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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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JOÃO CABRAL DE MELO NETO: UM REINO MARAVILHOSO

 

“…E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.”
– João Cabral de Melo Neto, trecho de “Morte e Vida Severina”.

 

E relíamos “Morte e Vida Severina” na Igreja de Santa Isabel em evoluído diálogo com o nosso catequista e a orientadora da Profissão de Fé. Era um tempo em vários atos de verdadeira higiene ou conselho ao pensar possível na nossa idade, porque mais doce era aquele compreender em nós, orgulhosos de espreitarmos mundos de onde pouco ou nada escutáramos, cegos que eramos às mondas e às foices, e ao negro pardo ou hulha, ou ao carcereiro branco e o significado das vidas cangas em todos.

 

Um dia, saberão, diziam-nos

 

Morre-se um pouco ao ler, nasce-se um pouco ao entender

 

E olhávamos uns para os outros numa mímica de pergunta conformada pelo orgulho de estarmos a falar de quem sabia o que eram reinos maravilhosos, refreados, às vezes, pelos poderes que não conhecíamos bem ainda, mas que os não queriam por perto. Estranho! Atraente.

 

E lá me tocou a vez e disse o melhor que podia e alto: 

 

«De João Cabral de Melo Neto»

 

- Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?
- Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso de tais partidas, 
mas o que compro a retalho
é, de qualquer forma, vida.

 

E a orientadora virou-se para mim e perguntou

 

De que achas que falaste?

 

Instaurou-se um silêncio que escutava entre a minha incredulidade pela pergunta e o meu medo de não ter entendido nada

 

Entreolhei todos os meus colegas em busca da ajuda que não veio. E lá me fiz à resposta:

 

Acho que é como em casa. Uns dias só podemos estar com os amigos um bocadinho e um dia os pais não nos proíbem de casar e lá vamos nós meninas, de vez, fazer uma outra vida e sem eles proibirem nada, e a gente até pode nem querer bem aquilo, a não ser o vestido branco e as flores.

 

Olha, olha, disse o Luís, não é nada disso. João Cabral de Melo Neto é um poeta muito famoso e muito bom, ele até analisa o mundo e diz-nos o quanto uns têm tudo e outros são pobres e ninguém se importa, e faz poemas especiais sobre a sede.

 

Muito bem, Luís. Muito bem acrescentou o catequista!

 

Hoje leio neste livro de João Cabral de Melo Neto com chancela da Global Editora, São Paulo 2010 e com seleção de poesia de Antonio Carlos Secchin, inúmeros poemas deste poeta, que, continua exemplar às letras do mundo de hoje, exemplar à conduta literária de vigilância e eu nele segura também como quem descobriu o guiar-se pela contenção e, ao menos, uma parte, através da dicção do mar.

 

Eis um exemplo de tudo do seu reino maravilhoso

 

Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.

 

Teresa Bracinha Vieira