Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A biografia de Egas Moniz, da autoria de João Lobo Antunes, permite-nos tomar contacto com um republicano humanista que em toda a sua vida acreditou no progresso social, nos direitos humanos e nas instituições baseadas na liberdade. (Egas Moniz – Uma Biografia, Gradiva, 2010).
LEMBRAR PERSONALIDADE MULTIFACETADA O primeiro Prémio Nobel de nacionalidade portuguesa é ainda desconhecido por muitos, apesar de ter tido uma intervenção importante no seu tempo, quer como médico e professor na sua especialidade, quer como político muito ativo e interveniente na I República, quer como ensaísta e estudioso da língua e da literatura e amante das artes plásticas. Foi, de facto, no seu tempo uma figura marcante, que hoje merece ser recordado nas diversas áreas e facetas em que desenvolveu atividade. João Lobo Antunes legou-nos uma obra fundamental, que é a primeira biografia de Egas Moniz, uma das mais fascinantes personalidades de cidadão e médico do século XX, a quem se devem contribuições científicas fundamentais: a angiografia, técnica que permite a visualização dos vasos cerebrais, e a psicocirurgia, o primeiro tratamento cirúrgico de certas doenças psiquiátricas, retomada nos tempos atuais, em consequência dos progressos tecnológicos mais recentes. Foi galardoado com o Prémio Nobel da Fisiologia e da Medicina de 1949, partilhado com o fisiologista suíço Walter Rudolf Hess.
DE UMA ESTIRPE MUITO ANTIGA António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz nasceu há 150 anos em 1874 em Avanca e formou-se na Universidade de Coimbra. Seu tio paterno e padrinho, o Padre Caetano de Pina Resende e Sá Freire insistiu que adotasse o nome de Egas Moniz em virtude de considerar que a família Resende descendia em linha direta de Egas Moniz, o aio do rei D. Afonso Henriques. A sua tese sobre “A Vida Sexual” tornou-se num bestseller quando foi publicada, conhecendo diversas edições. Em 1911 transferiu-se de Coimbra para a Universidade de Lisboa como Professor de Neurologia. Contudo, até 1919 foi sobretudo um político ativo, chegando a Ministro de Negócios Estrangeiros no governo de Sidónio Pais, depois de ter sido Embaixador em Madrid, tendo ainda chefiado a delegação portuguesa à Conferência de Paz de Versalhes no final da Grande Guerra. Foi fundador do Partido Republicano Centrista, dissidência do Partido Evolucionista de António José de Almeida, que se integraria no Partido Nacional Republicano (sidonista). Foi ainda escritor e autor de obras como "A Nossa Casa" e "Confidências de um investigador científico". Foi também autor de um ensaio de crítica literária de grande interesse: "Júlio Dinis e a sua obra" (1924), onde demonstra que o escritor se inspirou em personagens reais oriundas de Ovar na criação das figuras principais dos seus romances fundamentais "A Morgadinha dos Canaviais" e "Pupilas do Senhor Reitor". Egas Moniz também escreveu sobre pintura e reuniu uma coleção de pintura naturalista, atualmente aberta ao público na Casa-Museu Egas Moniz em Estarreja, onde se destacam obras de Silva Porto, José Malhoa e Carlos Reis, além de uma coleção de peças de louça, prata e mobiliário de variada proveniência, testemunho do seu grande interesse e apurado gosto pelas artes plásticas e decorativas. A 14 de março de 1939, aos 64 anos, sofreu um atentado no seu consultório, perpetrado por um doente mental, engenheiro agrónomo de 28 anos, que, numa crise de paranoia, alvejou o médico com oito tiros. Foram-lhe retiradas três balas, mas uma ficou alojada na coluna dorsal. Apesar da gravidade dos ferimentos, Egas Moniz recuperou por completo, sem qualquer sequela física.
Sobrinho do colaborador direto de Egas Moniz, Pedro de Almeida Lima, João Lobo Antunes disponibilizou-nos uma narrativa objetiva e crítica, para a qual dispôs de testemunhos diretos, de origem familiar, bem como de numerosos documentos e cartas inéditos. Temos acesso assim a elementos fundamentais para o melhor conhecimento de um português que foi um notável cidadão e político, um diplomata, um homem das letras e do mundo, um clínico de sucesso e um celebrado cientista, inesperado e improvável.
EXEMPLO FASCINANTE A biografia de Egas Moniz permite-nos, de facto, tomar contacto com um republicano humanista que em toda a sua vida acreditou no progresso social, no bem comum, na educação e na ciência, nos direitos humanos e nas instituições baseadas na liberdade, na igualdade e na fraternidade (Egas Moniz – Uma Biografia, Gradiva, 2010). Usando um nome heroico que lembrava as raízes antigas e originais da pátria portuguesa, alcançou a celebridade internacional, de que muito se orgulhava. A melhor homenagem que o saudoso João Lobo Antunes lhe faz é a de nos recordar uma personalidade multifacetada que, entre o muito que o interessava, não só foi premiado com o Prémio Nobel, mas, mais do que isso, foi um exemplar pedagogo e ensaísta, profundo conhecedor da língua portuguesa e respeitado até aos nossos dias pelos seus cultores. Morreu em 13 de dezembro de 1955.
«Ouvir com Outros Olhos» de João Lobo Antunes (Gradiva, 2015) contem um conjunto significativo de ensaios de um dos mais estimulantes escritores contemporâneos. Com «Um Modo de Ser», e outras obras onde a experiência do médico e cientista se associa à do humanista, estamos perante uma leitura indispensável, que nos abre novos horizontes de pensamento e de vida.
UM INTELECTUAL COMPLETO João Lobo Antunes era um intelectual completo. Como cientista e médico teve o reconhecimento, enquanto verdadeiro mestre que foi. Como cidadão empenhou-se nas causas nobres da construção de uma sociedade melhor, capaz de compreender os limites e a imperfeição. Como ensaísta e homem de cultura deixa-nos uma obra única, centrada na procura serena, complexa e multifacetada da dignidade humana. Numa palavra, faz-nos muita falta. Deixa um lugar praticamente impossível de substituir. O humanista pôs em diálogo efetivo a cultura e a ciência, salientando que a criatividade e a inovação correspondem a processos paralelos e semelhantes no intelectual, no filósofo, no artista e no cientista. «Ouvir com Outros Olhos» é uma reunião inesquecível de reflexões de uma extraordinária qualidade ética e cultural. Não esqueço o encontro com Fernando Gil, a ilustrar essa proximidade. E não compreenderemos as virtualidades da investigação científica nos dias de hoje se não a ligarmos à criatividade humana. Num tempo de crises e incertezas, não é demais salientar a importância crucial do ato inovador, que exige um diálogo efetivo entre cultura e ciência. Pode dizer-se que ao lermos a obra fecunda do ensaísta, descobrimos o homem na sua integridade – o que permite compreendemos melhor o fenómeno extraordinário da criação. As mãos do cirurgião e as do escritor procuram, afinal e sempre, o milagre do ser. E podemos aplicar-lhe, o que o próprio disse de um seu próximo, por laços familiares e por convergência de afinidades científicas – Pedro Almeida Lima: «viveu uma vida cheia, com um estilo que muitos invejaram e que se não aprende e só grotescamente se imita, cumprindo a obrigação moral que a sua inteligência lhe criara, mas também deleitando-se fidalgamente, com aquilo que fazia». E, nessa recordação, acrescentava não haver porventura maior bem-aventurança - invocando, com legítimo orgulho, o facto de o mestre lhe ter declarado um dia, quando ele fez uma intervenção cirúrgica no caso de uma doença do ramo que bem conhecia, que isso lhe dava certa satisfação por ser prova cabal «de que (o João) tinha algo do seu sangue»… Pode dizer-se que há um elo de exemplo e de vocação que liga as duas personalidades, prolongado pela especial vocação pedagógica do mais jovem. Fazer escola é, no fundo, compreender que nada de verdadeiramente relevante pode escapar à necessidade de comunicar às novas gerações a atitude, os conhecimentos e a capacidade de compreender. Invocando a memória inesquecível de João Pedro Miller Guerra, João Lobo Antunes lembrou a vocação essencial da Universidade, não limitada a proporcionar uma cultura especializada, mas capaz de ter um sentido de estimular a inquietação do aperfeiçoamento espiritual. Daí a importância da Ética, como abertura de horizontes à inteligência, à sensibilidade e à formação do caráter. Por isso, afirmou: «Não há dúvida de que não é possível praticar um ensino esclarecido, eficaz, aprazível, se as relações entre professores e alunos não forem inspiradas pela confiança e respeito mútuos, não assentarem em bases de honestidade e franqueza». E, no entanto, nem sempre isso acontece, por antagonismos, desconfianças, animosidades, egoísmos e ambições desmedidas… A cada passo encontramos essas resistências, daí que o exemplo e a experiência sejam as melhores matérias-primas no que à Ética diz respeito. É neste sentido que falo de um intelectual completo – uma vez que nele encontramos, naturalmente, uma encruzilhada de preocupações – do rigor científico, da exigência técnica, do humanismo, dos valores vividos e enraizados, da sensibilidade das humanidades, como letras e artes e, sobretudo, como atenção a tudo o que é humano.
O FASCÍNIO DO PENSAMENTO Percebe-se o fascínio que nele exerceram grandes mestres, como Juvenal Esteves ou Artur Torres Pereira… E ainda sobre Miller Guerra, disse-nos: «Tive o privilégio de beber da sua extraordinária cultura e de o ouvir dissertar sobre os diálogos de Platão, os sonetos de Antero, os romances de Proust e Dostoiewski ou os escritos de Teilhard de Chardin, preferência esta própria do católico, então progressista, que não enjeitava ser». Mas o fascínio transmitiu-se à capacidade extraordinária que tinha de partilhar a qualidade de grande leitor dos melhores romancistas norte-americanos – para além do sólido conhecimento dos clássicos – e de fazer disso alimento do convívio e dos melhores banquetes intelectuais. Fui testemunha direta dessa qualidade, num júri literário, no qual beneficiámos só fugazmente da sua participação, pelas razões que o vitimariam. Sentimos o seu método, a sua exigência, a sua sensibilidade e o conhecimento de causa. Participou de corpo inteiro nos nossos trabalhos, não enjeitando esforços – e pondo sobre a mesa toda a experiência de criterioso leitor. Mas também beneficiei do seu avisado conselho na Fundação Calouste Gulbenkian, semanas atrás, sempre segundo uma razão temperada pelo espírito e pela medida. É memorável o ensaio que escreveu sobre a «Morte de Ivan Iliitch» de Tolstoi – no qual se nos revela de pleno o homem das várias culturas – literária, científica, artística… E a novela do genial autor russo surge-nos decifrada de um modo amplo, em que os sentimentos humanos aparecem descritos nas situações limite… E compreendemos que «no fundo, quanto a sentimentos, alma e coração misturam-se, e Aristóteles tinha razão ao pensar que era no coração que o espírito tinha assento» - do mesmo modo que a coragem é outro atributo da alma… Faz pleno sentido a citação emblemática de Richard Feynman, no que podemos considerar uma chave para a compreensão do ato de ser e de conhecer: «todas as ciências, e não apenas as ciências, mas todo género de trabalho intelectual, são um exercício para ligar entre si diferentes hierarquias, para ligar a beleza à história, para ligar a história à psicologia humana, a psicologia humana ao trabalho do cérebro, o cérebro ao impulso nervoso, o impulso nervoso à química, e assim por diante, para baixo e para cima, em ambas as direções». Ainda sobre o exemplo sublime de Rita Levi-Montalcini, prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia de 1986, lembra-nos a ilustração fecunda da ideia de Valéry, segundo a qual o que conduz à descoberta científica «é pelo menos tão fascinante como a própria descoberta». Daí que a autobiografia da célebre investigadora tivesse como título «Elogio da Imperfeição». E aí encontramos uma história apaixonante de simplicidade, de entrega, de entusiasmo e de desencanto, de afetos, mas também de resistência à violência e ao ódio – de quem viveu a perseguição e o ostracismo. A vida e a obra de João Lobo Antunes representam um modo especial de ser, que nos remete para os grandes mestres das humanidades – como Montaigne. Quando lemos «Um Modo de Ser» (Gradiva, 1996) percebemos bem o sentido atual da afirmação do autor dos «Ensaios»: «Je suis moi-même la matière de mon livre…». Mas um eu atento à complexidade da vida que nos cerca…
Guilherme d’Oliveira Martins
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