Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  
João Carlos Silva © Carmo Correia /Lusa 2008 


2. DA CIDADE DE SÃO TOMÉ A SÃO JOÃO DOS ANGOLARES


1. Após uma noite sossegada num hotel acolhedor, num quarto suficientemente espaçoso, bem posicionado e com uma vista encantadora, humana e marítima da capital da República Democrática de São Tomé e Príncipe, seguimos para sul, em viagem para São João dos Angolares. 

No percurso houve uma paragem em São Marçal, para ver uma escultura em madeira de jaca, alusiva à “Família”, na presença do autor, por entre ruas sem passeios, repletas de automóveis, motorizadas e pessoas, em movimentos contínuos de ar domingueiro, ouvindo-se música, observando-se homens a lavar viaturas, transeuntes de roupa lavada à mistura com algumas familiaridades africanas que os dias solares e o clima sensualizam.   

Aglomerado de pessoas, fora do comum, em Santana, causado por cerimónias fúnebres, penalizando o tempo da viagem, que tentámos recuperar, tendo-se atravessado, sem demora, Ribeira Afonso, onde magotes de lavadeiras esfregavam a roupa, deixavam-na a secar e, enquanto secava, lavavam a loiça na água corrente de que natureza é pródiga. São às centenas, desde as primeiras horas matinais até meio da tarde. 

Chegados a São João dos Angolares, há a impressão, à primeira vista, de um povoado proporcionalmente grande para o país, com placas toponímicas e de vária sinalética espalhadas pelo núcleo central e seus acessos, com o centro de saúde, o mercado e a escola, bem localizados e próximos. Num curto desvio e paragem, saboreámos a paisagem ao redor do espaço envolvente de um aprazível bar e restaurante, “O Mionga”, que significa “Mar”, no dialeto local.  Era hora do almoço e dirigimo-nos para a roça São João dos Angolares.     

2. Tem sido questionada, entre os historiadores, no contexto do debate sobre a origem dos angolares, a suposição maioritária de que São Tomé (e o Príncipe) era desabitada quando os portugueses lá chegaram. São tidos como um dos três grupos por que é constituída a população local, juntamente com os forros (crioulos nativos) e os tongas (descendentes de trabalhadores contratados). Quanto à sua origem, há três hipóteses que concorrem entre si.  

A mais antiga, acolhida e divulgada, diz que os angolares são descendentes dos sobreviventes de um navio de escravos oriundo de Angola, com rota para o Brasil, que naufragou nos ilhéus das Sete Pedras, na costa sudeste da ilha, no século XVI, posteriormente à chegada dos portugueses.  

A segunda alega que a ilha já era habitada pelos angolares aquando da chegada dos primeiros portugueses, sendo tidos como os habitantes autóctones, indígenas, nativos e originários de São Tomé, tese que foi oficialmente aceite pelos nacionalistas são-tomenses após a independência.     

A terceira e mais recente (das que conhecemos) defende que os antepassados dos angolares eram cimarrones, escravos fugidos nos séculos XVI e XVII, explicação largamente ignorada e recusada no país.  

Todas as hipóteses são contestadas, não reunindo, para os especialistas, factos históricos incontestáveis e incontestados. Quer se entenda prevalecer a tese do naufrágio, do nacionalismo que acarinha a hipótese da primazia africana ou se marginalize a teoria mais recente, é praticamente uníssona a não probabilidade de São Tomé ter sido habitada antes da chegada dos portugueses (a teoria da prioridade africana não é a mais consensual quanto à origem dos angolares).

Sobressai sempre, em qualquer caso, uma aura lendária e misteriosa em redor dos angolares, que permanece. 

3. Destaca-se na roça São João dos Angolares, um restaurante de cozinha de autor, de fusão entre o tradicional e o contemporâneo, que reinventa e inova, de João Carlos Silva, bem conhecido pelos programas televisivos de culinária Na Roça dos Tachos ou Sal na Língua. Um nome consagrado, à frente do criativo restaurante aí existente, que com arte e imaginação sonhou e concretizou, onde somos simpaticamente recebidos, num espaço de madeira onde pontua uma extensa varanda, com vista para a vegetação em redor, aí se singularizando a palmeira-leque. 

A anteceder o menu de degustação, é preciso passar pelo spa de boca. Há que tirar um gomo de cacau e chupar. Um grão de pimenta com um pouco de chocolate e mastigar. Segue-se a pasta de gengibre. E um copito de vinho. O pretendido é limpar o paladar de tudo, lavar o palato, depois comer, inovando com as capacidades medicinais das ervas e acréscimos de peregrinações gastronómicas.

Pode haver uma afrodisíaca omelete de micocó, ovas panadas com batata doce, atum de vinagrete, ceviche de espadarte com erva-mosquito, pimenta e coentros selvagens, feijoada à moda da terra, com choco e atum, preparada com pau-pimenta, micocó, óleo e fura-cueca, salada de papaia verde com erva-príncipe, mel e baunilha, abacate com azeite e gengibre, bolo de cuscus de mandioca, por entre o lavar o palato, provar, saborear, variar e recomeçar, até final.

O segredo não está apenas na frescura e na simplicidade, mas também na inovação e invenção, com um empratamento europeizado, mais acessível a turistas, num belo e apropriado espaço para aniversariantes (e não só), como pudemos testemunhar.   

A que acresce, como despedida, uma foto com o anfitrião, que prontamente se voluntariou, por maioria de razão ao lado de quem então me acompanhava e conhecia há vários anos.   

Pelo que lhe ouvi, em breve conversa, continua a sonhar, querendo realizar novos sonhos, o que não surpreende em alguém com visão, que tenta sempre e já concretizou vários planos, como pude constatar e observar.      

4. Findo o almoço, regresso à Cidade de São Tomé, com paragem na idílica e serena praia das sete ondas, tida como uma das mais bonitas da ilha.   

Nova interrupção na Boca do Inferno, resultado de um fenómeno natural, com uma ravina que as águas percorrem na direção de uma gruta, formando, em crescendo, ondas que com ressonância rebentam na rocha. No cimo, há um quiosque onde bebemos água de coco, com vista para o azul do mar.   

Houve ainda um desvio para a roça Água-Izé, com uma área residencial degradada e casas habitadas, ruas empedradas, armazéns, carris desativados, edifícios abandonados, entre eles o antigo hospital, de elegante e distinta arquitetura, a precisar de urgente recuperação, em frente do qual fomos abordados por crianças locais, que presenteámos e com algumas das quais nos fotografámos.       

Tida como a primeira roça a ter o cultivo de cacau em São Tomé (depois de introduzido na ilha do Príncipe), há nela, segundo o guia, uma cooperativa que o produz e emprega algumas dezenas de pessoas em permanência.   

Por fim, findo o percurso de regresso, chegada ao ponto de partida matinal.


11.10.24
Joaquim M. M. Patrício