassa / Está claro o céu desta noite / mas dói-me o coração. E olhando o céu calado, dirige-se ao Mestre: Gostava tanto de voltar a vê-lo... E lá do alto, do céu vazio, uma voz lhe diz: Está prometido, um dia será!
Passei tempos sozinho em todos os lados por onde fui vivendo, e ia mobilando os meus fins de semana conforme o gosto, a curiosidade, a meteorologia e a disposição. Tudo quase lembrado, e resumidas as lembranças, posso hoje dizer que procurei constantemente caminhar, exercitando o corpo, deambulando o espírito. Talvez por isso me sejam ainda tão familiares grandes metrópoles como New York ou Tokyo, tal como cidades muito conhecidas desde a infância, como Paris ou Bruxelas. E tantos, tantos, cantinhos de Lisboa... Por muitos atalhos regresso agora a passeios longínquos, e volto a perder os passos para me encontrar, até comigo, em novas-velhas circunstâncias.
Escrevo-te tudo isto, Princesa, para te falar dum companheiro antigo, que reencontro: Jiro Taniguchi. Morreu há semanas, resolvi-me a reler as magníficas e tão profundamente originais bandas desenhadas que escreveu e desenhou. Tem obras que contemplam o homem na natureza, o desafio espiritual das altitudes, das paisagens amplas e desertas, e também uma das mais interessantes sobre as tensões do pensarsentir das elites políticas, militares, literárias e artísticas japonesas no decurso da era Meiji (1867-1912), em que se "ocidentalizava" o Japão... Mas deu-nos sobretudo histórias de amor simples, aventuras interiores da ternura, das ilusões e desilusões de todos os dias de todos nós, da tessitura das almas comuns, dos desafios da vida em família, e da grandeza desta. Entre várias narrativas, contam-se as que nos falam das deambulações das nossas solidões, todavia despidas de angústias postiças e muito cheias do inefável gosto da procura. O próprio Taniguchi busca encontrar-se na circunstância da sua cidade e no contacto dos outros. Sem alarde, em contos que são peregrinações onde se revelam silêncios interiores e o seu diálogo íntimo não se traduz, mesmo quando escrito, em proposições verbais. Entre elas, as pessoas adivinham-se, intuem-se entre si. Talvez seja esse o segredo da ternura, o sentido da mão que se estende. Como é, por outro lado, estranho dizer-se que é uma qualquer forma de egoísmo o gosto particular de nos passearmos sozinhos... O encontro, mesmo que silencioso, com o outro, o desconhecido, pode dar-se como auto-reconhecimento recíproco, cada um fazendo de espelho... Deves "ler", Princesa de mim, esse pequeno conto inserido no "antológico" O Homem que Caminha, e se intitula O Caminho Comprido, historieta sem palavras, só desenhos, em que o nosso caminhante em passeio passa por outro, mais idoso, de bengala mas andar vigoroso. Consoante as distrações do percurso e o estugar do passo, vão-se alternadamente ultrapassando. Até que, quando uma cancela se encerra e passa um comboio, o idoso já atravessara a linha férrea, deixando para trás o nosso caminhante. Todavia, ao não se ver seguido, parou e esperou. Com um sorriso apenas, sem palavra alguma, ambos prosseguem então, lado a lado, a caminhada. Pensossinto que a profundidade de ser quem sou pode ser modo de dádiva de mim. Afinal, serei sempre com os outros o que me encontro. Ser-me é dar-me. Reparo, Princesa de mim, que do meu mim te falo mais do que do Jiro Taniguchi. Volto a ele. Sem deixar de te dizer, desde já, como tanto me reconheço no seu apego às origens: em várias das suas histórias, regressa a Tottori, cidade onde nasceu, à infância, à família, a lembranças de apego a entes queridos, mesmo quando tremem e doem ainda antigas perdas, separações, incompreensões e ruturas. Tudo contado com um pudor quase silencioso, em que se respeita a solidão como retiro mas também como disponibilidade. Poucas vezes nos ocorre, Princesa, o quanto pode um solitário dar-se ou esperar por nós...
As personagens de Taniguchi sentem-se frequentemente a viver fora do tempo, impressão que eu mesmo também tenho, e de que já te falei. Transportam-se as pessoas para além da duração, não por desejo de prolongamento, mas por saudade da permanência. A eternidade não tem qualquer dimensão, quiçá por isso se possa sentir a medida de qualquer espaço ou tempo como simples ilusão. Todos nós sempre fugimos da circunstância próxima, porque nos prende e encerra, e se nos impõe como limitação. De modo muito japonês, os heróis de Taniguchi estão sempre à procura de uma saída que, afinal, é outra entrada: quanto mais alguém mergulha em si, melhor compreende os outros; quanto mais reconhece os outros, melhor se percebe a si. Os títulos dos seus livros são significativos: O Bairro Longínquo, O Petisqueiro da Solidão, Céu Radioso, O Diário do Meu Pai, O Homem que Caminhava, O Passeante, etc... Chichi no Koyomi (O Diário - ou calendário - do Meu Paizinho) é a descoberta, por um homem adulto, na noite do velório do pai morto, e que ele já não via há vinte anos, do amor atento que este toda a vida lhe votara e ele ignorara. É nessa altura só - quando o pai já habita fora do tempo - que o filho o encontra, escutando os muitos testemunhos de familiares que lhe revelam essa figura tutelar: a criança que tanto sofrera com o divórcio dos pais e passara a vida toda carregando o peso dessa dor percebe então, quando o tempo morreu para dar lugar à misericórdia, que afinal nunca o amor a abandonara. E é comovente ver como Taniguchi nos conta uma história tensa sem sequer uma mínima censura a qualquer personagem. Apenas nos ensina que o amor é o nosso único verdadeiro segredo, e pode não ser fácil descobri-lo.
A amor é sempre transcendência, só ele constrói e habita a eternidade. A novela UmCéu Radioso conta-nos a coabitação - no corpo de um jovem motar de 17 anos, que sobrevive, amnésico, a um acidente de viação - do regresso dele à consciência de si e do espírito do pai de família que morreu no mesmo acidente, e reincarna para ter a última oportunidade de se despedir da sua família. Subjacente a interrogações como a da reincarnação, da ressurreição e da saudade, está uma fé, substância das coisas que devemos esperar, desejo e esperança de eternidade, que só o amor pode criar e infinitamente sustentar... Escreve Taniguchi: Imaginei um homem que vai morrer e que, antes de paulatinamente se ir embora, consegue apanhar tudo o que o seu coração insatisfeito ia deixar num estado de incompletude. Desejei escrever o arrepio do coração de alguém que acompanha um próximo querido no momento da sua morte, e o renascimento da alma... ... "Um Céu Radioso" é, assim também, a narrativa de uma família que decide ultrapassar uma morte impensável. E apesar da história ser um tanto estranha, quis representar, com os meios da banda desenhada, os conflitos e os rasgões do coração, a aflição que é aceitar a morte de um ser, e o que é preciso fazer para partir sem deixar atrás de si qualquer conflito interior não resolvido.
O título do livro, na versão francesa da Casterman (2006) é Un Ciel Radieux. Mas o título japonês Hareyuku Sora também se pode traduzir por Um Céu Limpo. Ou um céu claro. Diz-me muito.