Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
222. O HÁBITO DE COMPETIÇÃO COMO FINALIDADE DE VIDA
Há uma filosofia de vida, geralmente aceite, que concebe a nossa existência, como uma competição, uma luta, na qual se deve respeito e submissão ao vencedor.
O trabalho é adulterado e viciado pela teoria que exalta o espírito de competição, o êxito e o triunfo, em que o ócio e o tédio são envenenados na mesma medida.
O género de descanso e de prazeres tranquilos que nos acalmam e restauram chegam a ser aborrecimento, podendo produzir-se uma fatídica aceleração contínua, cujo fim pode ser o consumo de drogas e a ruína.
O remédio pode consistir em conceber o trabalho como tendo um sentido para a vida e ser um elemento indispensável ao equilíbrio ideal da nossa vivência material e espiritual.
Insistir demasiado no espírito, êxito e triunfo da competição pode ter um preço muito elevado por confronto com o benefício que se obtém e o que se sacrifica, pois embora não se negue que o sucesso torna a vida mais feliz, esse mesmo êxito só pode ser um dos vários elementos da nossa felicidade, que deve ser constituída por uma pluralidade de interesses potencialmente credíveis e realizáveis, de modo que falhando um ou vários, outro ou outros possam emergir, estabelecendo-se novas prioridades.
A causa deste espírito competitivo está enraizada, predominantemente, no mundo financeiro e dos negócios, em que quem investe deseja obter cada vez mais dinheiro com o intento de maior luxo, ostentação e de poder suplantar ou eclipsar os que até então eram seus iguais ou concorrentes.
Um ser humano comum, liberto de um excessivo espírito de competição, o que deseja obter do dinheiro é estabilidade, descanso e segurança, sem frequentes perdas e contínuos cuidados e angústias de numerário.
O hábito da competição tende a apossar-se, com facilidade, de áreas que lhe são alheias, havendo quem fale que a sua relevância atual, nas nossas vidas, está em relação com o declínio do nível de cultura, com prazeres mais intelectuais e tranquilos que vão sendo abandonados e esquecidos, como a arte da conversação, ler e o conhecimento da boa literatura.
Há que equilibrar um saudável hábito e espírito de competição com o gosto pelo que fazemos, não abusando (nem abusarem) das nossas capacidades e o trabalho não pesar exageradamente em relação aos demais interesses da nossa vida.
221. 2. O EQUILÍBRIO ENTRE O UNIVERSALISMO E AS DIFERENÇAS
Amin Maalouf (AM) argumenta que se quisermos enfrentar as alterações climáticas temos de sentir que estamos no mesmo barco, numa luta comum, numa nação humana e global, o que nos obriga a fixar um tipo de relações diferentes e não limitadas a esta questão, mas extensivas a outras que nos definem enquanto povos e cujos valores devem ser universalizados, o que justifica respondendo:
“Acredito que há princípios e valores básicos que terão de ser comuns a todos os seres humanos. A democracia, liberdade de expressão, direitos das mulheres… Tudo o que constitui a dignidade básica dos seres humanos, independente do género, raça, credo, linguagem, grupo étnico. Não aceito a ideia de que deverão existir uns direitos humanos para os europeus e outros para os povos islâmicos, africanos, asiáticos. Têm que ser os mesmos. Mas depois deverá existir uma grande diversidade de expressões culturais. A principal é a linguagem. Cada povo deverá sentir que o seu idioma não é marginalizado. Toda a cultura associada à língua deverá tornar-se conhecida, mesmo para lá das fronteiras dessa cultura” (JL n.º 1014).
A mensagem é que há uma dimensão universal da dignidade humana mais forte que os seus elementos constitutivos, as suas diferenças e os seus particularismos, em que a globalização não pode ceder lugar à uniformização, defendendo-se a unidade com diversidade e não a diversidade sem unidade ou a unidade sem diversidade.
Aos olhos da tese universalista dos direitos humanos a unidade do género humano sobrepõe-se à diversidade das culturas humanas, porque há uma identidade humana universal, por referência à qual e à irredutível dignidade da pessoa humana se justifica a universalidade de tais direitos, titulados por todos os seres humanos em virtude da sua condição, pelo que negar-lhes essa integralidade (condição indispensável) significa negá-los.
Não significando esse universalismo absolutismo, uniformidade ou inflexibilidade, defende-se que terão de ser direitos humanos universais contextualizados, tendo em conta as particularidades específicas das sociedades a que se destinam, conciliando a diversidade cultural e a existência de um conjunto de valores “transculturais” comuns, de modo a poder ser definido por um diálogo intercultural, um conjunto de valores partilhado por todas as culturas.
Têm por fim alcançar um modelo mínimo de direitos humanos ao alcance de todas as culturas reconhecendo, ao mesmo tempo, a sua inevitável incompletude, havendo quem fale numa conceção multilateral desses direitos.
Ao invés do universalismo, há o relativismo, defendendo não ser universal a dimensão cultural da natureza humana, conhecendo a dignidade humana formas muito diferentes de expressão, tantas quantas as formas de se ser pessoa humana, sendo o ser humano, acima de tudo, um ser situado numa multiplicidade cultural do mundo que não está ordenada por um princípio valorativo que nos permite beneficiar umas culturas em detrimento das outras. Se todas as culturas são merecedoras de igual reconhecimento e respeito, não existe uma cultura dominante, pelo que a origem ocidental (e marcas de ocidentalidade) dos direitos humanos não são mais que uma concreta forma encontrada pelo Ocidente para homenagear, à sua maneira, a dignidade humana, numa manifestação de arrogância, superioridade e desrespeito pela dignidade de outros.
A tese relativista levada até às suas últimas consequências impõe que, por respeito pelo diferente (que não estamos autorizados ou capacitados a avaliar), toleremos a intolerância. Uma das contradições fundamentais do relativismo cultural consiste em o respeito pelas culturas alheias e o reconhecimento do outro levar, inevitavelmente, a reconhecer culturas que não reconhecem nem respeitam o outro.
Se, como advoga AM, “a indiferença relativamente às diferenças culturais mata a capacidade de compreender” e têm que ser os mesmos os direitos humanos para os europeus e todos os outros povos, tem que haver um diálogo, um debate plural e construtivo, uma capacidade para colocar em contacto as diversas culturas, sem as absolutizar, dado que a absolutização cultural retira às pessoas a capacidade de questionar, não apenas os valores alheios, mas também os que são seus.
AM sanciona que a partilha de valores comuns sejam essencialmente de origem ocidental, aceites pela maioria, mesmo que se diga o oposto, exemplificando que “As pessoas na Argélia ou no Irão querem ter sistemas políticos como os do Ocidente. Não acredito que queiram realmente ter um sistema em que existe um líder religioso que decide quem é cândido e não é”, declarando ainda: “o Ocidente precisa de sair do excesso de confiança de si mesmo, enquanto o mundo árabe precisa de sair do poço histórico em que caiu”.
Se falhar, acrescenta AM: “Não temos escolha senão a esperança. É uma necessidade”.
220. 1. O EQUILÍBRIO ENTRE O UNIVERSALISMO E AS DIFERENÇAS
Amin Maalouf (AM), escritor de origem libanesa, aquando do lançamento, entre nós, do seu livro Um Mundo sem Regras, numa entrevista onde questionado sobre o que é, para ele, uma cultura global, respondeu:
“Aquela em que cada elemento importante de cada cultura se tornaria global. Onde ninguém sentiria que o principal elemento da sua cultura só seja conhecido pelo seu povo, seja arte, música, literatura. Acredito num mundo em que as nações lidem principalmente com estas expressões culturais. E onde todos os comportamentos de estados e nações ao longo da História - lutar por territórios - desapareçam”.
Prosseguindo, acrescenta:
“Seria o fim da Pré-História. A História que conhecemos, de luta entre tribos, deveria acabar, para entrar numa História em que se partilhem valores comuns. E não me importo que sejam sobretudo valores ocidentais. Penso que, na sua maioria, são aceites, embora muitas vezes se diga o contrário. (…) Mas o Ocidente deveria tornar-se menos orientado para si mesmo no que respeita à cultura. Precisamos de ir em direção a um mundo em que os valores sejam comuns, mas em que exista um verdadeiro florescimento de linguagens, literatura, arte, ciência. Isto é o futuro da humanidade”.
Sobre saber se o futuro só é possível através da cultura, diz estar convicto de não poder existir de outro modo: “Qual a razão de ser da civilização se não for a cultura e o conhecimento? Para mim a cultura não é um aspeto da civilização, mas a sua finalidade”, complementando que ter esperança no futuro é uma necessidade (JL n.º 1014).
Esta noção de cultura tem a sua particularidade, dado não prescindir de traçar uma nítida distinção entre civilização e cultura, ao invés de muitos autores que a usam indistintamente, defendendo uma identidade de princípios entre os dois conceitos. Entre os vários critérios de distinção, o mais universalizado está associado à doutrina sociológica alemã, ao identificar a civilização com o substrato técnico e organizacional das sociedades, incluindo não apenas as técnicas e os instrumentos materiais, mas também os sistemas de organização política e social, adaptando a natureza às necessidades humanas.
No seu oposto e numa relação de complementaridade, está a cultura, compreendida como a reunião dos valores morais e espirituais. Institui-se um entendimento redutor da civilização que a torna subordinada da cultura. Mais importante que a técnica (que é apenas um meio ao dispor dos indivíduos), são as manifestações do espírito, de que depende o desenvolvimento das forças interiores da humanidade.
O conceito de civilização emerge como um estádio embrionário do aperfeiçoamento humano, que só será finalizado quando atingido o nível superior da cultura. Cabe à cultura a primazia, integrando os ideais, os valores, os princípios normativos, o espírito das sociedades humanas.
Intui-se, assim, ser esta a doutrina que agarra mais de perto o entendimento de cultura defendido por AM, dado que o futuro da humanidade só é, então, possível através da cultura, não sendo esta um aspeto da civilização, mas o seu fim.
Uma cultura que será apologista da dignidade humana, o que nos remete para a problemática do universalismo dos direitos humanos e as diferentes diferenças que nos individualizam.
219. HÁ SEMPRE UM LIVRO QUE NOS PODE TORNAR LEITORES
Entre a enciclopédia de livros que há, em que a literatura não é serva de nada, é difícil perceber porque há poucos leitores.
Acresce que a leitura não é um mero prazer estético, é um privilégio que nos leva a toda a parte, é o centro do infinito, é a nossa imaginação ocupando-nos completamente a cabeça, é a nossa memória, a nossa projeção no que lemos e o modifica em sucessivas metamorfoses transformadoras.
É uma maneira de conseguirmos estar sós, um reino nosso, em que somos reis, donos e senhores, ouvindo-nos a nós mesmos e em silêncio, interagindo com o mundo e os outros, bailando com o cérebro, sabendo que o que lemos tem milhões de leituras e pensamentos diferentes se o dermos a ler a outros milhões de pessoas.
Ao ler há liberdade de pensar, de idealização, de invenção, um espaço libertário, vivendo hipóteses de leitura que interessem a todos e a cada um, evitando o medo, sem machado que ampute a raiz ao pensamento.
Há livros transformadores, que deixamos de ler porque não há vontade para continuar, em que saltamos as páginas, que devoramos ou não conseguimos parar ficando-nos, no fim, uma alegria gratificante que quereremos voltar a sentir.
E há os grupos de leitores, que se reúnem voluntariamente, em que se convencionou uma determinada leitura sobre um livro e tudo o que daí possa resultar em termos de convívio, tertúlias, em associação livre de interpretação, ideias e conteúdo, num diálogo e debate que se quer construtivo, enriquecedor, de partilha e plural.
Há as edições de autor, pagas por conta própria, em que existe o prazer de deixar um testemunho em livro, para os familiares, amigos e quem o queira.
Mesmo assim, há quem não leia. Será responsabilidade dos livros?
Culpabilizá-los parece sem sentido, dada a sua variedade e quantidade para todos os gostos (por maioria de razão numa democracia pluralista), não sendo justificação, só por si, o preço, pois são cada vez mais as casas de gente com património e rendimentos elevados onde não se vislumbra um livro, ou os há como ornamento, mais por uma questão de pressão social/profissional e menos de preferências literárias, havendo lojas que negoceiam falsas lombadas para preencher estantes desprovidas.
Apurar o gosto é o caminho certo para encontrar o livro adequado para ler, descobrindo o que se gosta e não se gosta, naquele tempo e circunstâncias, excluindo liminarmente o livro que se tem como errado, sem esquecer que há muitos livros, mudando as nossas preferências de leitura consoante a idade e outras contingências.
Há quem prefira o livro clássico ao digital ou eletrónico, pelo seu prazer estético e, sobretudo, tátil, felicitando-me pelo engano dos que declararam a sua morte às mãos do e-book.
Há os que navegaram de vez para a net, os que recuaram e fazem ambas as coisas, oxalá haja sempre um livro (ou livros) que nos faça leitores, entre tantas e tantas escolhas.
Cada um de nós, como indivíduo ou pessoa, é um complexo de eus.
Pode haver uma versão idealizada de nós mesmos, que promovemos e queremos que se veja, e outra menos desejável que, no fundo, ocultamos e mantemos escondida. Ou, por exemplo, uma versão que somos obrigados a ter, em termos profissionais ou por dever de ofício. Pode haver duas ou mais versões distintas da mesma pessoa.
Não era incomum, na época inaugural e áurea dos retratos, quando em andamento ou finda a sua feitura, o retratado, após o analisar, pedir uma versão mais elogiosa e lisonjeira de si mesmo, acabando o pintor por pintar outra versão por cima da inicial, o que é conhecido por pentimento. Quando aplicado a manuscritos, fala-se em palimpsesto. Há quem defenda que parte de quem somos está sempre perdida, quem replique que é uma escolha, quem triplique que pode ser um dever, que todos fazemos sacrifícios e expurgamos algo de quem somos e, por mais que representemos um ideal, somos sempre seres humanos comuns.
E há os heterónimos literários, os perfis e retratos imaginários de amizades epistolares e virtuais, em que quem escreve, leia ou veja, à distância, é visto num plano espiritual, imaginário, que cada um fantasiou do outro. A haver contacto pessoal, um dia, que não corresponda aos imaginários espirituais da personalidade idealizada, há um choque, dado haver pessoas que virtualmente e ao escrever são encantadoras, reforçando a aproximação, enquanto outras são aborrecíveis e desagradáveis no falar, esfriando e morrendo o relacionamento.
Li, algures, que um alto privilegiado adorava estar só e que o seu maior amigo, Beltrano, nunca o vira, pelo que, inquirido do porquê de tão estranha omissão, respondeu ter medo, apesar de inúmeras vezes ter sido convidado. - Medo de quê? perguntaram-lhe. - Medo de ter uma deceção, que seria mais uma, respondeu, preferindo continuar a idealizá-lo como um ser superior.
Nem sempre, na verdade, o contacto presencial corresponde àquilo que idealizámos espiritualmente, virtualmente e vice-versa.
Nós, seres humanos, somos uma complexidade de eus que importa compreender.
Se aceitamos que é a ação que nos define, então existe um imperativo humano, em todos nós, em deixar uma marca, ou uma mancha. Se formos ambiciosos, motivados e poderosos, presume-se que queiramos marcar a História. Ou manchá-la, mesmo que o não aceitemos.
Se assim é, o meditar, o pensar e a capacidade de escolher estar só é, para muitos, um sofrimento, um desvario, um sentimento de autocomiseração, de angústia, um vazio, um grupo de umbiguistas, pelo que, quem o faz, precisa de se levantar, fazer algo, abrir-se e sair para o mundo. Precisa de ação, embora também a haja por omissão.
Indicia-se que, inspirando-nos em seres humanos movidos permanentemente pela ação, temos sempre sucesso, porque têm as respostas, não nos desiludindo, mesmo que vivam numa fuga antropológica, norteada por um imperativo humano de sobrevivência, num corre-corre para a agitação e o ruído, não se autoconhecendo e ignorando a nossa finitude.
Só que a dúvida e a incerteza também são parte da nossa existência, sendo racional e humano pensar que quantos mais mistérios forem explicados e mais questões respondidas, menor é a necessidade de um Deus para as respostas, havendo sempre, de todo o modo, algo que nos transcende.
Em qualquer caso, mesmo agindo com ação e sucesso, ninguém pode ser divinizado, dado não sermos a medida de todas as coisas e não termos resposta, na sua simplicidade e complexidade, por exemplo, para o vazio monocromático da lua.
Se os cemitérios estão cheios de pessoas insubstituíveis, também o estão de pessoas de ação, que tantas vezes cumpriram como profissionais, mas nos desiludiram como seres humanos.
Conhecemo-nos pessoalmente no lançamento simultâneo de dois livros de um conhecido ensaísta e escritor.
Estarmos sentados, lado a lado, propiciou a conversa e a empatia foi recíproca.
Os contactos, presenciais e virtuais, continuaram e permaneceram, intervalados pelas deslocações do Fernando Venâncio entre os Países Baixos (para onde emigrara, trabalhava e constituiu família) e Portugal (onde regressava quando podia).
Foi de uma enorme satisfação e agrado conhecê-lo e sermos amigos, dialogarmos em longas e boas conversas em esplanadas, entre almoços, jantares, telefonemas, convites para apresentações públicas de novos livros (sem esquecer a feira do livro), algumas caminhadas, deslocações pontuais entre Lisboa, Queluz e Sintra. E através da internet e uma ou outra rede social. Se possível, uma agradável, fascinante e interessante conversa a dois tinha sempre prioridade.
Como linguista e figura marcante e singular do panorama académico e cultural, e de um entusiamo contagiante pela língua portuguesa e galega foi, para mim, um privilégio tê-lo como amigo. Havendo discordância, sempre houve tolerância e respeito mútuo.
Depois do retorno à pátria nativa, para Mértola, a sua morte recente não me surpreendeu. Falava com ele, nos últimos tempos, amiudadas vezes, de cada vez com mais dificuldade, até ficar incontactável.
A sua partida emocionou-me e consternou-me muito.
Não esqueço a sua opinião, inteligente e sincera, sobre os textos que ia publicando neste blogue.
Nem o seu amor e dedicação pela Galiza.
Nem a inesperada surpresa que me deste, Fernando, com os agradecimentos finais do teu livro “Assim nasceu uma língua”, ao referires o meu nome, entre outros, com “Um sincero e forte obrigado a quantos, no decurso de anos, com um pequeno ou grande contributo, tornaram este trabalho menos árduo”.
E que palavras generosas teres escrito, para mim, em dedicatória, que esse teu “livro testamento” alguma coisa de precioso me deve, sem que eu, alguma vez, o tenha consciencializado (mesmo sabendo que muito falávamos sobre o nosso idioma).
Por tudo, tudo o que vivemos, o meu muito obrigado.
Consta que a felicidade é quase sempre medida não por aquilo que se tem, mas por aquilo que falta. E que basta que aconteça algo pior para percebermos que, afinal, o que sentíamos não era infelicidade.
Trata-se de uma permanente e incessante busca de ser feliz, o que é normal dentro de certos limites, tidos como razoáveis, tornando-se nociva quando excessiva e irrealizável.
Em princípio, todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem atender plenamente as suas necessidades fundamentais deveriam ser felizes, dado que para além da felicidade depender (segundo estudiosos), por um lado, de condições interiores e, por outro, de condições exteriores, tem inerente alguma subjetividade e indeterminabilidade.
Afastando, desde já, liminarmente, uma felicidade que, de tão exigente, é humanamente irrealizável, parece-nos que, correlativamente, daqui decorre ser necessário afastarmos de nós determinados objetos ou desejos que são, na sua essência, inacessíveis, como o exemplifica a obtenção de um conhecimento absoluto em qualquer área do saber. Expurgadas vontades e fins inalcançáveis, há que descobrir e procurar o que é desejável e acessível, fazendo-nos feliz, vivendo objetivamente, com interesses plurais, propensão para o afeiçoamento e sentido crítico, estimulando a autoconfiança e a capacidade de querer estar só, quando necessário, purgando ideias erradas sobre o mundo e a humanidade, imperfeitos por natureza, priorizando o que temos de bom e excluindo a infelicidade diária de que sofrem tantas pessoas.
Excelente preventivo contra a tristeza, o ócio e o tédio é a pluralidade de interesses pelo mundo exterior, que incentiva a atividade, sem prejuízo do conhecimento por nós próprios, defrontando-nos com o silêncio, a introspeção e os mistérios da vida, em equilíbrio e conjugação de esforços, dando luta, em qualquer caso, à inatividade.
Um interesse excessivo por nós próprios, pelo contrário, pode conduzir-nos a egocentrismos de várias espécies, como o narcisista, o megalómano e o pecante, destrutivos por si e incentivadores de infelicidade.
Tem que haver um apetite e gosto natural por coisas realizáveis, de que a felicidade não é exceção, tendo presente a nossa imperfeição de que ela também depende.
Sendo a solitude a capacidade de escolher estar só, enfrenta o silêncio e dá-nos a oportunidade de meditar, pensar e refletir, compreender os desejos e sentimentos mais íntimos e profundos de cada um de nós. Como estado emocional e psicológico que é, não se limita a um estado físico. Exige autoconhecimento, introspeção e maturidade, para nos reconectarmos com nós mesmos.
Porque decorrente de uma escolha deliberada, pessoal e voluntária, está associada à alegria de estar só, ao invés da solidão, associada à incapacidade de estar sozinho, cujas manifestações se manifestam pela dor, tristeza, sofrimento e vazio.
O querer e saber estar só, não implica não estar em contacto com outras pessoas, havendo um equilíbrio e uma interação entre a autoconfiança de estar sozinho e a necessidade social de convivência e contacto com os outros.
Não há um sentimento de vazio na solitude, dado não ser um isolamento forçado sendo, na sua maioria, um estado de isolamento temporário de que precisamos para permanecermos em repouso e nos afastarmos do impulso geral danoso de asfixiar a nossa angústia numa fuga antropológica para a agitação, o ruído e o não pensar, iludindo-nos perante a mortalidade da nossa condição.
E há tanto trabalho produtivo e singular que a solitude inspirou e produziu, desde autores, cientistas e inventores clássicos aos atuais, pensadores como Sócrates, Aristóteles, Marco Aurélio, Montaigne, Nietzsche, Pascal, entre outros, que ficaram intemporalmente universalizados, ao contrário de quem vive tão só uma vida repetitiva, embora carregada de ação, emoção e adrenalina, mas sem capacidade e tempo para parar e pensar estando só.
Se a utopia idealiza uma sociedade perfeita que, segundo o seu criador (Tomás Moro), vive numa ilha imaginária (“Utopia”), que não existe em lado algum, não vinculada às condições económicas e políticas da realidade concreta, tendo como referência um modelo abstrato irrealizável, então torna-se inexequível uma comunidade idílica e justa onde não há desigualdades de qualquer tipo.
Se a distopia idealiza uma sociedade imaginária destrutiva, caótica, injusta, desigualitária por natureza, baseada num pensamento futurista negativo, se não mesmo apocalíptico, tendo como referência um modelo abstrato gerador de sistemas totalitários, onde o ambiente, a ciência, a tecnologia, a moral e a ética não melhoram a nossa vida, conclui-se ser sempre indesejável, mesmo que realizável.
Entre a mensagem de pacifismo utópico e total do sermão da montanha protagonizado por Jesus Cristo, e a de quem trabalha como hacker e programador em que a realidade que habita é uma ilusão virtual e distópica controlada por máquinas (Matrix), melhor é ser utópico que distópico, dado o lado mais construtivo e positivo dos utopistas e das suas conquistas.
Se a protopia idealiza uma sociedade de futuro possível, exequível, sustentável e realizável, sem amanhãs que cantam ou pessimismos exagerados, num mundo de melhorias permanentes e evolução contínua, que tem por assente, por condição e natureza, a imperfeição humana, assim como o equilíbrio, o compromisso e o pacifismo possível como bens e fins inestimáveis, com consciência de que há sempre algo por fazer e fazível pelo bem comum, então a protopia estará mais bem posicionada para, realisticamente, ser mais realizável e nos fazer melhorar, porque indicia agarrar mais de perto aquilo que somos como humanos.