Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA O PAI E O SILÊNCIO
1. Houve um tempo, tempo de que me lembro muito bem, em que, dos dias para tudo quase todos os dias, só havia um dia especialmente assinalado. Esse era o Dia da Mãe, celebrado a 8 de dezembro, na Festa da Imaculada Conceição de Maria. Dos pobres pais não se falava, embora eu duvide que esta precedência cronológica da Mulher sobre o homem sirva de conforto ou lenitivo face à recente questão das quotas. Não era Dia da Mulher, como agora se usa, mas celebração da maternidade. Se bem me recordo, o então cardeal-patriarca aproveitava o doce dia e a doce palavra para enaltecer as mães de muitos filhos ou as mães que tinham os filhos que Deus mandava. É claro que para tanto era indispensável uma ajuda masculina, mas suspeitava-se que essa ajuda fosse prestada por motivos prazenteiros, enquanto a Mulher, pelo contrário, cumpria o seu dever.
O certo é que não me lembro de Dias do Pai, embora o 19 de março, dia de São José, fosse, nesses tempos, dia santo de guarda. A tradição do Dia do Pai confunde-se-me, em percurso autobiográfico, com a mudança do Dia da Mãe para data móvel, tão móvel que me aconteceu mesmo esquecê-la. Houve até um ano - estava uma filha minha a divertir-se na América - em que esta telefonou de lá para dar beijo à Mãe em dia dela. Enorme pasmo e enorme enleio. A filha-pródiga lembrava-se da Mãe, de além-Atlântico, com chamada que, simbolicamente, ao que creio pela única vez, não foi paga ao destinatário. Filhos outros, e marido bem pertinho na mesma casa, tinham-se esquecido por completo. As consequências só não foram mais devastadoras porque alguém reparou a tempo que os Dias da Mãe não coincidiam nem nos continentes nem nos conteúdos. Ou seja, era Dia da Mãe na América, não o era em Portugal. Ninguém tinha que pintar a cara de preto e à minha filha "americana" só lhe restava repetir a dose. Começava-se então a ouvir a frase - também eu fiz minha - que com tanta mudança tinham dado cabo do Dia da Mãe. Frase tão feita como aquela que rezava: "Cá em casa nunca se ligou ao Dia do Pai." Eu, às vezes, protestava que era injusto, mas com fraquíssima convicção. É de pequenino que se torce o pepino e em pequeninos - nem eu nem os meus filhos - tínhamos sido torcidos para o Dia do Pai. A coisa só mudou no tempo dos meus netos, há uns vinte a esta parte. Seja num dia, seja noutro, as escolas fazem tal alarido, a comunicação social tal algazarra, o comércio tal proveito, que não há perigo que qualquer das datas progenitoras passem despercebidas. Até eu passei a receber presentes no Dia do Pai. Eu que nunca os dei e, que em matéria de honrar pai, só me lembro de ter sido obrigado, em hora mais remota, a copiar do livro da 3ª Classe para as mãos paternas, o extraordinário verso por cuja fidelidade juro à fé de quem sou: "Amo o meu Pai / como não amei, não amo, nem amarei / mais ninguém / a não ser a minha Mãe." O autor era autora e certamente nunca ouvira falar do complexo de Electra, que a conclusão do verso não consegue ocultar. Mas é certo, voltando aos dias de hoje, que, se se perderam, ou se deixaram perder, quase todas as origens míticas e religiosas dos dias para tudo ou dos dias para nada (nem sequer Santo António venceu em Portugal o ignoto São Valentim, no Dia dos Namorados) o Dia do Pai é praticamente o único, cuja génese é óbvia.
2. Ou não é nada óbvia. Porque se pode perguntar - e com alguma pertinência - porque se comemora o Dia do Pai em dia de santo que pai nunca foi, São José, castíssimo esposo de Maria. Só gente muito heterodoxa foi capaz de comentar (Mt 1, 25-28 - "e nunca a conheceu até ao dia em que ela deu à luz o filho, ao qual ele deu o nome de Jesus"), observando que o texto nada diz sobre o que se passou depois. Em relação a outra passagem (Mt 12,46) em que o mesmo evangelista fala de irmãos de Jesus, exegese estabeleceu há muito que, em hebreu e aramaico, o termo utilizado designa também parentes próximos. Por último, são muito tardias e espúrias as versões que atribuem a S. José filhos de casamento anterior, pelo menos tão tardias e espúrias como as que sustentam que ele viveu até aos 111 anos. De resto, sabemos muito pouco de S. José. O Evangelho segundo S. João não lhe faz qualquer referência. Dos sinópticos, Marcos também o ignora. Dos evangelhos canónicos, Mateus e Lucas são as fontes privilegiadas, sobretudo o primeiro. Logo na genealogia de Jesus Cristo se diz, a terminar, que "Jacob gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, a que se chama de Cristo".
Depois (Mt 1, 18-28 e Mt 2, 13-26) são narrados os três sonhos de José: o primeiro impediu-o de "repudiar sem escândalo" Maria, quando descobriu a gravidez dela, "antes de terem vida em comum". Disse-lhe o Anjo nesse primeiro sonho: "José, filho de David, não temas tomar conta de Maria, tua mulher. Porque ela gerou por obra e graça do Espírito Santo. E dará à luz um filho, a quem chamarás de Jesus, pois é ele quem salvará o povo dos seus pecados' (...) Depois de acordar, José fez o que o Anjo do Senhor lhe tinha mandado e tomou Maria com ele." O segundo sonho segue-se à visita dos Magos. "O Anjo do senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma contigo o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto. E permanece no Egipto até que eu te previna. Pois que Herodes vai procurar o Menino para o mandar matar.' José levantou-se, e, de noite, levou consigo o menino e sua Mãe e fugiu para o Egipto onde ficou até à morte de Herodes."
O terceiro sonho aconteceu quando Herodes morreu. "O Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egipto, e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o menino e sua Mãe e regressa à terra de Israel, pois que morreram os que queriam tirar a vida ao Menino.' José levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e regressou à terra de Israel. Mas, informado que Arquelau sucedera a Herodes no trono da Judeia, receou voltar para lá. Avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e fixou-se numa cidade chamada Nazaré." Sempre me deu que pensar este papel dos sonhos no "amadurecimento" de José. É a sonhar que acredita na virgindade de Maria e decide viver com ela e assumir, perante os homens, o lugar de pai do Menino. É a sonhar que toma resolução de acordar Maria e o Menino e de os levar com ele numa perigosa viagem para o Egipto; é a sonhar que toma a resolução (quantos anos depois?) de voltar a Israel, embora só num quarto sonho posterior (o mais elipticamente referido) o tenha confirmado na decisão, não onírica, de se fixar na Galileia e não na Judeia. Alguns comentadores têm falado na oniromancia de José, que contrasta com os ensinamentos do Eclesiastes que recomendava desconfiança: "Os sonhos têm deitado a perder muita gente e quem neles acreditou sucumbiu" (XXXIV, 1-8). José, pelo contrário, acreditou e, porque acreditou, salvou o Maria e salvou o Menino. A fé dele é como a fé de Abraão: contra toda a evidência. Por outro lado, é José quem escolhe para o Menino o nome de Jesus e é o primeiro a saber que Jesus virá ao mundo para o resgatar do pecado.
Por fim (se fim pudesse haver em tudo isto), Mateus define José com um único adjetivo: "Justo" ("era um homem justo"). O Padre Bartolomeu do Quental, em 1661, no Sermão sobre São José (aproximável de passagens de Santa Teresa de Ávila), comenta admiravelmente o uso da palavra justo. "E o que custa a um homem justo ser filho de Deus? O que custou a José. Nada. Diz o Evangelhista que São José, como fosse justo, não quis entregar sua Esposa... não entregar, claro está, que é não fazer nada e, não fazendo nada, foi São José justo... Muito devemos hoje a São José por nos facilitar tanto com o seu exemplo uma coisa tão grande como é ser justo não fazendo nada, e foi justo (...) Os outros Santos ensinam-nos a ser justos obrando; São José é Santo de tão boa graça que nos ensina a ser justos não fazendo."
3. Depois, São José só volta a surgir nos Evangelhos (Lc 2, 41-54) no episódio, precisamente situado aos doze anos de Jesus, em que este, sem que José e Maria se apercebessem, ficou sozinho em Jerusalém, no Templo, em vez de voltar com eles para Nazaré. Quando descobriram que o tinham perdido, voltaram para trás, repetindo uma jornada de marcha. Três dias o procuraram em Jerusalém e três o não acharam. Quando finalmente o encontraram (o Menino entre os Doutores) quem o censurou foi a Mãe: "Meu filho, porque nos fizeste isto? Vê como teu Pai e eu te buscávamos, angustiados.' E Jesus respondeu-lhes: 'Porque me procuravam? Não sabem que tenho que me ocupar dos assuntos do meu Pai?' Mas eles não perceberam as palavras que ele acabara de dizer."
Mais uma vez, São José é o todo silencioso. Não disse a Maria que a pensou repudiar. Não lhe disse a razão das idas e vindas para o Egipto ou da escolha de Nazaré como morada deles. Não censurou Jesus, embora Maria lhe atribua angústia idêntica à dela. Se os Evangelhos nos reportam algumas (embora escassas) trocas de palavras entre Jesus e sua Mãe, nenhum traço ficou de qualquer palavra entre Jesus e José. Mas é no momento em que Maria lhe fala do pai ("o teu Pai") que Jesus responde citando outro Pai, que não aquele pobre velho. Velho? Se os apócrifos falam de um José muito mais velho que Maria, os canónicos não dão qualquer indicação sobre a idade. Mas todas as imagens sempre retrataram José como um velho, num lapso demasiado gigantesco para ser inconsciente, como que explicando pela idade a abstinência dele. Depois, José desaparece numa imensa elipse. Quando morreu? Não sabemos. Ele que foi o silencioso "como a terra orvalhada" (no belo verso de Claudel, que cito em tradução de Pedro Tamen) fez-se silêncio e ocultação. Que mais bela definição se pode dar do Pai e do seu papel em dia dele, do que chamar-lhe, como Claudel lhe chamou, "Patriarca interior do dia-a-dia"? Termino com antiquíssima oração: "Jesus, José e Maria / Acompanhai-me hoje, agora e sempre / e na hora da agonia."
por João Bénard da Costa 18 de março de 2005, in Público
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA As Cinzas e o Maneirismo Italiano
1. Foi em setembro. Eu estava a mostrar Veneza à mais nova das minhas Mónicas. Os dragões de Carpaccio fechavam à hora do almoço deles, que não coincidia com a do nosso. Nem tudo são azares, já que dragões não almoçam certamente no Harry's Dolce da Giudecca (um dos lugares mais paradisíacos da terra e um dos sítios onde melhor se come na nossa amurada) e vêem-se melhor à luz de Bellinis. Aliás, foi a ver de Bellini a translucidíssima "Virgem com Santos" de San Zaccaria que levei a Mónica enquanto fazíamos horas. À saída, reparei num cartaz ao fundo do "Campo".
Anunciava uma exposição intitulada "Natura e Maniera tra Tiziano e Caravaggio", comissariada por Vittorio Sgarbi, a inaugurar a 5 de setembro em Mântua. O cartaz reproduzia a "Judite com a cabeça de Holofernes" de Tiziano, que está em Roma na Doria Pamphilli, e em que alguns julgam ver a "Salomé com a cabeça do Baptista". Adiante, que, mais Freud menos Freud, os temas sobrepuseram-se nesses tempos perversos e terei ocasião de voltar a uns e a outros. A 5 de setembro, já estaria de regresso à pátria, muito raramente visitada por Tizianos de passagem e jamais visitada por Caravaggios. Por razões que agora não vêm ao caso (como se o resto viesse...) não podia prolongar-me em Itália. Pensei com os meus botões que a possibilidade de ver a exposição era remota e tive pena. "Tra Tiziano e Caravaggio" situam-se alguns dos pintores de que mais gosto e o nome de Vittorio Sgarbi garantia-me uma escolha original. O homem das "trevas e da rosa" tem uma reputação duvidosa? Eu sei. Mas se, mesmo em anos muito "progressistas", sempre me atraíram criadores e críticos ditos "reacionários" ou pior do que isso (do Pound a Céline, de Vinneuil-Rebatet a Brasillach, tendências que nunca me dei ao trabalho de analisar ou psicanalisar convenientemente), com a idade essas preferências só se acentuaram. Assim, apesar de saber que a esquerda italiana diz de Sgarbi (n.1952) pior do que diz de Berlusconi, de quem até foi ministro ou coisa parecida, livros como o citado "Le Tenebre e la Rosa" ou "Notti e giorno d'intorno girando..." são meus livros de cabeceira desde há alguns anos, quando a Rita me trouxe o primeiro deles de Turim. Muito recentemente (Minha Senhora, não se zangue comigo) acrescentaram-me ao rol dos pecados dele, mais dois. Segundo me disseram, o homem, por dinheiro e por mulheres, era capaz de tudo. Capaz fui eu de responder, à minha assombrada interlocutora, que há defeitos piores. "Percorsi perversi", para citar o título do último livro dele, comprado em Mântua, onde acabei por ir (fiz por isso ou aproveitei acasos em meu favor, como em devido lugar para o mês que vem explicarei) nos últimos dias em que a exposição estava visível. Fechou a 9 de janeiro.
A ela volto. Não sem antes citar de Sgarbi a frase que para ele me conquistou: "A arte é, acima de tudo, uma forma de conhecimento do mundo, intuitiva e luminosa, como a inesperada aparição de uma rosa nas trevas."
2. Como é que a rosa me apareceu nas trevas do Palazzo Te, tão perto da Sala de Psique ou da Sala dos Gigantes, onde, há alguns anos, descobri Giulio Romano, a que até então pouco ligara, ou sempre vira apenas como talentoso discípulo de Rafael, como o ventre que gerara Rubens, que em Mântua junto dele se formou? Numa "mostra" de 130 quadros bem expostos (se bem dispostos, é outra questão) na chamada "Fruttiere" do Palácio, ou, se preferirem, no antigo pomar dele, há muito transformado em galeria temporária. O percurso iniciava-se com a Judite (ou a Salomé) de Tiziano e terminava com dois Caravaggio: "A Conversão de Saulo" e "O Sacrifício de Isaac", obras da primeira fase do pintor. O último está nos Uffizi e conhecia-o bem, embora lhe prefira, de longe, a tela com o mesmo tema e mais ou menos da mesma época, de uma coleção particular americana e que vi em 2000, em Bilbau. O primeiro, anterior à célebre tela homónima da Capela Cerasi de Santa Maria del Popolo, em Roma, nunca o vi em vida minha e é mesmo um dos quadros de Caravaggio mais difíceis de ver, já que os donos (os Odescalchi, da lendária coleção homónima) são tão ciosos dele que raramente o emprestam. Ai de mim, ainda não foi desta. Saíra da exposição a 11 de outubro e não pude, pois, verificar se, como pretende Sgarbi, foi ele quem lançou o Romano na pista dos gigantes, na sala dos quais o queria expor. Também não pude confirmar se Sgarbi tem razão quando diz que, mais do que qualquer outro quadro de Caravaggio, essa é a obra que "mais fala a linguagem do maneirismo", com "a sintaxe maneirística e a gramática realista ou naturalista". A tela do "horror vacui". Neste caso, no vácuo fiquei eu, debruçado sobre a grande ausência final. O primeiro Caravaggio teria sido o último dos maneiristas, nos últimos anos do século XVI? Se Sgarbi o jura, eu não o posso jurar.
3. Mas o comissário que não comissariou essa elipse (tivesse eu madrugado mais cedo...) comissariou outra elipse mais insólita. A exposição, além do título já mencionado, junta-lhe outro: "As cinzas violetas de Giorgione". A expressão é do célebre crítico Roberto Longhi (1890-1970) que em tempos escreveu, referindo-se a um dos maiores pintores maneiristas, esse Dosso Dossi (1490-1542) que, mais do que qualquer outro, trouxe de Mântua: "A arte dele (...) é o fumo que se evola das cinzas violetas do enterro de Giorgione, misturado com as doces névoas dos vales do Pó" (Dossi nasceu e morreu em Ferrara). Sgarbi vai ainda mais longe do que Longhi e diz que "a alma de Giorgione continua a viver em Cariani como em Dosso Dossi. Ao falar das "cinzas violetas", Longhi queria dizer que tudo o que aconteceu na Padânia, a partir de 1510, foi a reelaboração, a transformação e a deformação da arte de Giorgione, imprescindível, arrebatadora, diletante, tornando-se numa segunda natureza para cada artista, ou, se se quiser, na Maneira de cada um deles".
Mas se, no texto do catálogo, que estou a citar, evoca de Giorgione "La Tempesta" ou os "Tre Filosofi", ou o "Tramonto", nenhum quadro do célebre pintor da Laguna figura na exposição. Esse "protagonismo ausente" não é fortuito. Cinzas não se mostram em ressurreições. Cinzas fúnebres ainda menos. É uma nova luz, "un'aria stregata", que nasceu na obra do mais genial continuador de Giorgione e, portanto, acuradamente, Tiziano abre a exposição, com a Judite ou Salomé que, vista a alguma distância, parece desviar os olhos, pudica ou enleada, da cabeça que acabou de degolar e, vista de mais perto, não disfarça um sorriso perverso, como se quisesse dar o peito, que tão levemente deixou desnudado, à boca que não repele mas comprime. Diz-se aliás (mas diz-se tanta coisa) que a figura feminina retrata Violanta, a filha de Palma o Velho, por quem Tiziano se terá perdidamente apaixonado, como se diz que Tiziano (então com 25 anos) é reconhecível nos traços do Baptista ou de Holofernes. Mas não se diz, vê-se, que a cabeça dele é colocada por baixo do arco, através do qual um céu azulíssimo é a única fonte de luz que brune o morto e aleita Violanta, uma Violanta que, como a de Rodrigues Lobo, "antes que o sol se levante / A dar graça e luz ao prado / Já Violanta lha tem dado / Que o sol tomou de Violanta".
4. Mas, por muito que me custe, tenho que deixar Tiziano e a degoladora de beatilha. Pois se havia dez Tiziano na "Mostra" e todos eles raríssimos (nem tempo me deixam para falar no retrato do comandante zarolho, proveniente de algures em Ferrara) já me aproximo do fim e ainda não expliquei o critério da exposição. Sabe-se, desde o livro clássico de André Chastel, como a "maneira" romana, que Clemente VII, o segundo papa Médicis, protegeu com volúpia e escândalo nos primeiros anos do seu pontificado (1523-1527), dando origem a uma nova pintura, ou a uma pintura nova, foi brutalmente interrompida pelo saque de Roma de 1527. Os protegidos de Clemente ou foram mortos, como os mais ímpios frutos da "nova Babilónia", da "Sodoma renascida", ou dispersaram-se pela Itália, sobretudo pela Emília Romana, pela Toscânia e pelo Veneto. Parmigianino em Parma, Pontormo em Florença, Dossi em Ferrara, Maretto e Savaldo em Brescia, os Campi em Cremona, entre tantos, tantos outros (nem sequer falei de Rosso, nem sequer mencionei Tintoretto), entre 1530 e 1570, seguindo a lição colhida em Roma. Se, na "imitação" da Natureza, Miguel Ângelo e Rafael são inultrapassáveis, o único caminho possível (e Vasari é a fonte) é partir "'da maneira' de Miguel Ângelo e explorar um terreno que é o dos sonhos deles, das visões deles". O limite deixa de ser a realidade ou a Natureza para passar a ser a consciência. Ou, como aventurosamente diz Sgarbi, esses pintores "entram na alma profunda do Homem. Com eles começa, pode dizer-se, a psicanálise". Muito antes de os alemães terem inventado o termo "manierismus", "principia-se a sondar uma dimensão tão secreta e tão misteriosa que já nada tem que ver com a realidade. A sensualidade entra nas almas e os corpos são apenas veículos delas".
Para o mostrar, Sgarbi foi buscar dos grandes pintores o mais secreto e dos pintores esquecidos o mais evidente, com centros em Lotto, em Dossi ou em Parmigianino, tanto quanto em pintores que só agora descobri, em Ortolano, Compagnolo, Bonsignori, Cariani, Orsi, Sustris ou Carlo Bononi. Quadros famosos de museus famosos? Muito poucos. Mas de igrejas recônditas, coleções particulares ou museus de cidadezinhas, vieram essas visões do abismo, que a Contra-Reforma volveu anos depois para o limbo dos prazeres proibidos.
E nem sequer falei de Bastianino (1532-1602), o nebuloso pintor do "Juízo Final" do Duomo de Ferrara, a quem Longhi chamou o "William Blake do miguelangelismo italiano". Dele, o "Cristo morto entre dois anjos", foi outro dos cumes desta exposição. Cito Sgarbi, para terminar, pois foi ele quem descobriu essa tela em 1992: "A maceração interior, a transformação do corpo em fumo, perdida toda a força, desvanecida qualquer energia. Do homem, só resta o invólucro, no ponto de dissolução. Nem um gesto, nem uma convulsão, apenas um sussurro. E assim, nas névoas de Ferrara, o sonho de Miguel Ângelo dissolveu-se" (...) Haveria que esperar por Goya para reencontrar um efeito tão visionário".
por João Bénard da Costa 28 de janeiro de 2005, Público
1 - Vai para uns tempos, puxei de rufos e tambores para saudar a edição de "A Bíblia dos Jerónimos," em parceria entre a Bertrand e a FMR. Vai para uns tempos? Que digo eu? Já o ano mudou de quatro para cinco e os tempos de que falo são tempos do ano passado. Às voltas no mundo ou às voltas com o mundo, voltei a despedir-me à francesa e a desaparecer sem dizer água-vai. Uns chamam-me flibusteiro, outras trapalhão, mas eu acho sempre que eles não se vão embora para não mais voltar. Eu volto sempre. Posso despassarar, mas estou sempre onde menos se espera. Aqui, por exemplo, cá estou eu de novo, pegando nos livros onde os deixei e no Natal, já o Dia de Reis se foi há mais de uma semana. Chega de tempos e da falta deles. O que eu queria lembrar é que, ao louvar "A Bíblia dos Jerónimos", sacudi do capote eventuais suspeitas de andar a soldo de Franco Maria Ricci. Ficava muito mal com a minha consciência se não me apressasse nos hossanas a uma edição tão bela como essa e que nada tem que ver com a Bertrand ou com Ricci, surgida nos escaparates por obra e graça da Civilização Editora do Porto.
Em tão funesto ano como o passado, o Menino Jesus desceu do céu três vezes: para a Bíblia de que já tanto falei, e para os dois inadjetiváveis volumes que aqui me trazem hoje. Qual foi a terceira vez? A modéstia ou o orgulho impedem-me de o dizer por enquanto, mas pode haver quem repare. 2004, o malfadado, acabou em glória de livros de arte, desses que levaram o poeta das "Odes" ao verso famoso: "a thing of beauty is a joy forever".
2 - Algures em "A Alma dos Ricos", Agustina escreve que "santos e santas, pessoas de altíssima graça para a abnegação e o sacrifício, iam buscar essa paixão a um lugar inóspito e prodigioso, a própria infância". Não há muito que duvidar. Quem conhecer o mais vasto repertório de vidas de santos e santas jamais recolhido não encontra um ou uma que não tenham ido buscar a bem-aventurança a essa tenra idade. Hoje, lê-se muito menos a "Legenda Áurea". Mas, durante cerca de 600 anos, foi o "livro mais copiado e mais lido de todos os países da cristandade", juntamente com a Bíblia, como sustenta Diane de Selliers, no prólogo da magnificente edição francesa de 2000, em boa hora vertida para português em 2004. Por mim, só tenho algumas dúvidas ao lembrar-me da "Imitação de Cristo" (pelo menos tão lida como a "Legenda Áurea") e só ponho algumas reservas à expressão "países da cristandade". Sabido como os santos e santas foram desacreditados pela Reforma, não julgo que, nos países protestantes, o livro estivesse em muitas cabeceiras desde que a cristandade ocidental se partiu ao meio. Mas em terras do Papa, ou ao Papa reverentes (mesmo quando insolentes), a afirmação é pacífica. Quem, entre os ímpios, tiver dúvidas, leia a sábia introdução do prof. Aníbal Pinto de Castro e perdê-las-á. Só em Portugal não têm conta as edições, desde a de Alcobaça, em 1298, ainda o autor da "Legenda" era vivo, até as de 1818. Embora para os mais novos persistam muitas confusões. Eu, por exemplo, sempre lhe chamei "Lenda Dourada" (por influência do título francês "La Légende Dorée" e em francês li eu o livro, quando novo era) e sempre escrevi o nome do seu autor como Jacques de Voragine (outro galicismo). Os factos, resumidos pelo prof. Pinto de Castro, convenceram-me. É bem certo que Jácomo, lacopo ou Jacopo de Varezze - "cedo conhecido pelo apelido alatinado de Voragine" (1226?-1298) foi um nativo da Ligúria, que professou nos dominicanos em 1244 e chegou a provincial da Lombardia, a geral da Ordem dos Pregadores e a arcebispo de Génova. Se viajou bastante (foi até França, foi até à Hungria), quase toda a sua vida se passou em Itália.
De modo que, ao aportuguesar-lhe o nome, vale o compromisso de Pinto de Castro, que lhe chama Tiago de Voragine, pois que Tiago precedeu Jaime como versão lusa do Jacobus latino. Não me vou demorar na história da vida de Tiago de Voragine, mas acentuo, seguindo uma vez mais o prof. Pinto de Castro, na imensa erudição que o levou a redigir durante cerca de vinte anos (mais ou menos de 1240 a 1260) estas vidas de 365 santos, usando como fontes autores que vão de Santo Ambrósio a Santo Agostinho, do Pseudo-Dinis ao Venerável Beda, para lá das Escrituras, quer as ortodoxas quer as apócrifas. Voragine contou a verdade, só a verdade e nada mais que a verdade? No século XIII não se usavam tais pruridos e a palavra "legenda" por que a obra passou a ser conhecida, mostra, com clareza, que as fontes principais eram lendárias, recolhidas pela tradição com o mesmo grau de fidelidade dos contos populares. "Áurea", porquê? Porque "o seu conteúdo é de ouro" e brilha como brilha esse metal.
Para se perceber bem este livro, sobretudo "mágico", há que atentar em dois pontos, relevados na sumptuosa edição que aqui me trouxe. O primeiro é referido numa citação de Gervásio de Cantuária (1140-1210) que serve de epígrafe ao texto introdutório de Diane de Selliers: "Com a Beleza resplandece a luz. No Céu, contemplaremos a Beleza face a face, ali já não teremos necessidade da arte. Na terra, não podemos prescindir dela."
O segundo serve de título ao artigo de Pinto de Castro e chama à "Legenda Áurea" as "Mil e uma Noites do Cristianismo". Quem ler este livro, esquecido desta platónica invocação à beleza (bebida diretamente em Plotino), ou esquecido da sua analogia com os contos árabes, perde, quanto a mim, o essencial. Sendo também certo que, de acordo com as boas regras da retórica, "o prazer do texto (o 'delectare') e as emoções que desencadeia no destinatário (o 'movere') estão sempre ao serviço de uma intenção catequética e moralizante (o 'docere')" (aut.cit.). Esse duplo propósito reveste-se na edição francesa de 2000 - e agora, nesta, portuguesa, de 2004 - de um aspeto ainda mais deleitoso, pela opção de ilustrar os dois grandes volumes da obra com reproduções da grande pintura italiana do século XIII ao século XV, de Duccio e Giotto até Masaccio ou Piero. A obra agora editada é um "livro de arte" fabuloso, uma espécie de "riquíssimas horas" da cristandade medieval e do primeiro Renascimento, que junta ao prazer da beleza literária o da beleza pictórica, tão belos os textos quanto as imagens, gloriosamente reproduzidas. É um livro de imagens, é um livro de textos. O segundo é um dos mais belos textos medievais conservados. As primeiras levam-nos a percorrer a história da pintura (pintura italiana) entre os céus de Fra Angelico e as tebaidas de Uccello, para escolher dois de mil exemplos. "Movere"? "Docere"? Não o nego. Mas estes dois volumes, que a Mónica e a Sofia me puseram no sapatão, são, para mim, sobretudo, objeto de deleitação. Como diria o João César Monteiro, se fosse vivo, "que de leites!".
3 - Leites há muitos, como é de supor em obra que dá à Virgem e ao Menino tão abundante iconografia. Mas o líquido mais escorrente desta obra singularíssima é o sangue, já que a palma do martírio, ainda mais do que a da virgindade, foi a mais frequente via de acesso à eterna felicidade. Quem quiser ler um tratado de sado-masoquismo, encontra-o também nesta obra. Exemplo supremo é a fabulosa história da morte do mártir São Tiago Interciso, a quem cortaram todos os dedos da mão direita, depois todos os dedos da mão esquerda, depois todos os dedos do pé direito e depois todos os dedos do pé esquerdo. Como ele sempre bradasse: "Este é o maior dia da minha vida! Hoje irei para o Deus forte!", os carrascos cortaram-lhe o pé direito e a seguir o pé esquerdo. Depois as mãos, depois os braços. "Os algozes já desfaleciam, pois suavam a retalhá-lo desde a hora prima até à nona do dia. Mas, de novo, abriram-lhe a perna esquerda e extraíram-lhe o músculo até à coxa." E Tiago Interciso rezava: "Senhor Soberano ouve-me que já estou meio morto (...) Não tenho dedos para Tos oferecer nem mãos para estender para Ti. Os meus pés foram cortados e os meus joelhos destruídos. Assim, não consigo ajoelhar-me, pois sou como uma casa que vai ser demolida, porque já não tem colunas que a sustentem.
Escuta-me, Senhor Jesus Cristo, e tira a minha alma do cárcere. Ao dizer isto, aproximou-se um dos algozes e cortou-lhe a cabeça." Mas o corpo é um cárcere traiçoeiro. Quando a escolha se põe entre libertar a virgindade ou libertar o espírito, a opção é ainda mais dolorosa.
É o dilema da Virgem da Antioquia, celebrada a 28 de abril.
Determinavam os ímpios que a virgem ou sacrificasse aos ídolos ou se prostituísse num lupanar. "Que farei? Hoje, ou serei mártir ou virgem. Ambas as coroas me seduzem. Contudo, onde se nega o autor da virgindade também não se reconhece o nome da virgem. Mas como poderei ser virgem, se venerar a meretriz? Como serei virgem, se adorar o adúltero? (...) Portanto, mais vale ter o espírito virgem do que a carne. Se for possível os dois, será bom. Se não, seja casta para Deus, embora não para o homem. Raab foi prostituta, mas depois acreditou em Deus e encontrou a salvação. E Judite tornou-se adúltera para agradar a um adúltero. Mas porque fazia isto pela religião e não pelo amor, ninguém a julgava adúltera (...). Porque se Judite tivesse preferido a castidade à religião, perdida à pátria, teria também perdido a castidade (...). Julgai vós e vede se ela teria ou não podido adulterar o corpo, já que nem a voz adulterou (...). Virgens de Deus, fechai os ouvidos porque levam a virgem de Deus para o lupanar; mas abri os ouvidos, ó virgens de Deus, porque, embora a virgem possa ser prostituída, nunca poderá ser feita adúltera."
Mil e uma noites nos foram contadas assim. Não é muito de espantar que as nossas noites de hoje ainda sejam como são. Mas, agora, o que interessa é abrir e fechar os ouvidos e os olhos às maravilhas destas lendas de ouro. Há quanto tempo eu esperava que um livro destes viesse ao meu encontro! Ele chegou, forrado de azul e de encarnado.
por João Bénard da Costa 14 de janeiro 2005 in Público
1. Apetecia-me começar este texto sobre o último filme de Bergman comentando uma frase de Liv Ullmann que li algures: "Filmes e pessoas não envelhecem da mesma maneira." É tão certo. Mas, como os críticos portugueses acentuam, quase invariavelmente, o retorno do mesmo Bergman como um regresso da casa dos mortos (alguém que já tinha uma lápide em cima e vibrante elogio fúnebre e que, de repente, reapareceu algo obscenamente, quebrando a lousa por sua própria mão), reprimo o apetecimento. Se há coisa que me apetece ainda menos é entrar em polémicas, ao falar de um dos filmes mais desmedidamente belos alguma fez feitos. O filme mais intenso, o filme mais suave, dessa intensidade e dessa suavidade a que Julia Dufvenius (uma das muitas imensas surpresas de "Saraband") se refere, quando, no princípio do seu primeiro diálogo (ou monólogo) com Liv Ullmann, lhe fala do que o pai lhe exige para interpretar a sonata op. 25 de Hindemith (Cena 2). Deixo, pois, essa conversa de tempos e de velhos, para apenas reter dela o que na cena 9 Liv Ullmann diz a Erland Josephson, quando o compara a um personagem de um filme antigo. Erland Josephson reage à notícia da tentativa de suicídio do filho (Börje Ahlstedt, que em tempos foi o tio Carl de "Fanny e Alexandre") com comentários de uma maldade desmedida. Desse filho que agoniza no hospital, após tomar todos os comprimidos que tinha e não tinha (onde é que eu já ouvi isto?), cortar os pulsos e a garganta, não crê na morte. "Quem falhou tudo na vida, até no suicídio vai certamente falhar." Ela não o reconhece em tamanha crueldade. E usa então a comparação citada. Em que filme estaria ela a pensar? É bem possível que num filme de Bergman, onde o Deus Aranha teceu fios equivalentemente perversos. Mas se tudo neste filme de Bergman reenvia a outros filmes de Bergman (quase se poderia citar a filmografia completa), nenhum filme me pareceu menos um filme antigo, e obviamente não estou a pensar no digital HD que não menosprezo mas também não sobrevalorizo. Há muitos anos que não via um filme tão novo, um desses filmes que parece reinventar tudo e onde tudo parece acontecer pela primeira vez. Deixem-me apenas que vos diga que não percebo que se fale de um silêncio quebrado, 21 anos depois da estreia de "Fanny e Alexandre". É verdade que Bergman disse, à época (1982), que não voltaria a filmar. Já o tinha dito antes, muitas vezes, e quebrou a promessa. Como a quebrou, em 1983, com "Depois do Ensaio" e com "O Rosto de Karin"; em 1986, com "Os Dois Bem-Aventurados", e com o documentário sobre "Fanny e Alexandre"; em 1997, com "Na Presença de um Palhaço"; em 2000, com "Os Construtores de Imagens". Foram filmes para a televisão e não para o cinema? Mas não foi esse também o caso de quase todas as suas obras desde "Lágrimas e Suspiros", em 1972? Não foi esse o caso, nomeadamente, de "Cenas da Vida Conjugal", de que alegadamente "Saraband" seria a continuação? Bergman que o disse também o desdisse e não bastam nomes idênticos para idênticos atores (Liv Ullmann/Marianne, Erland Josephson/Johan) para concluir por essa solução (as filhas de então não se chamavam Sara e Martha, como agora se chamam). Essa questão é irrelevante, como é irrelevante o tempo do pousio, se acaso o foi. Prefiro passar à nova música.
2. É verdade que nem sequer o é. O lugar central ocupado pelo quarto andamento da quinta "Suite para Violoncelo Solo", de Bach, já existira em "Lágrimas e Suspiros", para não falar da omnipresença da segunda suite na chamada "trilogia de Deus". Mas, desta vez, em que Bach não está sozinho e traz consigo Bruckner e Brahms, Alban Berg e Hindemith, "Saraband" é título e título de uma obra a que Bergman chamou "um concerto grosso para quatro instrumentos". Sarabanda - Concerto grosso. Andamos pelo barroco, quando a dança perdeu as conotações lascivas que levaram à sua proibição na Espanha do século XVI, para se tornar uma vagarosa e solene dança processional. No filme, conserva-se a lascívia (discretíssima, mas perturbantíssima, na relação incestuosa entre Börje Ahlstedt - Henrik, o filho de Erland Josephson - e Julia Dufvenius - Karin, a filha dele - com quem o pai partilha a cama e a quem beija sofregamente na boca. E sem querer insistir (até porque Bergman só é elíptico quando quer), para mim um exemplo fulgurante de imagem lasciva é aquele plano sublime (só possível graças à imagem digital) em que, no fim da Cena 6, Karin se vê sozinha no ecrã todo branco, com o violoncelo entre as pernas, ponto luminoso perdido na distância, parecendo surgida de um filme de Michael Powell. Sexta cena. Sex. Posso bem estar a delirar, mas essa cena batizada "A Proposta", passada entre um avô de 86 anos (a propósito, Erland Josephson tinha 80 à data da rodagem, 86 era a idade de Bergman) e uma neta de 19, é, sem dúvida, a mais erótica do filme. Toda vestida de encarnado (da única vez que se veste assim, roubando a cor a Liv Ullmann) cercada pelos sons altíssimos da 9ª de Bruckner, Karin, antes de entrar no escritório do avô, controla cuidadosamente a aparência e vestes, e avança depois, sem que ele a ouça, até o despertar com um beijo e uma vénia. O avô lê-lhe então a carta da proposta (o convite do maestro russo para uma carreira de solista) e oferece-se para lhe pagar os estudos e o violoncelo digno de um Guarnerius. Como sempre, é mais um monólogo do que um diálogo e pouco ou nada Karin responde à tentação altíssima. O avô despede-a, após a conversa sobre Freud e os cigarros, a pretexto de muito cansaço e é então que Karin tem essa autovisão, essa espécie de dissonância na composição da sequência, de que outros exemplos sumamente heterodoxos abundam durante o filme. Mas não me consigo despedir desta música sem citar outra dessas dissonâncias, a mais brutal porque é a primeira. É a meio da Cena 2, entre Liv Ullmann e Julia Dufvenius, quando esta conta àquela a sua violenta cena com o pai. Subitamente, saímos do quadro e vemos (no que não é um "flash-back") a dita cena intensamente física. Depois, a rapariga foge de casa, em camisa de noite, percorrendo a floresta como a virgem da fonte, até entrar na água escura de um pântano e desaparecer da imagem, sem que a câmara se mexa. Ouvimo-la, então, em "off", num uivo desmedido, até reaparecer no plano. Jean Michel Frodon, comentando essa cena, fala de morte e ressurreição. E diz: "Nunca, talvez, se tenha mostrado esse duplo acontecimento extremo - morte e ressurreição - de maneira tão poderosa. Nem no cinema, nem no teatro, nem na pintura." Tem razão.
3. "Concerto grosso para quatro instrumentos". Atores há cinco, mas quatro preenchem quase todo o filme. Um prólogo, em epílogo e dez cenas. Mas nas cenas nunca estão mais do que duas personagens, exceto nas dissonâncias aludidas. Mas há muitas outras personagens ausentes. E uma há que, retomando uma designação antiga, eu poderia dizer, sem dizer nada que não tenha sido já dito e redito, que é a "protagonista ausente" desta obra. Falo de Anna, a mãe de Karin, a mulher de Henrik, que morreu de cancro dois anos antes de o filme começar. Dela, temos recorrentemente, em casa do marido, em casa do sogro, o retrato a preto e branco. Amou-a o marido, amou-a a filha, amou-a o sogro e não parece que nenhum deles tenha amado alguma vez mais alguém. Foi o "anjo" naquele "ninho de víboras"? Tudo e todos parecem dizer que sim, única presença de amor feita, única presença feita para o amor. Ela só parece ter estado de lado daquela origem que Erland Josephson misteriosamente nomeia, quando comenta, na Cena I, a beleza da paisagem que o rodeia: "O mundo é pleno de belezas. Como deve ser bela a origem delas!" Ela só parece assemelhar-se ao São João que repousa no colo de Cristo, na ceia medieval da igreja da cena V e que Liv Ullmann vem ver de perto, no fim dela, única cena de onde o grande plano esteve ausente. Mas será verdade? Quando Henrik termina o seu longo monólogo na cama com a filha (cena 3) vemos-lhe o retrato em grande plano. E há um breve efeito (outra vez o vídeo), em que os olhos do retrato parecem disparar uma luz luciferina (um encarnado tão rápido, mas não mo tirem) sobre a filha e o marido no leito conjugal. Muito depois (cena 7), vem a leitura da carta que Anna deixou ao marido, sobre a relação dele com a filha. Essa carta é carta salvadora ou carta de perdição? Pelo menos, a partir dela tudo se consome. Karin, que resistira à proposta do avô, não resiste ao convite de Abbado, a sarabanda da Suite não chega a ser tocada, e Henrik suicida-se sem que a filha o saiba. E é depois (cena IX) que surge a sequência genial da hora do lobo, em que Erland Josephson, numa "diarreia de angústia", irrompe pelo quarto de Liv Ullmann, para, nu, se deitar junto ao corpo também nu da ex-mulher de 63 anos (a propósito, a idade real de Liv Ullmann à data da rodagem). Parecia que o filme não podia crescer mais? Mas há ainda o epílogo. Como no prólogo, Liv Ullmann dirige-se à câmara (dirige-se a nós) e, numa última dissonância, assistimos ao seu encontro com a filha catatónica, que, por breves momentos, abre os olhos como que respondendo ao afago da mãe. "E, pela primeira vez, nas nossas duas vidas, percebi, senti, que tinha tocado na minha filha. Na minha criança." O ecrã fundo em negro. O filme acabou.
4. Eu não consigo acabar sem vos fazer uma pergunta. Alguma vez pensaram que o grande plano é a única figura da gramática do cinema que só no cinema existe e que não é concebível em qualquer outra arte? Pintores pintaram grandes planos, mas o quadro impede-nos de os ver como tal, a não ser que encostemos a cara à tela, em movimento nosso e não da pintura. Não é maneira de a ver, não é movimento suposto ao espectador. Mas a câmara pode o que o nosso olhar não pode. E a câmara de Bergman pode mais que qualquer outra câmara, mesmo a de Griffith. Neste filme, vai ainda mais longe. Ao acercar-se mais e mais dos quatro rostos e das quatro vozes, para além dos corpos, dá-nos a ver almas. Impossível? Não para esse génio de todos os possíveis, chamado Ingmar Bergman.
por João Bénard da Costa 21 de janeiro 2005 in Público
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA A MATA DO SOLITÁRIO
1. Faz tempo que não nos víamos. A 27 de agosto, bem avisei que nas próximas cinco semanas não ia haver eu. Mas prometi que voltava a 8 de outubro, "se Deus quiser". Temente a Ele, não posso dizer que foi Ele quem não quis (embora a conversa desse pano para mangas). Eu é que preguicei mais um bocado. Cumprir prazos nunca foi o meu forte nem a minha reputação. Para quem deu pela minha falta, aqui ficam as minhas desculpas.
2. Por onde é que eu andei? Tirando um saltinho a Veneza, para festejar em corpo e alma o segundo Leão de Ouro do meu querido Manoel de Oliveira (em 1985, nessas duas espécies, festejei o primeiro, contava ele apenas 76 anos e já libertava as almas cativas) fiquei-me pela Arrábida como é meu setembral costume. Mas, contra todos os costumes, consegui a proeza de não sair de lá entre 13 e 30, dezassete dias bem contados. Fui de retrato em retrato, como em próxima crónica contarei, andei pelas praias e nadei pelos mares, com a mercê do calor. Não se deve ser mal agradecido, mas prefiro, a estes verões póstumos de 2004, os setembros de antigamente, quando às 6 da tarde o tempo se fazia mui fresco e apetecia passear pela serra, bem sabendo embora que "em setembro, às 8, já é noite". Nem sempre me lembrei, donde algumas "aventuras", dessas que tanto assustavam os crescidos e faziam a felicidade da minha neta Sofia, agora juntinha a M. de La Palisse nas muralhas de Pavia. Este ano não houve aventuras nenhumas e a noite mais perdurável foi aquela em que, chegado ao Beira-Mar (é um restaurante no Portinho), me não apeteceu muito nenhum dos peixes que constavam da ementa. "Apetece-lhe salmonetes?" perguntou-me o simpático Lousão, dono do dito. Que sim ou como não, respondi-lhe em bom português, desse só aparentemente contraditório. Pediu-me dez minutinhos, o tempo de um copo. Acabado ele, apareceu-me com uma rede de salmonetes vivos, ainda a saltar, como aqueles que apareciam, nos anos 40 ou 50, à porta da cozinha da Vila Raul, noite dentro, trazidos pelos pescadores. Pedir salmonetes num restaurante e eles não virem do frigorífico mas direitinhos do mar é coisa que pensava não me voltaria a suceder. Sucedeu mesmo e tenho testemunhas. Trinta anos depois da revolução, a doçura de viver ainda existe. E salmonetes como os da Arrábida, não os há em nenhuma outra parte do mundo.
3. Volto do mar para a Serra. Num dos raros passeios deste Verão, tornei à Mata do Solitário, no vale entre o Monte do Guincho e a Serra do Risco. "Mata das bruxas", chamava-lhe a minha Mãe, quando éramos pequenos e continuei eu a chamá-la para os meus filhos e netos. Entre os adernos, os olhados, a aroeira e os grandes carvalhos e medronheiros, é uma das matas mais gloriosas da Arrábida e nunca ouvi a palavra floresta (como essa onde se perderam o Polegarzinho, o Joãozinho ou a Guidinha) que não a visse na minha frente, estivesse onde estivesse. Em miúdo, era capaz de jurar que vira mesmo bruxas por lá, depois do sol se pôr e antes da lua nascer. Vindo de Alportuche, onde então morava, onde agora moro, era um passeio pequeno, bem próprio para crianças. Estrada acima, nesse lado que, mais tarde, me ajudou a perceber o que era o lado de Guermantes, andavam-se uns dois quilómetros. Depois, a entrada na mata por um carreirinho do lado esquerdo da estrada, uns metros adiante de um centenário carvalho, que tem fama de já ter dado sombra ao Senhor D. João V, quando o Duque de Aveiro lhe oferecia uma batida aos javalis. Dez minutos, não mais, bastavam para chegar a uma vasta clareira, no coração do vale, sobranceira ao mar. Chamávamos-lhe (chamamos-lhe) o Calhau do Frederico, mas o termo é mal aplicado. O Calhau (termo da região para designar uma armação de pesca) ficava lá em baixo, junto ao mar e à Lapa do Peixe-Homem, a das águas mais verdes que já estes meus olhos viram. O caminho continua da clareira para o mar e dá mesmo o único acesso por terra ao tal Calhau. Só que essa segunda etapa já não fazia parte dos nossos passeios de criança, pois que, como o outeiro do Canto IX, era bastante mais fácil de descer que de subir e nem mesmo possantes adultos se achavam com força de nos trazer às cavalitas, de volta dos penhascos. Frederico porquê? Porque o dono da armação era um tal Frederico Fernandes, que também deu nome a um Poço na Charca ("Quem por este poço passar / e uma pedra não deitar / nunca mais se há de casar") e tinha uma lenda assaz curiosa. Fixou-se na Arrábida (no Portinho, zona de que era proprietário) cerca de 1870, aos vinte anos, época em que, para além dos pescadores, devia ser o único morador da região. Tinham-lhe diagnosticado uma tuberculose e pouco tempo lhe davam de vida. Segundo a fábula, curou-se na Arrábida, onde viveu até quase aos 90 anos. De cada vez que se aventurava até Azeitão tinha uma hemoptise. Regressado aos seus calhaus, os pulmões deixavam de lhe sair pelas goelas, se bem me lembro do meu José Duro, e ficava rosado como uma maçã reineta. A minha Mãe descrevia-mo como um velho alegre e prazenteiro, de cabelos e barbas muito brancas. Depois da morte dele, a armação ficou ao abandono e o ciclone de 41 acabou por a destruir. Mas os alicerces eram bem visíveis e quem saiba ainda pode detetar restos deles. Agora tudo está muito diferente. O caminho, só mesmo quem o conheça bem ainda é capaz de o achar e a clareira está reduzida a metade (ou nem isso) porque a vegetação rasteira cresceu imenso e quase a cobriu. Mesmo assim, continua a ser um sítio mágico, entre as duas colinas escarpadas e o mar vagarinhoso cá muito em baixo. Não se vê viv'alma nem sítio onde a mão do homem tenha posto o pé. Prolongando tradições ancestrais, tenho por hábito pedir aos miúdos que se calem e ouçam o silêncio. Este ano, a minha neta Maria, quando depois lhe perguntei o que o silêncio a fizera escutar, respondeu-me: "Os anjos." Não me admirava nada.
4. A mata chama-se do Solitário porque, segundo a tradição, nela viveu, no século XVII, um minorista que aí construiu habitação. O local era propício, pois muito próximo fica uma das raras fontes da Arrábida (a água é rara na Serra, devido à estrutura calcárea), a chamada Fonte do Solitário. Havia (se procurarem bem ainda há), mas está quase intransitável, um caminho que a ligava ao Convento, pois que os monges também se abasteciam ali. Minorista chamei-lhe, em consonância com as fontes mais fiáveis. Mas também ouvi dizer que era santeiro (da escola de olaria de Paio Pires) e curandeiro. E como as lendas na Arrábida são como as cerejas (que é coisa que lá não há) dizem-no ainda conspirador, envolvido na conjura de 1641 contra D. João IV, esse que levou à degola o marquês de Vila Real, o duque de Caminha, o conde de Armamar e D. Agostinho Manuel, entre vária outra gente de menos algo. O santeiro conseguiu fugir a tempo e refugiou-se na Serra da Arrábida. Até por razões políticas, o sítio não foi mal escolhido. A serra era pertença da casa de Aveiro, que os Filipes tinham sempre tratado com sumo favor. O 4º Duque, D. Raimundo, como sua mãe, a Duquesa de Torres Novas, D. Ana Manrique de Lara, aos quais se deve o Convento Novo e o maior fausto dos arrábidos, não escondiam simpatia pelos espanhóis em rocambolescas histórias (talvez justifiquem muitas das construções da serra, se as chamadas ermidas foram edificadas para fins militares e não pios) que duraram até 1666 e passaram pela execução em efígie de D. Raimundo, em 1661.
Seja como for, o Solitário terá estado bem acompanhado na Arrábida, sem temer delatores. Prosperou a ponto de aí fazer a tal casa, exercendo a sua arte em imagens para o novo Convento e sarando as gentes de Azeitão, que até à Mata viajavam pelo caminho do Regato, atravessando os Casais da Serra (esse caminho ainda existia quando eu nasci). Terá ali vivido entre 1641 a 1666. Um belo dia, desapareceu. Ou foi finalmente descoberto e pagou o crime antigo (é a versão mais plausível) ou foi engolido pela Serra, que tem fama de ter feito desaparecer muita gente. Esta ultima é a história mais popular e a que explica o nome da Lapa do Médico, gruta situada próxima do caminho entre a Fonte e o Convento. Quando a dita Lapa foi descoberta, algures no século XVIII (a habitual história do pastor que demandava ovelhas tresmalhadas) diz-se que, no fundo dele, foi achado um esqueleto. Existindo ainda memória do desaparecimento do Solitário, logo houve quem pensasse que as ossadas eram as dele, promovido na toponímia de curandeiro a médico, o que a evolução da ciência ajuda a explicar. Hoje, tudo isso (quero eu dizer, os restos materiais disso) desaparecem aos poucos, em meio à incúria a que a serra foi votada e de que já falei em crónicas pretéritas. Das ruínas da casa do Solitário, onde quer eu quer os meus filhos tantas vezes brincámos (ainda tinha paredes e tetos nos anos 60) já mal se advinham vagos restos, só possíveis de alcançar com as roupas esfarrapadas. Da última vez que o tentei (e já lá vai uma meia dúzia de anos) demorei uma tarde para chegar da Fonte do Solitário à Lapa do Médico, o que antigamente se fazia em vinte minutos, com uma perna às costas.
Desapareceu, assim, uma das minhas aventuras favoritas da Serra. Conduzir "estrangeiros" até à entrada da gruta e vê-los recuar, aterrorizados, perante um buraco no chão por onde mal cabe um corpo humano. Quem vence o temor é compensado pela sucessão de galerias, estalactites e estalagmites, de enfilada até aos catafúndios, aí uns 100 metros abaixo do nível do solo. Mas ai de quem se aventure nela sem lhe conhecer os meandros e sem luz de sobra. Entrará, mas não sairá, a não ser eventualmente em esqueleto, como o Solitário da Mata, que, só por acaso, ou porque há Deus, não desapareceu já toda num dos incêndios como o de julho deste ano. Na Mata do Solitário, sinto-me cada vez mais solitário. "Alone with my memories", como dizia o Groucho Marx no "Room Service". Assim se passou um Verão de Setembro augustinado e de ocasos singulares.
por João Bénard da Costa 15 de outubro 2004, Público
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA RETRATOS PREMONITÓRIOS
1. Regressado da Arrábida (ando agora muito cronológico), o meu primeiro ato "oficial" foi receber Hanna Schygulla, a atriz de Fassbinder, convidada pelo Festival Temps d'Image para um espetáculo no CCB, onde de resto não fui, salpicado por alguns filmes dela exibidos na Cinemateca. Passou de raspão ("Storia di Piera") e vi-a de raspão, porque Deus põe e o homem dispõe, ao contrário do que por aí se diz. Mas, à roda de um copo, a propósito já não sei bem de quê (é mentira, lembro-me muito bem), citou ela alguém que se espantava com o humano pudor que leva a ocultar o sexo mas a exibir a cara, "a coisa mais nua que todos temos". A frase valeu o encontro, porque nunca me tinha posto o problema em tais termos. É certo que nem todas as culturas tratam o rosto com despudor, mas as que o ocultam são literalmente mal vistas. Ou é sinal de repressões intoleráveis (as mulheres nos países islâmicos, as "burqas", para não vir mais perto e recordar os véus das viúvas que ainda são do meu tempo) ou de disfarce intolerável. "Embuçado nota bem / que hoje não fica aqui ninguém / embuçado nesta sala", para ser tão trivial quanto possível.
Mas é bem certo que quem vê sexos não vê corações e quem vê caras os vê, já que hoje me deu para contrariar lugares-comuns. Só os não vê quem não quer ou não sabe ver e quase todos somos razoavelmente cegos. Lembro-me da pergunta de Sophia quando alguém se lhe queixava de ter sido bem enganado por fulano ou sicrana. "Mas nunca lhe viu a cara?" Regra geral não viram, que o diabo é sempre tão feio como o pintam, pelo menos a partir da idade em que cada um tem a cara que merece e não aquela com que nasceu. Tão nua como a cara, só a voz. É verdade que tudo num corpo é revelação e que dos pés à cabeça (com especial importância para as mãos) pode-se desvelar muita coisa. Já conheci especialistas de tudo, até de umbigos e de tornozelos, e não me custa a admitir que haja sexos intoleráveis, mas Hanna Schygulla tem razão. Nua nua só a cara e nudíssimos nudíssimos só os olhos e a boca. Isso a que se chama expressão e que é sempre o que faz a maior impressão.
2. Há uns tempos, referi-me, numa destas crónicas, a um retrato de Tiziano, atualmente em Filadélfia, que me foi revelado por Jean Louis Schefer. Representa o arcebispo Filippo Archinto, e mostra-o com o rosto semicoberto por um véu. Na altura, pensei que o prelado tivesse um defeito qualquer que essa forma de representação ocultaria. Muito mais sabido em coisas de iconografia do que eu, Schefer desenganou-me. Tiziano queria apenas significar que o arcebispo já tinha morrido quando ele o pintou, já que os mortos, se mantêm por algum tempo isso a que se chama expressão (e que nunca ninguém conseguiu explicar convincentemente o que seja), perdem-na rapidamente (por isso mesmo, tão pouco tempo são expostos). Cobrindo parcialmente a eminência, Tiziano deu-nos a ver "la mort au travail", o que acontece aliás com qualquer retrato, suspensor do tempo e não seu veículo.
Curiosamente, é para isso mesmo que os retratos existem. Porque, desde as civilizações das múmias, se acreditou que o retrato prolonga a vida da pessoa retratada, que viveria enquanto essa sua imagem vivesse.
Num livro recente sobre os retratos na história de arte (uma luxuosa edição da Giunti) fala-se do "jus imaginum", privilégio que na antiguidade só detinham as famílias da nobreza, que, de resto, o continuaram a ter, mesmo que não baseado em qualquer lei escrita, até aos fins do século XVIII e ao advento do "terceiro estado". Só quando se inventou a fotografia, "toda a gente" passou a ser retratada e, mesmo assim, muito gradualmente, já que entre os meados do século XIX e os meados do século XX, só a burguesia se fazia retratar nos Institutos Photographicos ou no Amer da Rua do Ouro. Resta saber se a invenção da fotografia foi causa ou consequência, como se foi causa ou consequência dela que a pintura abandonasse a figuração. Conversas largas que para aqui, hoje, não são chamadas.
3. Mas esse livro dos retratos encontrou em mim campo fértil. Como citava, com alguma abundância, textos de Hawthorne e de Gogol sobre retratos mágicos ou sobre a magia dos retratos, passei parte das férias a ler tais textos, que são somente alguns dos muitos do demonismo romântico, bebido em Hoffmann e nos sonhos das almas românticas, culminando eventualmente no "Là-Bas" de Huysmans, esse livro a que Verlaine chamou "épastrouillant", termo que não consigo traduzir, como não consigo traduzir Mallarmé quando ele fala de "cette vaine, perplexe, nous échappant, modernité".
Mas ainda antes de voltar às imagens fixas, não resisto a contar-vos no que dão imagens movediças. Em "Là-Bas", como eventualmente saberão alguns, a torre da igreja de Saint-Sulpice em Paris (que, aliás, Huysmans execrava) tem um papel importante, através da figura capital da mulher do sineiro e dos seus cozidos à francesa. Pois me sucedeu que o livro que a esse se seguiu, em leitura de Verão, foi "La Lutte avec l'Ange" de Jean Paul Kauffmann, que mão amiga me fez chegar, e onde tudo se passa na dita igreja, partindo do fresco célebre de Delacroix que tem o título do livro e que, até hoje, me foi única razão para visitar Saint-Sulpice. Páginas não eram lidas, descobri que a igreja está na moda, devido ao famigerado "Código Da Vinci", que nisso, como em tudo, vigariza a propósito da famosa meridiana, que, parece, justifica hoje a entrada de multidões ululantes, em busca dos segredos da vida perversa de Jesus Cristo e Maria Madalena. Livro que até li, para poder argumentar com conhecimento de causa às dúvidas metafísicas de descendentes e ascendentes, que tomaram a sério as "revelações" do autor, nestes tempos de vale-tudo. Não será nos próximos meses que poderei decidir, em paz e sossego, quem viu melhor a igreja onde baptizaram Sade: se Huysmans, na sua embirração, se Kauffmann nos seus ditirambos. Mas se quiserem saber de mim, neste Verão, procurem-me entre eles, Hawthorne e Gogol. E, obviamente, nos retratos.
4. A eles volto. Em Hawthorne (que não conhecia Gogol, mas certamente conhecia o Hoffmann de "Doge e Dogoressa", ou Tieck, ou Chamisso ou Goethe) no fabuloso conto "Prophetic Pictures", que já croniquei por aqui, o retrato não funciona como prova do génio de um artista mas como sinal da maligna fatalidade de um "guilty medium". A pintura é um símbolo poético no duplo retrato do pacífico casal Walter e Elinor Ludlow, retrato que se transforma com o tempo, dando a ver ocultos terrores e subterrâneas ferocidades, onde inicialmente só se viam plácidas belezas e jovens nubentes.
Walter, bem avisado fora pelas velhas senhoras de Boston que os retratos do pintor podiam ser proféticos, e que este, depois de tomar posse de um rosto e de um corpo humanos, os podia pintar em qualquer situação futura. Mas Elinor tranquilizou-o: "Mesmo que ele tenha tais magias, há qualquer coisa tão doce nos seus modos que tenho a certeza que as usa bem." Mas foi o pintor quem viu a nudez toda da cara deles e não Elinor, que a viu coberta por uma ilusória doçura. Nas posteriores visitas ao quadro, ambos notam que este, sendo o mesmo, era já outro. Elinor olhava o noivo com ânsia e terror. "Is this like Elinor?" "Compare a cara dela com a cara que eu pintei." E, só nesse momento, Walter reparou que a expressão de Elinor era exatamente a expressão do quadro e que, se este fosse um espelho, não teria captado melhor olhar de tanto pavor. Elinor, absorta, nem ouve o diálogo entre o pintor e o marido. Mas, quando acorda do torpor, volta-se para Walter e pergunta-lhe por sua vez se ele não se acha mudado. "That look! How come it there?"
Depois, o quadro muda todos os dias, até à última visão, quando Walter esfaqueia a mulher e o "retrato, com as suas tremendas cores, finalmente ficou terminado".
"Não haverá uma profunda moral neste conto?", termina Hawthorne, bem à sua maneira, tão inquietante quanto distanciada. "Quando vimos o resultado de uma, ou de todas as nossas ações, surgir diante de nós, alguns chamar-lhe-ão Destino e fugirão apavorados, outros mergulharão ainda mais em desejos ocultos. Mas ninguém poderá afastar-se dos RETRATOS PROFÉTICOS." Em Gogol, a maldição é traduzida por um retrato que dá a todos os que o possuem, primeiro a maior glória e, depois, o desespero total. E o que torna o quadro reconhecível são "uns extraordinários olhos" e "uma estranha expressão". Gogol invoca todos os grandes pintores do Renascimento que, à época do conto (1843, o mesmo ano da publicação de "Prophetic Pictures") eram os mais valorizados pela crítica novecentista: Tiziano, Rafael, Guido Reni, Leonardo, Rubens, Van Dyck. Todos eram ultrapassados pelo pintor que possuía o quadro mágico e que pintava com verosimilhança e verdade jamais alcançadas. Mas esse "dom" era efémero e continha a própria maldição. Esta só é esconjurada na narração final. Quando o último proprietário se prepara para destruir o quadro, o quadro desaparece. E "todos ficaram ali, por largo tempo, sem saber se tinham visto realmente aqueles olhos extraordinários ou se se havia tratado de uma ilusão que por momentos lhes toldava a vista, fatigada por tão longo exame de quadros antigos".
Em Gogol, existe porventura uma intenção moralizante (o tema do artista que vende a alma ao diabo, no fundo o tema do "Dorian Gray" de Wilde, que talvez encerre, em literatura, esta estranha genealogia, retomada, nos anos 40 do século XX, pelo cinema de Hollywood). Mas, em Hawthorne, a pintura é necromancia e a pessoa pintada transforma-se na criatura do pintor. Em ambos, o cerne é o perigo da nudez exposta ou o perigo do que essa nudez expõe ao pintor. Nenhum retrato existe. Só existe a visão do pintor. E deixo-vos a olhar, uma vez mais, "Lucrezia Panciatichi", de Bronzino, minha tão incerta secretária de premonição. Já viram mulher mais vestida? Já viram mulher mais nua?
1 - A 11 de agosto de 2001 - poucas horas antes de um dos mais duros telefonemas da minha vida -, na Alte Pinakothek de Munique, o Jorge fez-me reparar que o "descanso na fuga para o Egipto", um dos temas mais recorrentes na pintura ocidental entre o século XV e o século XVIII, não era referido por nenhum dos Evangelistas. Estávamos diante de um óleo pintado sobre cobre, assinado por um pintor que só muito vagamente me dizia alguma coisa: Adam Elsheimer. Um cobre de pequenas dimensões (31x41) mas que, mesmo de longe, saltava aos olhos. Saltava aos olhos? Dez anos antes eu visitara essa Pinacoteca - mítica para mim, desde a mais remota infância - e não me lembrava de o ter visto. Devia estar tão aturdido com a imensidão das telas que há quarenta e oitos anos me esperavam - longa, longuíssima noite - que Elsheimer me passou em claro ou me ficou em escuro. Ou então ainda não estava preparado para o encontrar. Acontece ou acontece-me.
Mas a 11 de agosto de 2001, não. O tema (já lá vou) costuma ser pintado à luz do dia ou à luz do entardecer. No óleo de Elsheimer (se há, não me lembro de outra representação semelhante) a Sagrada Família descansa à noite. Aliás, não é ela, quase toda no escuro, quem se impõe a atenção, embora esteja no centro da placa. Em noite tão cerrada, em meio a tão brumoso e manso bosque, duas fontes de luz convocaram-me primeiro. À esquerda, a fogueira acesa por uns quantos pastores, que ainda não repararam na aproximação dos foragidos, concentrados numa labuta mais tardia. À direita, a lua muito cheia, refletida nas águas de um lago, tão redonda no céu, onde acabou de nascer, como nas águas onde se começou a refletir. Só depois reparei numa terceira fonte que noctiluz. É uma tocha na mão de S. José, que provavelmente lhe serviu para guiar os passos do burrito, depois do escurecer e antes do nascimento da lua. Só então observei que, sem essa tocha, pouco visível e virada para o solo, nem veríamos a Virgem, que ele se prepara para ajudar a descer, nem o Menino que traz ao colo. O luar ainda não chegou até eles e grandes árvores, muito frondosas, interpõem-se entre eles e a fogueira dos camponeses. As copas das árvores formam uma diagonal que desce da esquerda alta, onde estão os pastores, até à direita baixa das águas do lago. Diagonal paralela à Via Láctea que se vê no céu. Mas a Sagrada Família vem da direita e seguirá para a esquerda, depois de passar a noite, ali, onde há água para beber e onde não se descortina sinal de perigo. O guia do museu pergunta: " Como não ver neste quadrinho as primícias do espírito romântico, onde ao homem apraz errar numa paisagem nocturna, transfigurada por uma paz idílica?". É bem possível que Caspar David Friedrich e outros românticos alemães se tenham inspirado nesta reproduzidíssima pintura. Mas o prodigioso jogo de luzes vem de Caravaggio, que Elsheimer tanto estudou e anuncia Rembrandt ou Claude Lorrain. Deixo essa conversa para mais logo, pois que, antes de falar do pintor, me apetece falar do pintado e regressar à fuga para o Egipto.
2 - O único Evangelista que refere essa fuga é São Mateus. Após descrever a visita dos Magos e antes de contar do massacre dos inocentes, diz: "Depois que partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o Menino e Sua Mãe e foge para o Egipto. Fica lá até eu mandar, pois que Herodes procura o Menino para o matar. José levantou-se, tomou de noite o Menino e Sua Mãe e retirou-se para o Egipto, onde ficou até à morte de Herodes. Assim se cumpriu o oráculo profético do Senhor: "Do Egipto, chamei o meu filho" (Mt. I, 2, 13-15). Mas o episódio do descanso, que tanto inspirou os pintores, não é referido. A inspiração veio-lhes de um apócrifo, o chamado Evangelho do Pseudo-Mateus, também conhecido como Evangelho da Infância. Nele se lê:
"Dois dias depois após a partida, aconteceu que Maria, no deserto, sofreu com o excessivo calor do sol e, vendo uma palmeira, desejou repousar um pouco à sombra dela. José apressou-se a conduzi-la até à palmeira e ajudou-a a descer da montada. Quando Maria se sentou, levantou os olhos para a folhagem da palmeira, viu-a carregada de frutos e disse: "Oh, se fosse possível que eu comesse os frutos desta palmeira!". José disse-lhe: " Mulher, o teu desejo espanta-me, pois bem vês como a palmeira é alta. Tu pensas nos frutos da palmeira, eu penso na água que começa a escassear nos nossos odres e não sei onde os encher para extinguir a nossa sede." Então, o Menino Jesus, sentado ao colo de Sua Mãe, a Virgem, disse à palmeira: "Árvore, inclina-te e reconforta a minha mãe com os teus frutos." Palavras não eram ditas, a palmeira inclinou-se até aos pés de Maria e, depois de colhidos os frutos que nela estavam, todos se reconfortaram. Mas após todos os frutos terem sido colhidos, a árvore continuou pendente e, esperando, para se levantar, ordens daquele que lhe tinha ordenado que se inclinasse. Então Jesus disse-lhe: 'Levanta-te, palmeira, fortifica-te e junta-te às árvores que possuo no paraíso do Meu Pai. Faz brotar das tuas raízes fontes ocultas, donde corra a água que nos sacie'. Imediatamente, a palmeira se levantou e das suas raízes brotou água límpida, fresca e dulcíssima". Se o texto serviu de inspiração, nunca foi tomado muito à letra, dada a heterodoxia da origem. Mas as palmeiras são árvores constantes em quase todos os "repousos na fuga para o Egipto", bem como fontes, lagos, riachos que não faltavam com água a quem tinha que atravessar desertos.
No cobre de Elsheimer, não há calor, há frio, mas não falta a água. Tudo demasiado mágico, demasiado onírico? Mas foi num sonho, mesmo nos textos canónicos, que foi dada ordem de fuga a José e ninguém nunca narrou perigos ou privações durante uma viagem que qualquer hebreu sabia ser árdua. Os pintores (quase todos) deixaram em elipse as peripécias (dragões, feras, a história que faz remontar à palmeira mágica a ideia da palma do martírio) mas guardaram visões postas em sossego, isentas de angústias mas não de encantamento.
3 - Lembrei-me de tudo isto, folheando o último número da "FMR", na nova fase da revista, agora que Franco Maria Ricci a abandonou. A nova diretora - Marilena Ferrari - teve a ideia de consagrar esse número a uma antologia dos melhores textos nela publicados. Entre eles, está um de Yves Bonnefoy, consagrado também a Elsheimer. Fala-se muito da Fuga para o Egipto, mas o quadro que detém o autor, não é esse mas aquele que se chama a Irrisão de Ceres e que está no Prado. O tema não é bíblico mas buscado às "Metamorfoses" de Ovídio, tão constante origem dos pintores dos séculos XVI e XVII como os textos bíblicos. Também tem que ver com um repouso, também tem que ver com a sede, e também é uma visão noturna. Ceres, filho de Saturno e Reia, engendrara de seu irmão Zeus, Prosérpina, que lhe foi roubada por Hades, Senhor dos Infernos. Ceres não se conformou e correu mundo em busca do filho. Uma noite chegou a um pobre tugúrio e pediu de beber à velha dona dele. Esta dá-lhe uma bilha com água, que a deusa, avidamente, leva à boca. Só que, nesse momento, um rapazinho, figurado todo nu, "de rosto fechado e agressivo" - 'duri puer oris et audax' - começou a fazer troça da sofreguidão da mulher.
Ceres, posta em irrisão, vingou-se e transformou-o num lagarto que se escondeu sob as pedras. Comenta Bonnefoy: "Passado o tempo da religião romana, nada nesta história faz muito sentido. Mas foi escrupulosamente preservado na pintura. Porquê? Porque uma história a que o ouvinte não pode conferir sentido imediato, é sempre uma história de sonho (...) Sonho noturno, esses infindáveis feixes de símbolos de significados indecifráveis. Elsheimer quis fazer aparecer o que é inerente à atividade onírica, mas que, até ele, tinha sido negado, censurado, por todas as formas de busca espiritual. Quis registar, e depois indicar que há um simbolismo específico do sonhador, rebelde ás categorias do saber oficial e até mesmo capaz - quem sabe? - de lhe subverter os fundamentos, supostamente baseados em Deus (...) "Na atmosfera antinatural do sonho (...) o que distingue Elsheimer de pintores como Carracci ou Caravaggio é alguma coisa de muito mais enigmático (...) essa coisa de que são feitas as imagens nocturnas, tão facilmente imagens de pesadelo. O pressentimento do inconsciente acompanha, em Elsheimer, a impressão que a realidade - ela também 'duri oris et audax' - se recusa aos sentidos que lhe queremos dar e não permite mais a esperança nessa unidade da alma com o Ser, que, durante tantos séculos, nos alimentou o espírito". Bonnefoy, no mesmo texto, vai ao ponto de dizer que Elsheimer antecipa as descobertas de Freud.
4 - Nunca vi - ou se vi não me lembro - o quadro de Madrid. Mas seja a noite de Ceres, à porta de uma cabana, seja a noite da Virgem no descanso na fuga para o Egipto, a perturbação é semelhante. A emoção provocada por símbolos que não podemos perceber e por imagens cujo nexo nos escapa. Uma beleza com que se pode sonhar mas que jamais podemos identificar como existente. De que pintor estou eu a falar? De um alemão que nasceu em Frankfurt em 1578, que aos vinte anos se fixou em Veneza, que em 1606 se converteu ao catolicismo em Roma, onde viveu dez anos, até morrer, aos 32 anos, em 1616.
Quando ele morreu, Rubens, que fora amigo dele, escreveu a um amigo comum: "Toda a nossa profissão devia vestir-se de luto (...) Deu-nos coisas que nunca havíamos visto e que não veremos nunca mais."
Munique. O telefonema. A lua, o fogo e a tocha. As águas paradas do lago. A Fuga para o Egipto. O sonho de José. A palmeira inclinada. As fontes subterrâneas. A irrisão de Ceres. A sede de Ceres. O rapazinho nu a rir. Adam Elsheimer. Estou a falar do que vi, do que li, ou estou - eu também - a contar-vos um sonho, "un rêve si noir, mais avec toujours quelques feux ici ou là sous les arbres"? Não façam caso. Ou antes: façam um caso.
1. Por que é que se volta repetidamente a certos lugares que, de viso próprio, nunca escolheríamos? Por que é que se malogram sucessivamente visitas a outros certos lugares, tanto e há tanto tempo desejadas? São duas perguntas sem resposta ou com a mesma resposta que não obtemos quando nos perguntamos o que nos leva a encontrar sucessivamente quem não buscámos nem buscamos ou a desencontrar, com a mesma irregularidade, aquela ou aquele que procurávamos e procuramos. Os acasos têm as costas largas e eu sou daqueles que nunca acreditou na dimensão delas. O que tem que ser tem muita força e raramente se acha força que a contrarie. Lembrei-me disso, em Rimini. Como julgo que já expliquei aqui uma vez (com a idade, a gente repete-se) Rimini nunca foi cidade que eu buscasse. Ora (cf. Público, 8 de novembro de 2002, "Fellini de Rimini") por duas vezes em dois anos seguidos me achei nessa cidade, por obra e graça do mesmo Fellini, cuja obra nunca foi da minha graça. Basta o Templo Malatestiano para obrigar alguém como eu a visitar essa cidade? Basta. O elefante e a rosa. Alberti e Piero. O galgo branco e o galgo negro. A imaculada conceição do Renascimento, necessitas, commoditas, voluptas. Mas não eram coisas minhas, antes de as ver, e eu raramente vejo o que antes não era já meu. Só agora sei que um dia seria. E só agora sei que quando "voei" de Alberti para Bramante e do Templo de Sigismondo para as cúpulas de Santa Maria delle Grazie (é mesmo Grazie, caríssimo Manoel de Oliveira) fiz o "raccord" mais perfeito que se pode fazer entre os cumes do renascimento arquitetónico italiano. Mas não é do Tempietto que hoje vou falar, pois que até a repetição tem limites. Desta vez, embora tenha ganho muito do meu tempo entre o galgo negro de Piero e os rabinhos redondos dos mil "putti" de Isotta degli Atti, os meus passos levaram-me para o museuzinho da cidade, onde eu sabia que podia ver um Bellini que antes muito vira (uma Pietá com anjo cor de rosa). E eis que, de súbito, nessa sala, se me atravessa uma estátua de Santa Catarina (a de Alexandria, não a de Sena) datada de 1410 e atribuída ao "Mestre da Anunciação Dreicer" que não sei quem foi, mas, me soube a Dreyer. É uma estátua de pedra branca com vestígios de policromia. Não é muito alta (1 metro e 30) mas, como a colocaram em cima de um plínio de 40 cm, a cabeça dela ficou quase à altura da minha. Veste um longo manto de pregas que a cobre inteiramente do pescoço aos pés (nenhuma carne visível) e usa uma cabeleira de anjo muito encaracolada. Mas o que me hipnotizou foi o sorriso, um sorriso inenarrável, sossegadissimamente meigo e sossegadissimamente desafiante. Tão desafiante era que, aproveitando o facto de estar sozinho na sala, me aproximei para lá de todos os critérios aconselhados pela mais benevolente segurança. Os olhos da estátua são daqueles que olham frontalmente quem frontalmente os olha a eles. Um dos olhos é cego ou ficou cego de tanto ver. O outro, pelo contrário, olha todo, olha tudo. Assim, quase "cheek-to-cheek", fiquei colado a ela. Ninguém nos interrompeu. Numa vasta sala, solitária e gelada, o meu vulto e o vulto dela, ficaram de corpo-aberto, benzedeiros e videntes, como se diz dos corpos onde entrou um espírito, que dentro dele fala. Como Quinto Fábio Pictor quando foi a Delfos consultar o oráculo e inquirir dos meios mais adequados para alcançar favores divinos. Hawthorne, que como ninguém sabia destas coisas (ele me deu ou dará o título "Proféticas Imagens") falou de experiência semelhante em "The Marble Faun". Sinais de alma que, no mundo, só algumas mulheres têm. E algumas estátuas e alguns quadros. Como a minha - a de Bronzino - Lucrezia Panciatichi, que há seis décadas me vela e me desvela, "Amour Dure-Dure Amour", Madonna do Futuro, Madonna do Passado, como, antes de mim, para Henry James já fora. Como Milly Theale reencontrada.
2. A fotografia, desde os tempos imemoriais em que eu brincava com retratos avoengos de Mniz Martinez, com moradas na Rua de Serpa Pinto n.º 66 e no Largo da Abegoria 4 ou da Helios Photos, com moradas na Avenida da Liberdade 158 ou na Rua de S. José 209 A; a pintura, desde os tempos mais memorizáveis em que abri as Janelas Verdes; tinham-me dado visões semelhantes. A pedra ou o mármore, jamais. A tal ponto que essa estátua dreyeriana (não é gralha) se me sobrepôs à "morbidezza e diligenza" (Vasari o disse, que raramente se enganou) dos vários Malatesta que estão aos pés de S. Vincenzo Ferreri, na pala com o nome do Santo, que é a obra máxima exposta no museu. Ghirlandajo a pintou em 1493, quase cem anos depois de esculpida a Catarina, e, muito mais impressivos do que os Santos adorados (além do "protagonista", os inseparáveis São Sebastião e São Roque) são os adoradores: Pandolfo IV Malatesta, que foi o último senhor de Rimini (tão fraco guerreiro como bom negociante, pois que por duas vezes vendeu a cidade que não conseguiu defender) a mãe, Elisabetta Aldobrandini, a mulher, Violante Bentivoglio e o irmão Carlo. Todos eles, luxuosissimamente vestidos e com a raça imaginável pelos apelidos, não sendo retratos autónomos (figurantes ajoelhados da cena supostamente sacra), em pouco espaço, se volvem para a expressão ideal a que só a "alta immaginazione" pode aceder. Ninguém olha ninguém. Ou seja, não se olham uns aos outros nem olham os santos. Mas é da perna, fugazmente nua, do pestífero São Roque, que desce a carne que os torna tão palpáveis e frementes. Pensei na implausibilidade (para não dizer impossibilidade) de um nariz como o de Pandolfo, a começar quase no meio da testa e a seguir retilíneo quase até à boca, um nariz quase tão soberbo como o do Medicis de Botticelli ou o do Montefeltro de Piero. Na noite desse mesmo dia, jantei com uma italiana que tinha um nariz quase igual. Em Itália nunca se sabe se é a natureza que copia a arte ou se é a arte que copia a natureza. Provavelmente, nem uma nem outra coisa. Os retratos são a mais imaginosa das nossas memórias, ou as mais perduráveis imaginações nossas.
3. Não estou a dizer nada que não tenha sido dito e redito. Só que nos esquecemos de o lembrar. "Nothing, in the whole circle of human vanities, takes stronger hold of the imagination than this affair of having a portrait painted. Yet why should it be so? The looking glass, the polished globes of the andirons, the mirror-like water, and all others reflecting surfaces, continually present us with portraits, or rather ghosts of ourselves, which we glance at, and straightway forget them. But we forget them only because they vanish. It is the idea of duration - of earthy immortality - that gives such a mysterious interest to our own portraits" ("Dentre todas as mundanais vaidades, nada tem mais forte poder sobre a imaginação do que esta coisa de possuir um retrato pintado. Porquê? Porque é que isso acontece? Os espelhos, as vítreas placas das salamandras, a água e todas as superfícies refletoras continuamente nos oferecem retratos, ou, melhor dito, espectros de nós próprios que olhamos de relance e imediatamente esquecemos. Mas só os esquecemos porque desaparecem. É a ideia da permanência - da imortalidade terrena - que confere tão misterioso interesse aos nossos próprios retratos"). Perdi tempo e espaço a citar o texto de Hawthorne (outra vez Hawthorne) no original inglês e na aproximativa tradução portuguesa? Não, não perdi. Ganhei-o. Porque a repetição - como a permanência - estimula a memória e com ela a imaginação. Aprende-se isso no cinema ou com o cinema. Um dos primeiros teóricos dele - Giambattista della Porta - escreveu em 1602 (quase trezentos anos antes dos comboios de Lumière) que "a memória mais não é do que uma pintura inteira, guardada nessa mesa animada a que chamamos cérebro". Ars riminiscendi. Não julgo preciso explicar-vos quem nos ensinou que tudo o que fazemos não é mais do que lembrarmo-nos. E lembro-me do nariz de Pandolfo, do "azul profundo, quase noturno" de Bellini, da cor maléfica "do sumo de papoula" da Lucrezia de Bronzino, do galgo negro nascido das costas do galgo branco de Piero. E lembro-me mais e mais do sorriso evanescente e do olhar húmido da Santa Catarina, única imagem que aqui vos deixo, sabendo que não a vereis como eu a vi, "tremendo com todo o corpo" como Plutarco disse que Cassandro tremeu ao ver a imagem de Alexandre, tempo depois de Alexandre morto. Uma última imagem? No retrato de Van Eyck, dito de Timoteos, que hoje está na National Gallery em Londres, lê-se a inscrição "Leal Souvenir". Penso que tudo quanto disse sobre a imagem, a memória e a imaginação, pode caber nessa expressão. E penso - parecendo que não - que tudo quanto vos confiei foram recordações leais. Não mais, não menos.
João Bénard da Costa in Público, 21 de novembro de 2003
"... la douce folie de parler avec des fantômes durant la moitié de sa vie" Jean Louis Schefer
1 - Desde 1997, Jean Louis Schefer manda-me, com regularidade, os livros que publica e que, nestes quase sete anos, são já 19. Tudo começou, andava eu de cadeira de rodas, quando ele veio a Lisboa, num Julho suave, para apresentar 20 filmes a que chamou "imagens efémeras e inquietas". De imagem em imagem, fomos conversando efémera e inquietantemente. Havia de quê, já que juntar a história do homem que minguou tanto que se transformou num verme ("The Incredible Shrinking Man", Jack Arnold 1957) à Paixão de Cristo ("Ato da Primavera", Manoel de Oliveira, 1963) ou à Ressurreição da Carne ("Ordet", Carl The Dreyer, 1955) não parecia coisa muito ortodoxa, nem muito sossegada.
E, numa certa tarde de Sintra, à ida ou à vinda de Seteais, pensei estar diante do homem certo para me acompanhar num desafio que há muito eu tinha comigo mesmo. Organizar um ciclo sobre "Cinema e Pintura", que fosse tudo menos o costumeiro desfile de filmes de quadro na boca (género dessa "Rapariga com Brinco de Pérola" que anda por aí a extasiar tanta gente) ou de filmes de pintores, com pintores ou sobre pintores. Julgo que ele percebeu mais ou menos o que eu queria dizer na minha (não era fácil) e aceitou o convite à viagem. Até a ideia se concretizar, num nevoento seminário no Convento da Arrábida, em Novembro de 2001, e numa missanga de mini-ciclos de nove em renge durante o ano de 2002, foi a minha vez de ter muitas surpresas. Às duas por três, achei-me metido numa "academia de segredos", em que o segredo para se ser académico era estar nas boas graças do Sumo Sacerdote, obviamente o próprio Schefer. Para meu grande espanto, vi-me mesmo transformado em personagem de ficção nos capciosíssimos diários dele, chamados "Main Courante". Um dia contarei a pele que ele me fez vestir, associando o fantasma da infanta de Oscar Wilde ao de "une toute jeune fille", que entrou na sala enquanto eu contava a história do tal anão. Adiante, que eu próprio vivo mais no imaginário dos outros do que nas memórias minhas, com culpas repartidas. Mas, agora, que há um certo tempo não o vejo e há um certo tempo lhe devo notícias (tarda a sair o livro das minhas pinturas e dos cinemas dele), Jean Louis Schefer voltou a bater-me à porta. Com força.
2 - Publicado pelas Editions Enigmatic (estão a ver?) chegou um livro que, se se não chama "A Casa Encantada", chama-se "Uma Casa de Pintura" ("Une Maison de Peinture").
Schefer socorreu-se do camaleão de Tertuliano, esse bicho "que tem a virtude de mudar completamente sem deixar de ser o que é", para fazer desfilar em reproduções de qualidade desigual, mas todas oriundas de fabulosos originais, uma espécie de "museu bem pouco imaginário", onde, em grandes páginas, lado a lado, se "reorganizam por simpatia, malícia ou ingenuidade", museus bem reais, propondo associações que mais têm que ver com afinidades emocionais do que com escolas, épocas ou autores. A pintura tem um lugar predominante, mas as associações não são apenas entre quadros. Cristalografias e celestografias de Strindberg, baixos-relevos dos Templos de Luksor, pavimentos das Catedrais de Chartres, de Amiens ou de Otranto, o fresco do Mergulhador de Paestrum, fotografias de Deakin (o retrato de Bacon com as postas de carne) o pré-histórico "Painel dos Leões" da Gruta de Chauvet, desenhos de escritores, juntam-se à "perpétua instabilidade da pintura" na edificação desta singular casa-livro com paredes de papel.
Livro que cristaliza um velho sonho meu, livro que as "Metamorfoses" de Jorge de Sena anunciaram (agora percebo porque é que Schefer tanto me pediu esses poemas, de que lhe falei), livro que me confirmou na certeza de que nós próprios somos a mutação ou metamorfose maior de todos estes fantasmas. Fantasmas das salas escuras e dos museus velhos, fantasmas que não são nosso duplo, mas nosso uno.
3 - Os 164 fantasmas invocados por Schefer - ou convocados para a casa de Schefer - vêm de todas as épocas. Já me referi à pré-história e ao Egipto. Podia ter citado os frescos bizantinos da Moldávia ou um mural românico de Saint-Savin sur Gartempe ("A Arca de Noé"). Depois, de Giotto a Bacon, muitíssimos foram os escolhidos. O mais representado é Goya, porventura por ter sido quem mais buscou monstros no sono da razão geradora. Há associações estupendamente evidentes como a que aproxima o "Study after the Human Body" de Bacon ao inadjectivável retrato do Arcebispo Filippo Archinto, do Museu de Arte de Filadélfia, que havia jamais visto, por e para vergonha minha. Em Bacon, um homem nu, de costas, acaba de atravessar um cortinado violáceo e transparente, mas tudo é tão seco e áspero que se dissolve qualquer diafaneidade; em Tiziano, o véu do cortinado, cobrindo apenas a metade esquerda do corpo sentado do arcebispo (pomposamente vestido e enquadrado acima dos joelhos) deixa ver muito mais dele do que a metade desvelada. Não o obscurece, ilumina-o, ao mesmo tempo que lhe transforma a carne (a mão esquerda pousada no colo), numa espécie de caveira ou de máscara mortuária, em que mais avultam os espaços negros entre os dedos do que estes, como se fosse disforme mão, mão que podia ter sido pintada por Bacon. A fantasmagoria repassa do nu de Bacon para o excesso de indumentária do príncipe da Igreja e a alquimia da aproximação opera o mesmo milagre que tanto conhece quem conhece museus: do "São Jorge e o Dragão" de Uccello para a "Anunciação" de Filippo Lippi, no National Gallery de Londres, da "Salomé" de Cranach (aliás, uma das reproduções do livro) para o "São Jerónimo" de Dürer no Museu das Janelas Verdes.
Mas há associações (e são as mais numerosas) que só se descobrem após muito ver ou que passam de página para página: do sexo que o "Grand Nu Rose" de Picasso (do MOMA) esconde pudicamente com as mãos, passa-se para o que a "Maja Desnuda" de Goya nos oferece. Entre eles, vê-se o Bellini de Besançon ("A Embriaguez de Noé") em que sempre tive as maiores dúvidas sobre qual ou quais dos três filhos do Patriarca cobrem com o manto de seda rosa as vergonhas do pai (esse velho estranhíssimo, de longas barbas brancas e corpo de adolescente efeminado) ou se todos o estão a desnudar, na expectativa perversa de ver finalmente aquilo que todos fixamente olham.
4 - De qualquer modo, para quê tantas palavras quando visões não tenho nenhuma para vos dar, à exceção da que aleatoriamente escolhi e que não é nenhuma destas: o desenho de Miguel Ângelo, a lápis preto sob papel, chamado "O Sonho da Vida Humana", que se conserva nas Courtauld Institut Galleries.
É estulto o meu propósito, como são estultas tantas palavras? Demasiado sei que sim e demasiado sei que não. Sim, porque o leitor não tem acesso aos fantasmas de Schefer nem aos meus e não tem diante dos olhos, como eu tenho, essas aparições e essas metamorfoses. Não, porque à leitura outros fantasmas - pelo menos assim o acredito - virão avejar em vosso redor, por muito diversos que sejam das figuras fantásticas que ora evoco. Como escreve Schefer: "Deve ser do museu, como da coleção que formamos na ideia, como de biblioteca. Nada se segue por necessidade. Mas tudo se adiciona segundo uma ordem imprevisível. Em labirintos estamos." E em labirintos, por hoje, não mais me aventuro, que para a próxima cá estarei de novo, com outros desses fantasmas com quem falei mais de metade da minha vida.
Mas não vos deixo sem vos contar o sonho do Dilúvio, sonho de liquefacão (sonho do "Mergulhador" de Paestum), sonho final ou sonho inicial, quando viemos dos fantasmas ou para os fantasmas voltarmos. Albrecht Dürer o sonhou e assim contou:
"Em 1525, na noite de quarta para quinta-feira depois do Pentecostes, tive, durante o meu sono, a seguinte visão: numerosas e fortes trombas de água caíam do céu.
A primeira chegou à terra, a quatro milhas de mim. Com terrífica potência e imenso estrondo, esmagou-se no solo e inundou as planuras. E foi em mim um tal terror que despertei antes que outras trombas tombassem. Mas as trombas que tombavam tão fortíssimas eram como as da visão que tivera. Umas longe tombavam, outras tombavam perto, de tão alto vindo que se me afigurava que lento era o seu tombar. Mas, quando a primeira tromba que atingiu a terra chegou mui cerca de mim, tombou com tal rapidez, acompanhada de tanto vento e de tanto estrépito, que me atemorizei a tal ponto que, despertado, todo o meu corpo tremia e passou longo tempo antes que recuperasse o ânimo. De manhã, ao alevantar-me, pintei tudo isso tal como o havia visto."
No que Dürer pintou não ficou representado qualquer corpo. Apenas céus, nuvens, água e terra empapada. Schefer ensinou-me que alguns sustentaram provir a palavra "forma" do grego "orama", que é "orai", ou seja "eu vejo".
Enquanto outros disseram que a palavra derivava de "morpha" por "morphé". Morfeu é, como se sabe, o filho do Sono e da Noite, o irmão de Fantásios e de Fobétor, aquele que dá os sonhos aos homens. Representavam-no com asas de borboleta e tendo na mão um ramo de papoilas, dessa espécie a que também se chama malícia-de-mulher. Voltei ao princípio: doces folias.
João Bénard da Costa 7 de fevereiro de 2004, Público
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA SOPHIA: MEMÓRIA – 2 DE JULHO DE 2004
1 - Começa a ser sina. De cada vez que me afasto, em peregrinações minhas longamente preparadas, toca o telemóvel com uma notícia terrível. Munique, agosto de 2002, Cumes, maio de 2003, Génova, julho de 2004. Mortes ou outras coisas que sabemos. Sabia que iam acontecer. Esperava-as. Mas não ali, onde parecem tão súbitas, tão sozinhas, tão desamparadas como se eu não fizesse falta nenhuma. "Por isso eu escrevi" - escreveu-me Sophia há mais de sete anos - "Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo." E esse poema continua: "Mal de te amar neste lugar de imperfeição / Onde tudo nos quebra e emudece / Onde tudo nos mente e nos separa." É isso que faz mais medo: a mentira, a separação. Já não vale a batota das palavras.
2 - Era o dia - aqui o recordei - em que passaram cem anos sobre a morte de Tchekov. A seguir a um almoço muito tardio numa fruste esplanada de madeira, subi e desci ruas quentes e íngremes até uma igrejinha românica (fundada no século VII, reconstruída no século XII) chamada Santa Maria di Castello. Lá, num claustro evanescente, está pintado um fresco representando a Anunciação. Data de 1451 e é obra de um tal Justo da Alemanha (sic) de quem nunca ouvira falar. Sob ogivas, um grande arco de volta inteira cobre o Pai e o Espírito Santo, no tecto de um espaçoso quarto. A Virgem, de pé, de manto azulíssimo e mãos cruzadas sobre o peito, está à direita, submissíssima. À esquerda, o arcanjo, dourado e muito mais volumoso, dá-lhe o Avé. Mas reparei que, ao fundo, do lado de Maria, existe um lava-louças. Da torneira salta um peixe. No fundo da bacia, meia de água, jaz outro peixe, morto. A simbologia crística do peixe é conhecida. Mas nunca a tinha visto figurada assim, em recapitulação tão elíptica e tão envolvente.
Não havia mais ninguém. Mas, quando me vinha embora, apareceu um padre. Perguntei-lhe se não haveria reproduções. Disse-me que sim e pedi-lhe duas, uma para mim e outra para oferecer. Deu-mas e recusou qualquer pagamento. Da igreja desci até ao Vico dei Giustiniani. Virei à direita, depois à esquerda e cheguei ao Duomo, consagrado a São Lourenço, que, segundo a lenda, teria sido assado vivo naquele local ("Virem-me do outro lado, que eu deste já estou assado"). A fachada, construída entre os séculos XIII e XV, em mármore policromado, é magnífica. O interior, muito modificado, bastante mais pesado. Depois, desci para o bairro medieval e para o porto. Ao fim da tarde, o calor horrível começou a abrandar e perdi-me nas ruas estreitíssimas e de casas altíssimas, onde só havia sombra. Foi nelas que, pela primeira vez, me lembrei conscientemente de Sophia e daquele poema (do "Mar Novo") que se chama "Marinheiro sem Mar", e que é sempre um dos meus favoritos dela. "Todas as cidades são navios / Carregados de cães uivando à lua / Carregados de anões e mortos frios." E mais adiante (deve ser um dos poemas mais longos de Sophia, que, em toda a história da literatura portuguesa, ninguém excedeu no verso curto): "E sobe por escadas escondidas / E vira por ruas sem nome / Pela própria escuridão conduzido / Com pupilas transparentes e de vidro / Vai nos contínuos corredores / Onde os polvos da sombra o estrangulam / E as luzes como peixes voadores / O alucinam." Foi a pensar em Sophia que cheguei, já começava a entardecer, à Piazza San Matteo, a mais bela e perfeita praça de Génova, onde as casas de Branca Doria ("'lo credo' diss'io lui, 'che tu m'inganni; ché Branca Doria non mori unquanche/ e mangia e bee e dorme e veste panni'", disse Dante ao irmão Alberigo no Canto XXXIII do "Inferno", antes de amaldiçoar os genoveses, "uomini diversi") de Lamba Doria (vencedor da batalha de Curzola) e de Domenicaccio Doria abrem alas de rosa e branco para o verde pálido da Igreja de San Matteo e dos mosaicos da fachada dela. "Como é estranho não saber", disse Sophia no último verso dos nove "Poemas de um Livro Destruído", poemas que Sophia conservou inéditos por mais de vinte anos. Ali, sentado no chão, nos degraus da casa de Lamba Doria, em frente da igreja (já fechada) eu julgava saber alguma coisa. Suadíssimo, descamisadíssimo, sentia uma grande paz e não havia vivalma ao meu redor. Por isso, apanhei um susto quando o telefone tocou (esqueço-me sempre de o desligar). Uma espécie de mau presságio. Mas era um banal recado da Cinemateca, pormenores de programação. Estranhei não me irritar com a interrupção e, enquanto olhava, (olhava sempre) mantive uma longa conversa, com instruções para mudar o filme A para o dia Z e o filme Z para o dia B. Tudo muito calmo, muito quotidiano, como se estivesse à secretária da Barata Salgueiro. Depois de desligar, deixei-me ainda ficar muito tempo por ali, muito longe de maldizer os genoveses ou de pensar no Cócito. Nenhuma vontade de fazer mal a alguém por cortesia. Se houvesse na praça um restaurante, tinha jantado por ali, para ver como a noite lhe ficava. Não havia e por isso dei ordem às pernas para o que lhes queria: regressar ao hotel, tomar um bom banho, mudar de roupa e voltar a sair para jantar bem.
3 -Foi quando cheguei ao hotel, bastante esfalfado, já tinha na mão a chave do quarto, que o telefone voltou a tocar. Desta vez, nenhum sobressalto nem nenhuma surpresa. Era o meu genro Pedro. Demorei uns segundos a reparar no tom grave da voz. A Maria, filha da Sophia, tinha telefonado a pedir que me avisassem, que eu gostava de saber. Desisti dos meus planos e fiquei no hotel, numa grande casa de jantar quase deserta. Tentei falar com a Maria ou com os irmãos, mas não consegui. Também não consegui falar com a pessoa em quem mais pensava. Começaram, sim, a falar gentes dos jornais, a pedir comentários, "depoimentos" (o que eu odeio os jornalistas nessas alturas!). Inevitavelmente, pensei no poema de que toda a gente se lembrou quando ela foi morta. E ouvi-a distintamente, como no velho disco de 45 rotações que havia lá em casa, dizer: "Outros amarão as coisas que eu amei." Estúpida vaidade, ou o contrário disso, pensei que, naquela tarde em Génova, 2 de julho de 2004, eu teria sido um dos primeiros desses outros, pois que certamente Sophia amou, ou teria amado, o fresco do claustro de Santa Maria di Castello ou a Piazza San Matteo, se acaso os viu, se acaso os visse.
4 - Mas será verdade, como Sophia tão fundamente acreditou, que tudo continuará "como se eu não estivesse morta"? "Será o mesmo brilho, a mesma festa / Será o mesmo jardim à minha porta"? Vezes sem conta discuti isso com Sophia. Para ela, "sempre a poesia foi uma perseguição do real". Quando recordou a "maçã enorme e vermelha" "poisada em cima de uma mesa", "num quarto em frente do mar" (e era a coisa mais antiga de que ela se lembrava), não recordou "nada de fantástico" "nada de imaginário". "Era a própria presença do real que eu descobria." Por isso, cem vezes ou mais, na sua poesia, associada à morte, surge essa crença na continuidade do real, independentemente dela ou de qualquer humano. "Também morre o florir de mil pomares / E se quebram as ondas no oceano." Ou: "Um dia quebrarei todas as pontes / Que ligam o meu ser, vivo e total / À agitação do mundo do irreal / E calma subirei até às fontes." Cito ao acaso, de memória. Podia citar mil poemas em que ela diz o mesmo. Mas para mim (e a questão é filosófica e tão velha como os primeiros filósofos) esse radical realismo é-me estranho. Sophia ou Génova, para não sair do tema desta crónica, só são ou foram reais quando e enquanto me foram aparições. "Quando o meu corpo apodrecer e eu for morto" não estou nada certo que Sophia e Génova continuem como continuam hoje, porque eu estou vivo e eu me lembro delas. Um amigo observou-me um dia, a propósito de uma destas crónicas do PÚBLICO sobre Itália (era sobre Lecce), que eu não escrevia sobre Lecce escrevia sobre mim, como se, perdido eu, Lecce deixasse de poder ser vista como eu a vira. Tem toda a razão. Foi assim e é assim. Sem mim, não sei de eu. Isto não significa - muito ao contrário - que eu não acredite na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna, amém. Esta crónica, bem lida, é um dos múltiplos sinais. Mas só a fé que tenho em não desaparecer me faz acreditar que ninguém ou nada do que amei desaparecerá também. Se eu fosse ateu, poderia repetir, sem remorso ou vacilação, o "après moi le déluge". Não concebo qualquer real independente de mim. Como não concebo que o Kouros do Egeu seja para mais alguém, como foi para Sophia, "Sorriso sem costura / Inocência de caule / Retrato nu do liso." É verdade? É. Tão, tão verdade. Mas ninguém nunca mais inventará esses seis substantivos ligados por um único adjectivo. O mais longe que vou é ao que Sophia escreveu no mágico poema chamado "Veneza", do livro "Ilhas".
"Dentro deste quarto um outro quarto Como um Carpaccio nas ruas de Veneza Segunda imagem sussurro de surpresa E um pouco assim são as ruas de Veneza Em fundo glauco de laguna ou vidro E um pouco assim em nossa vida o duplo Espelho sem perdão do não vivido Caminha destinado a ser perdido
5 - Acima falei dos nove "Poemas de um Livro Destruído", que, escritos entre "Coral" e "No Tempo Dividido" (ou seja, entre 1950 e 1954, tinha Sophia trinta e poucos anos) só foram inseridos em 1985 na segunda edição do último desses livros. Sophia falou-me deles em 1969 ou em 1970 e disse-me que lhe faziam um medo enorme, porque lhe pareciam alheios, sendo dela como se não fossem dela. Pedi-lhe que me escrevesse aquele que começa com "Não procures verdade no que sabes" e, desde esse dia, guardo esse poema ao lado das imagens mais minhas, como o retrato dela em Agrigento que o Alberto lhe tirou. Em Génova, naquela noite, ouvia a voz dela, ouvia os poemas dela ditos por ela, e via-a a ela e à poesia dela. Tudo tão real quanto fantástico. Como ela o foi, como ela o é. Mesmo quando nada restar da poesia dela, mais do que um verso ou um fragmento. Não foi só isso que nos ficou de tantos poetas da Grécia antiga? Mas, porque outros os amaram como alguns amaram Sophia, esse resto é quanto basta. Porque "a arte é filha da memória". Sophia, eu lembro-me.