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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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"CAVALEIRO ANDANTE"

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A minha geração teve uma relação especial com a revista “Cavaleiro Andante”, dirigida por Adolfo Simões Müller. Apesar da resistência que encontrávamos em alguns dos nossos professores de Português relativamente às histórias aos quadradinhos, hoje referidas como 9ª Arte ou Banda Desenhada, pudemos encontrar no “Cavaleiro Andante” e na sua escola um bom aliado na demonstração de que era possível ter qualidade no uso da língua e no incentivo à leitura.  A revista que recebíamos ao sábado, com prazer e alvoroço, permitia termos bons argumentos a favor da qualidade das narrativas ilustradas. Recordo os debates amenos, mas incisivos, no Liceu Pedro Nunes, com alguns professores resistentes e a evolução no sentido do reconhecimento de que esse era um importante contributo para a boa leitura. E assim fomos vendo passarem para o nosso campo os antigos críticos.   


Na Exposição sobre Hergé na Fundação Calouste Gulbenkian recordei esse tempo com António Cabral, o grande impulsionador da iniciativa. Hoje reconhece-se a qualidade excecional do autor belga e o papel fundamental que desempenhou no campo cultural. Do mesmo modo, o introdutor de Tintin em Portugal, Simões Müller, pôde contribuir decisivamente para incentivar o prazer da leitura, com exigência de qualidade. E quando alguns de nós passámos a assinar a revista “Tintin” belga foram as nossas professoras outrora críticas as primeiras a reconhecer os efeitos positivos da BD nos progressos no ensino das línguas, como modo de ligar o multilinguismo, o enriquecimento pedagógico e a abertura de horizontes de um humanismo universalista. António Mega Ferreira já recordou, mais de uma vez, como o Tintin foi um marco de liberdade para a nossa geração. E no caso de Adolfo Simões Müller podemos lembrar os testemunhos de Luísa Ducla Soares, a afirmar que o jornalista e escritor foi um herói da sua infância – “que através dos seus livros, que não esqueço, me iniciou na literatura”; ou de Alice Vieira, a dizer da alegria que era no dia em que chegava o “Cavaleiro Andante”. E David Mourão-Ferreira, recordando o Serviço das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, lembrava o papel desempenhado pelo diretor do “Cavaleiro Andante” “ao tornar acessíveis e aliciantes, a sucessivas gerações de jovens, algumas obras-primas da literatura universal e, particularmente, da literatura portuguesa”. E João Paulo Paiva Boléo refere Müller como “um dos monstros sagrados da direção de revistas juvenis e de banda desenhada, de que inicialmente nem gostava”.


Nas férias de verão, em casa de meus avós, no Algarve, como não tínhamos acesso ao “Cavaleiro Andante” ao sábado, recebíamos religiosamente, à segunda feira, pelo correio, enviado pelo nosso pai, um pequeno rolo, que era acolhido com entusiasmo. Os correios eram ciosos cumpridores dos prazos e a leitura da revista estava devidamente escalonada, para que, com os meus irmãos, pudéssemos usufruir daquele néctar escrito e ilustrado nas melhores condições. Era uma equipa heroica que cuidava com esmero da revista. Os nomes não podem ser esquecidos – Maria Amélia Bárcia, no secretariado da redação, e Fernando Bento, referência fundamental ao lado dos melhores europeus, na direção gráfica. Depois havia tudo o mais – e sobretudo a magia dos continuados e o “suspense” cuidadosamente cultivado de uma semana para outra. E assim tornámo-nos apaixonados da literatura, do cinema, das artes plásticas, da história e da ciência, acompanhando a mais bela das histórias de uma amizade em “Tintin no Tibete”, seguindo as pegadas no Yéti, o abominável homem das neves, como antes fôramos à lua ou partilháramos a luta pelos direitos humanos em “Coke en Stock”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

ALBERT UDERZO (1927-2020)

 

 

Agradecemos ao nosso Amigo e consócio João Paulo P. Boléo, grande especialista da BD, este texto exclusivo.

 

Quando recebi de um amigo, na manhã de 24 de Março, a notícia da morte de Albert Uderzo, o meu primeiro comentário, a acompanhar a partilha da notícia, foi: «Esta é realmente uma notícia grande. Morreu Uderzo com um ataque cardíaco depois dos 90. É justo recordar que Goscinny foi bem menos feliz - morreu a fazer uma prova de esforço (!) por volta dos 50».

 

A carreira, colaboração, co-autoria, cumplicidade dos dois foi de tal maneira grande e marcante que ficaram indissociáveis. Não só, como sabe quem conhece minimamente as suas vastas obras, mas sobretudo - naturalmente - devido a Astérix.

 

Ao aceder ao "convite" do meu Amigo Guilherme d'Oliveira Martins, permitam-me algumas notas confessionais. Ao chegar lá a casa, no início dos Anos 60, pelo mão do meu irmão mais velho (o grande introdutor das histórias aos quadradinhos na família, com a cumplicidade do meu Pai), o primeiro livro do Astérix (Astérix le Gaulois), falámos nele a uma família belga amiga e naturalmente apreciadora de BD... e ainda não conheciam! Essa valiosa primeira edição acabaria por dar a volta à família, à rua, aos amigos... e desaparecer...

 

Sabemos (se e quando sabemos) que a autoria da banda desenhada, no caso frequente de um argumentista e um desenhador, tem as mais variadas nuances e contributos, desde o desenhador que recebe o guião "perfeito" e se "limita" a desenhá-lo (às vezes sem se verem!), até à intensa colaboração de ambos.

 

Sem pôr em causa o papel claro e fundamental de cada um, é evidente que havia ideias de ambos e uma intensa colaboração e cumplicidade entre Goscinny e Uderzo. Que já vinha de trás.

 

Hoje (penso no tempo em que também escrevi no Expresso artigos sobre estes autores, que não fui reler intencionalmente) é (mais) fácil recolher informação e reconstituir a obra de artistas como Goscinny (14/08/1926-05/11/1977, de origem polaca) e Uderzo (n. 25/04/1927, de origem italiana), convindo apenas sublinhar que Goscinny foi um genial argumentista com uma obra vastíssima e na sua maioria brilhante em paralelo e para lá da fecunda colaboração com Uderzo.

 

Mas hoje é Uderzo que justamente homenageamos. E assim como, por exemplo, Lucky Luke nasceu pela mão exclusiva de Morris mas foi com o talento de Goscinny que teve os melhores anos da sua vida, Uderzo também teve muitas obras e séries meritórias desde finais da Segunda Guerra Mundial, quando começou a sua carreira, mas Goscinny seria um companheiro decisivo. Embora não só.

 

O aspecto essencial a sublinhar, porém, aquilo que torna Uderzo um dos grandes nomes de toda a BD e dos artistas mais marcantes do nosso tempo é o seu excepcional jeito inato para o desenho desde pequeno, ele que até nasceu com seis dedos em cada mão (seria operado). E era daltónico.

 

Muito influenciado pelos desenhos animados de Walt Disney, revelou desde cedo um grande sentido do movimento e minuciosa expressividade, sendo também marcado pela pujante escola francesa de BD, nomeadamente Calvo, autor de La Bête est Morte, uma excepcional "versão" animalista da II Guerra Mundial.

 

As suas primeiras séries marcantes seriam Flamberge, Arys Buck, Belloy, etc., umas como autor completo, outras com argumentos de Charlier (que voltará a aparecer), e onde apuraria o seu estilo e criaria personagens que fariam parte da "arqueologia" dos seus sucessos maiores, bem como Jehan Pistolet e Luc Junior, primeiras colaborações com Goscinny, na década de 50, envidenciando nesta o seu talento para fundir o traço humorístico e o "realista".

 

Na segunda metade dos Anos 50, depois de um projecto inicial não totalmente conseguido, surgiria o grande "ensaio geral" antecessor de Astérix que seria Oumpah-pah, cinco histórias delirantes de 30 páginas com a amizade entre um índio e um caval(h)eiro francês, primeiro na revista "Tintin" (belga e francesa) e depois reunidas em álbum, o primeiro dos quais também seria muito lá de casa, com gags inesquecíveis, como o nome da figura que só tinha um dente...

 

E eis senão quando surge, em 1959, o projecto que irá revolucionar a História da BD, em especial  europeia: a revista "Pilote". E Goscinny e Uderzo farão parte dos fundadores, sendo o desenhador "pau para toda a obra" - evidenciando a importância da sua vasta e diversificada experiência, aqui só aflorada - que se vai manifestar especialmente em duas séries que mostram a sua versatilidade: Tanguy et Laverdure, com argumento do prolixo e importante Jean-Michel Charlier, em que mostra o seu talento "realista" e projecta a sua paixão pela aviação e pelas "máquinas" (também era um apaixonado por automóveis e condução), sem esquecer o toque de humor (em especial na figura de Laverdure); e, no registo que todos conhecem, Astérix.

 

A qualidade, relevância e influência de Astérix não precisam de ser sublinhadas, nem a importância que teve no processo de "dignificação" da BD na década de 1960, com o momento alto que foi o sucesso e impacto de Astérix et Cleópâtre (1963-1964, álbum em 1965), embora a BD não tenha atingido o estatuto no mundo da Arte que essa década anunciava e prenunciava, mas isso são outras histórias.

 

A Portugal, como Tintin, Astérix chegou cedo: na revista "Foguetão" (1961), de grande formato, um projecto efémero de Adolfo Simões Müller, em que Astérix surge a preto-e-branco ou a uma cor, tendo depois, como as outras séries (incluindo Michel Tanguy) que passar (com resumo!) para o "Cavaleiro Andante", na sua fase final.

 

Para uma primeira abordagem de Uderzo em Portugal sugiro: https://biblobd.blogspot.com/2018/10/albert-uderzo-ensaio-de-quadriculografia.html.

 

E Uderzo atinge aqui o cume do seu talento e da sua expressividade e fluência, a capacidade de transmitir sentimentos e emoções mesmo em personagens de costas, os gags visuais, uma inesgotável panóplia de recursos que é redundante sublinhar.

 

Não é a altura para uma reflexão mais aprofundada sobre Astérix, as múltiplas leituras de que foi objecto, sendo considerada tanto uma série progressista como conservadora, nem sobre os seus muitos méritos, os anacronismos, o humor de repetição intra-aldeia, as personagens pitorescas, os gags linguístico-visuais, etc., etc., nem sobre a sua incontornável presença na cultura contemporânea.

 

Uma coisa é certa. Uderzo também fez parte da concepção e não apenas da ilustração, mas como argumentista não é Goscinny, e se o primeiro álbum depois da morte deste (Le grand fossé, 1980) ainda tinha a força da dupla, ela foi-se diluindo, até Uderzo deixar de desenhar - a operação aos dedos deixara marcas...

 

Sobre os "apócrifos", com argumento de Jean-Yves Ferri e desenhos de Didier Conrad, de que saiu recentemente o quarto, não levem a mal que não me pronuncie, preferindo ir, com muito gosto, revisitar a série quando era feita por Goscinny e Uderzo, de que me permito, do fundo da memória, destacar Astérix et les Goths, A. Gladiateur, A. et Cléopâtre, A. chez les Bretons, A. légionnaire (o meu preferido), La Zizanie, Le domaine des Dieux... 

 

João P. Boléo