Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
“Temas de Cultura Portuguesa” de Joel Serrão (Ática, 1960) é, enquanto leitura, um excelente modo de terminar um ano e de começar outro, a refletir sobre temas múltiplos e controversos na nossa realidade cultural.
Joel Serrão por Nikias Skapinakis (Pormenor de “Tertúlia”, 1960)
COMPREENDER O SÉCULO XX
Este pequeno volume, com data do mesmo ano em que Nikias Skapinakis fez o retrato de Joel Serrão no celebrado quadro “Tertúlia”, é utilíssimo e atual. O quadro representa uma atitude centrada na liberdade e no diálogo de ideias. O livro é uma ilustração prática dessa perspetiva, reunindo um precioso conjunto de reflexões sobre a cultura portuguesa, terminando com um percurso global e multifacetado desde Sampaio Bruno a António Sérgio, com referência a Mário de Sá-Carneiro e Jaime Cortesão. Joel Serrão é um autor fundamental para a compreensão do pensamento do século XX português, a partir de uma ligação essencial entre a génese da modernidade, fruto do nosso romantismo mais perene, e a ligação ainda não cabalmente compreendida entre a geração de 1871 e o século XX do “Orpheu”, da “Seara Nova” e da presença. Dir-se-á, aliás, que a leitura triangular de Joel Serrão, José-Augusto França e Eduardo Lourenço constitui um modo de compreender a emancipação cultural do novo Portugal Contemporâneo, que chega à democracia dos nossos dias. Na revista “Bicórnio” (de J.-A. França), em 1952, Eduardo Lourenço colocava quatro perguntas sacramentais: (1) «Pode falar-se sem equívoco de “cultura portuguesa”? Ou será preferível falar antes de “cultura em Portugal”?»; (2) Num caso como noutro, é «possível discernir nessa cultura alguma permanência de intenção, ideais, valores, problemas com características próprias; (3) «Em que medida o debatido problema da “universalidade” ou “não universalidade” dessas criações culturais tem sentido?»; (4) É «possível ou conveniente impor ao conjunto das manipulações espirituais dos portugueses qualquer espécie de orientação geral apoiada sobre a existência pretendida ou real, de uma maneira de ser portuguesa, unitária e indiscutível?».
QUE CULTURA PORTUGUESA?
Para Joel Serrão “cultura portuguesa” é a cultura do povo português, vista em movimento criador, com uma história ainda por fazer, num sentido prospetivo de exigência e emancipação. No fundo, trata-se de uma “cultura condicionada, não por misteriosas e incompreensíveis virtudes ou vícios rácicos, mas pela nossa história, pela construção e mentalidade dos grupos sociais e das suas tarefas, temporalmente consideradas». Neste sentido, os elementos de permanência não são fáceis de discernir, devendo prevalecer os problemas, mais do que as respostas. Quanto ao universalismo, fica o alerta: “quando tivermos, em mais larga escala, uma literatura e uma arte com o nível a que podemos aspirar; quando tivermos ciência de facto e filosofia a sério, o problema, evidentemente, deixará de pôr-se…”. Por outro lado, “se, por hipótese, existe ‘uma maneira de ser portuguesa’, impô-la seria tirania perfeitamente dispensável”. Deveremos, pois, evitar “impor fictícias unidades a priori, arquétipos a que incriticamente devamos submeter-nos”. Esta questão constituiu, aliás, cavalo de batalha para Eduardo Lourenço na sua “psicanálise mítica do destino português”. “Não há cultura sem autonomia; ora, a autonomia implica a humana diversidade, imagem da própria vida”. Afinal, como disse Agostinho de Hipona, importaria não desejar a unidade em relação ao que facilmente pode ser separado… Urgia, deste modo, fazer um caminho de compreensão da “cultura em Portugal”, a caminho de uma “cultura portuguesa”, aberta, complexa, exigente – assente na valorização da educação e da ciência, da criatividade e da aprendizagem, do exemplo e da experiência. E a crítica de Joel Serrão ao empolamento de uma “filosofia portuguesa” centra-se nesta preocupação: o fechamento, qualquer que seja, é sempre empobrecedor. Não estaria em causa a qualidade lírica de Pascoaes ou a capacidade intelectual de José Marinho, mas sim uma absolutização do que é próprio e nacional – que deve ser considerado à luz da dualidade cultura em Portugal / cultura portuguesa. Se é facto que se pode sempre seguir o que é positivo e criador numa cultura, não podemos esquecer a qualidade e a exigência, que pressupõe a educação, e em especial uma reforma do ensino da filosofia. Caberia, assim, garantir a autonomia desse ensino, o diálogo além-fronteiras e a ligação ao progresso científico: “Onde não haja ciência, não há nem pode haver filosofia. Onde não haja filosofia não há nem pode haver ciência que mereça tal nome”.
NEM COMPLEXOS NEM ILUSÕES
“Diante da filosofia estrangeira, nem complexos de inferioridade nem megalomanias me parecem adequados a resolver o problema do baixo nível da nossa especulação. Teremos filosofia a valer quando, libertos de tais perturbações, tenhamos alcançado, pelos nossos meios, o nível que nos permita o diálogo autónomo. Diálogo autónomo relativamente a problemas comuns. E todos os caminhos serão bons – e só serão bons -, quando o fim seja o universal, que, a partir de Sócrates, é timbre do homem que se interroga e busca saber, mediante a inteligencia, e em termos de ciência”… Na linha de pensamento de António Sérgio, Joel Serrão põe a tónica na orientação pedagogista. Importaria, deste modo, não só a audácia da reflexão, mas também o permanente sentido crítico. Afinal, há sempre um diálogo no tempo histórico, entre o que recebemos das gerações que nos antecederam e o que transmitimos ao devir. Assim, Sérgio assumia a causa de um patriotismo prospetivo, capaz de valorizar o que é próprio, sem a tentação do autocomprazimento, e com recusa da tentação de uma fantasiosa glorificação retrospetiva. “Se mais não houvesse a relevar na obra de Sérgio, - e há - , como contribuição talvez essencial para a historiografia do nosso tempo, bastaria a propedêutica do saber histórico, que ou é problemático, ou não é coisa alguma, em que tanto tem insistido, para que todos lhe estivéssemos reconhecidos, e para que não seja difícil fazer uma previsão: esse será o aspeto da sua atividade mental que o futuro se encarregará de valorizar mais e mais”. Afinal, também Jaime Cortesão afirmou emblematicante: “Toda a história escrita tende a tornar-se uma interpretação atual do passado. Por isso se tem dito que cada geração escreve, à sua maneira, a história. Assim é, e assim deve ser”. E não por acaso, na nota inicial, o autor cita o belo poema de Jorge de Sena: “Uma pequenina luz bruxuleante e muda / Como a exatidão como a firmeza / Como a justiça. /Apenas como elas. / Mas brilha. / Não na distância. Aqui / No meio de nós. / Brilha”…
O «Dicionário de História de Portugal» de Joel Serrão (Figueirinhas) constitui um precioso elemento de estudo sobre a historiografia portuguesa, numa perspetiva rigorosa e pedagógica, com grande qualidade científica e capacidade de abrir e alargar horizontes. É uma obra indispensável.
PEDAGOGO EXEMPLAR
Joel Serrão (1919-2008) foi um pedagogo exemplar, que soube ao longo da vida fazer dos ofícios de pensador e de historiador uma permanente ação de cidadania. O seu labor científico foi sempre feito a pensar nos seus alunos, nos seus leitores e na necessidade de fazer da reflexão uma exigência permanente. Quando hoje nos lembramos da importância do “Dicionário de História de Portugal”, percebemos a determinação e a generosidade de quem se empenhou em preencher uma lacuna na nossa perspetiva cultural. Mas só alguém com uma extraordinária capacidade de ver largo e com uma férrea capacidade de trabalho pôde realizar uma empresa muito difícil, em que a marca de grande qualidade fica bem patente, não só em cada entrada, mas no conjunto realizado. Vê-se como o coordenador foi obrigado, com grande mestria, a preencher todos os espaços previstos e necessários. Mas igualmente descobrimos, em algumas remissões, o drama sentido nos atrasos de alguns colaboradores. Quem coordena obras coletivas sabe bem a angústia que sente, quando um texto falta no momento em que deve entrar na tipografia. Ora, tratando-se de um Dicionário saído em fascículos, esse drama surgia agravado pelos inexoráveis compromissos da Editora. Só o conhecimento, o trabalho, a persistência, o cumprimento determinado do compromisso assumido de um professor e de um intelectual de exceção puderam superar as angústias e os contratempos. Conheci-o bem, mas não tive o gosto de ser seu aluno. Posso dizer, porém, que fui desde muito cedo seu ávido leitor. Foi através dele que li sistematicamente os “seareiros” e, antes de todos, António Sérgio, seguindo-se Jaime Cortesão e Raul Proença. Recordo especialmente a minha saudosa professora Maria Lucília Estanco Louro, que nos fazia ler os grandes mestres da História política como modo de aprender a realizar uma verdadeira Escola de Cidadãos – do mesmo que nos levava às conferências dos grandes mestres, desde o pensamento às artes, numa imersão total em banhos lustrais de sabedoria e sensibilidade. Eram momentos de puro deleite, através dos quais compreendíamos como o diálogo entre filósofos da Escola de Atenas, retratados por Rafael, começava na capacidade de saber perguntar… E pouco antes de nos deixar, Maria Lucília foi ter comigo à Casa Fernando Pessoa para dizer que não podia ficar para uma conferência. E nesse momento pudemos lembrar esse tempo em que Joel Serrão nos ensinava pelos seus escritas a ler melhor o mundo e o tempo e em que ouvíamos as canções de 1789, como sinal de liberdade.
A PAIXÃO DA HISTORIOGRAFIA
No tempo em que nos aproximámos, o ensaísta e historiador mergulhava no âmago da gloriosa geração de 1870, e naturalmente foi Antero que nos fez encontrar pessoalmente, compreendendo no que viria a ser O Primeiro Fradique Mendes (Livros Horizonte, 1985), como as figuras dessa idade de ouro se complementaram na diferença e se projetaram no século seguinte. “Pouco ou nada se compreenderá das origens do escritor Eça de Queiroz se não tivermos em vista a conjugação de duas perspetivas: a primeira, é que ele foi um homem da geração, cujos valores e objetivos fundamentais haviam sido esboçados pelos juvenis escritos de Antero; e a segunda, é que esse facto, além de comprovado, lhe não tolheu a singular originalidade da sua procura, a partir de um magma cultural mais ou menos comum”. E sem sombra de anacronismo, é o próprio Joel Serrão que irá encontrar ecos dessa riqueza criadora no Livro do Desassossego de Bernardo Soares – ou seja, é a modernidade que se encontra a si própria nas suas diversas facetas. E Carlos Fradique Mendes vai ser, no percurso da sua afirmação, o ponto de encontro de um singular heterónimo coletivo, envolvendo Antero, Batalha Reis e Eça. E este último dirá: “Antero, mesmo troçando e amaldiçoando, era um ateniense: e à sua ironia convinha, mais que à de nenhum outro ironista, o nobre epíteto homérico de alada. Os seus ditos abriam através da sua geração grandes sulcos luminosos e puros”. Havia, pois, uma indicação de sentido de marcha orientada para o futuro. Contudo, do que se tratou inicialmente com Fradique, no dizer de Batalha Reis, foi um tremendo simulacro: “o nosso plano era considerável e terrível: tratava-se de criar uma filosofia cujos ideais fossem diametralmente opostos aos ideais geralmente aceites, deduzindo, com implacável e impassível lógica, todas as consequências sistemáticas dos pontos de partida, por monstruosas que elas parecessem. Dessa filosofia saía naturalmente uma poesia, toda uma literatura especial, que o Antero de Quental, o Eça de Queiroz e eu, nos propúnhamos construir a frio, aplicando os processos revelados pelas análises da Crítica moderna, desmontando e armando a emoção e o sentimento, como se fossem máquinas materiais conhecidas e reproduzíveis”. E esse satanismo mais não seria do que a procura de um gesto original, capaz de prenunciar novos caminhos críticos. Estaríamos perante o realismo em poesia, e a demarcação nítida do romantismo decaído.
FRADIQUE MENDES
E depois da revelação do poeta no seu espaço próprio, escrito a várias mãos, encontramos em 1870 Fradique Mendes, no capítulo XXX de O Mistério da Estrada de Sintra, da autoria partilhada de Eça e Ramalho Ortigão, saído em folhetins no “Diário de Notícias”: “sentado no sofá com um abandono asiático”, “verdadeiramente original e superior”, “um excêntrico, distinto”, de “caráter impecável”, “originalidade violenta, quase cruel”, “amigo de Baudelaire” – que “tocava admiravelmente violoncelo, era um notável jogador de wist, tinha viajado no Oriente, estivera na Meca e contava que fora corsário grego”… Dir-se-ia que a personagem vai ganhando vida, para além da poesia que tinha publicado. E assim Eça vai apoderar-se da figura. E o certo é que já não é o mero símbolo, algo marginal na obra de uma geração, que desejava deixar clara a sua identidade. Agora, já temos uma figura central, base de um verdadeiro romance epistolar – ao lado de Amaro, Basílio, Carlos da Maia, João da Ega, Jacinto, Zé Fernandes e Gonçalo Mendes da Maia. Em bom rigor, é uma personagem multifacetada, capaz de gerar fascinação e de se constituir em voz de um tempo singularíssimo. “A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa – justamente na semana em que ele regressara da África Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admirável datava de Lisboa, do ano remoto de 1867. Foi no Verão desse ano, numa tarde, no Café Martinho, que encontrei num número já amarrotado da ‘Revolução de Setembro’, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam”… Os versos significavam uma definição nova, muito mais do que um estilo inolvidável. Este estava representado pela própria personagem, que se tornou símbolo de uma geração, de uma obra, de uma força crítica. Assim, Eça e toda a geração de 1870 superam o romantismo do elogio mútuo, mas atingem a sua plena consumação num naturalismo que não segue cânones de escola e se abre para o simbolismo, anunciando o modernismo do século XX, como necessidade a um tempo crítica e construtiva em relação à sociedade. Joel Serrão compreendeu-o plenamente na sua análise rigorosa e certeira de Fradique.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Joel Serrão escreveu «Da Regeneração à República» (Horizonte, 1990) sobre a segunda metade do século XIX português, que é um dos períodos mais interessantes e complexos de uma longa História, ainda que cheio de paradoxos e contradições – e que permite entender o século XX.
TEMPO DE ACALMAÇÃO
Saídos de uma longa guerra civil, que marcou a primeira parte do século, os portugueses conheceram uma acalmação política a partir de 1851, que se traduziu no mais longo período de vigência de um mesmo texto constitucional – a Carta Constitucional de 1826, completada pelo Ato Adicional de 1852. Dir-se-ia que uma assembleia constituinte saída do golpe de Estado da Regeneração (1851) procedeu a um certo renascimento moderado e compromissório da Constituição de 1838, de modo a pôr termo ao Cartismo de Costa Cabral, substituindo-o pelo que viria a ser o rotativismo, entre regeneradores e históricos. O «cabralismo» fechara-se sobre si mesmo e deixara campo para uma grande convergência política que culminaria no movimento de 1851. O machado de guerra era enterrado, na condição de haver uma partilha de poderes e influências. E se Alexandre Herculano inspirara e de certo modo preparara o golpe vitorioso de 1851 perpetrado pelo Marechal Saldanha, também animara a seguir a criação de uma esquerda histórica, de modo que os vencedores e as suas clientelas não se eternizassem no poder, suscitando uma alternância à maneira inglesa. A verdade é que, sem intervenção política direta, Herculano teve indiscutível influência na queda de Costa Cabral e na estabilização constitucional. O Ato Adicional tinha dezasseis artigos que previam: a eleição direta dos deputados e o alargamento do sufrágio, embora mantendo-se censitário; o direito das Cortes intervirem na Administração pública mediante comissões de inquérito; a abolição da pena de morte nos crimes políticos; a consagração do princípio de que as colónias poderiam ter leis especiais decretadas pelo Governo ou pelos governadores em casos especiais quando não fosse possível recorrer às Cortes. Nasceu assim um regime parlamentar liberal, assente no rotativismo, em que coexistiam o Partido Regenerador, primeiro dirigido por Rodrigo da Fonseca Magalhães e depois por António Maria Fontes Pereira de Melo, principal artífice da política de melhoramentos materiais (fontismo), e o Partido Histórico, liderado primeiro pelo Duque de Loulé e depois por Anselmo José Braancamp, figura íntegra celebrizada pela grande competência administrativa e financeira. A rotação permitiu que tivesse lugar uma das fases mais fecundas da história constitucional portuguesa. Com mais ou menos vicissitudes, a alternância durou até 1891, tendo em 1875 nascido o novo Partido Progressista, dirigido por Braancamp, resultante da fusão entre o Partido Reformista do Bispo de Viseu e o Partido Histórico, de Anselmo José. Em 1885 seria aprovado um segundo Ato Adicional impulsionado por Fontes, envolvendo a redução da legislatura de 4 para 3 anos, a supressão do pariato hereditário, a restrição do poder moderador do rei, o qual passava a ser exercido sob responsabilidade dos ministros, sendo regulado e limitado o direito de dissolução parlamentar, além da consagração expressa dos direitos de petição e de reunião… Já na fase final da monarquia constitucional, sob o peso da crise financeira e das consequências da bancarrota (1892), veio a consagrar-se um derradeiro Ato Adicional (1895-96), pelo qual o rei passou a dispor do poder para dissolver a Camara dos deputados e para convocar eleições sem as restrições previstas em 1885. Os últimos anos do regime viriam, porém, a ser marcados por forte instabilidade, com o envolvimento do rei na política dos partidos, que culminaria no regicídio (1908).
DO ROMANTISMO AO NATURALISMO Este quadro constitucional permitiria, contudo, a existência de um longo período de respeito essencial pelas liberdades públicas, o que favoreceu o debate de ideias e a vitalidade da criação cultural. Camões tornou-se símbolo e referência dessa regeneração, que a República (de Pascoaes a Cortesão) designaria como renascença. É o tempo de Camilo Castelo Branco e Júlio Diniz, mas também da questão do Bom Senso e do Bom Gosto (1865), das Conferências Democráticas do Casino (1871), da Geração de Setenta, de Antero de Quental, de Eça de Queiroz, de Oliveira Martins, de Ramalho Ortigão e de Guerra Junqueiro ou de Cesário Verde. No entanto, apesar desta vitalidade, o crescimento muito rápido das economias europeias levou a que o desenvolvimento português tenha ficado muito aquém do que ocorreu no velho continente. Se é verdade que, na senda da primeira geração liberal, de Garrett e Herculano, houve uma geração de políticos e intelectuais a reivindicar a aproximação à Europa, sem prejuízo da salvaguarda das especificidades nacionais, o certo que entre meados e o fim do século XIX houve uma clara divergência no tocante ao produto per capita, chegando-se à primeira década do século XX com uma distância não alcançada anteriormente. O PNB per capita português que era de 86% da média dos países desenvolvidos em 1860, passa para 45% no início do século XX. Isto poderá parecer estranho, quando assistimos a uma política de melhoramentos, tantas vezes à custa da dívida pública. No entanto, o desfasamento em relação à Europa deveu-se ao facto de a sociedade industrial ter permitido um crescimento muito mais rápido dos países desenvolvidos, graças às economias de escala. Pesou o diferente potencial de crescimento entre os países industrializados e as economias mais pobres como a portuguesa, presa à ruralidade e ao atraso. Apesar das importantes mudanças estruturais operadas pela Regeneração, como nos casos dos transportes, da modernização das instituições, bem como do alargamento e aperfeiçoamento dos mercados dos fatores de produção, a verdade é que o potencial se viu reduzido, facto compreendido em muitas das reflexões e propostas dos melhores analistas nacionais. Alguns números merecem especial atenção. Se pensarmos nos citados melhoramentos, a rede rodoviária portuguesa era de apenas 476 quilómetros construídos, contra 11 754 em 1900, e a rede ferroviária tinha 69 quilómetros contra 2867 nas mesmas datas (segundo os estudos de Maria Fernanda Alegria). Olhando as Finanças Públicas, temos uma progressão moderada das receitas públicas depois de 1850, com um crescimento lento do produto interno, o que conduziria à crise financeira dos anos noventa. As despesas efetivas do Estado correspondiam a 4,3% do PIB na década de 1850 e a 5,6% na década de 1890. No entanto, segundo Maria Eugénia Mata apenas 38% das receitas da dívida pública foi aplicado em despesas de investimento reprodutivo, sendo o restante absorvido por gastos correntes – com forte penalização das novas gerações. Para Magda Pinheiro, o investimento em despesas reprodutivas foi mais lento do que o desejável. Nestes termos, a eficiência dos melhoramentos ficou muito aquém do que se pretendia, no sentido de criar recursos para amortizar o endividamento. Os encargos com a dívida pública passaram de 20,5% na década de 50, para 40,2 na década de 90. Veja-se, pois, que o modelo não se revelou sustentável. Se a Regeneração atraiu investidores para as obras públicas, outro tanto não aconteceu no fim do século, em face da ineficiência do modelo económico e da incapacidade reformista dos governos, incapazes de aproveitar condições excecionais de estabilidade institucional. Tudo se agravou em virtude da crise internacional do fim do século.
UM FIM DE SÉCULO ATRIBULADO Os anos 1890 foram de recessão económica: o PIB a preços correntes cresceu apenas 1,6% ao ano na década de 1889 a 1899, enquanto na década anterior tinha registado um crescimento de 3,3% ao ano. O certo é que os investimentos públicos, nomeadamente em infraestruturas viárias praticamente pararam na década de 90, pelos constrangimentos financeiros internacionais (bancarrota da Argentina e quebra da banca britânica – com abandono do padrão-ouro e suspensão do pagamento de parte da dívida externa, que culminaria no Convénio de 1902). Das crises que atingiram a economia portuguesa na segunda metade do século (1853-58; 1867-70; 1889-92) a última foi a que mais afetou as condições de vida dos cidadãos, desencadeando subida de impostos, aumento do desemprego, baixa de salários reais, redução do horário de trabalho e migrações internas (para o sul e para as cidades) e externas (para Espanha e Brasil). Jaime Reis interroga-se sobre o porquê da persistência do atraso português na segunda metade do século XIX, em especial no tocante à expansão do sistema educativo, sobretudo quando «estava definitivamente redistribuída a propriedade da Coroa e da Igreja, tinham sido abolidas as principais instituições do Antigo Regime e estavam efetivamente reconciliadas as grandes famílias políticas que se tinham guerreado com ardor durante as primeiras décadas de Oitocentos. Os motins ocasionais que ainda se registaram em reação a questões fiscais ou de propriedade, ou simplesmente, por manipulação de políticos desencantados e descontentes, estavam intensamente longe das convulsões populares de 1808-1809 ou da cruel violência das guerras civis dos anos 1830 e 1840». Surge, assim, a dúvida sobre a razão por que uma sociedade com relativa estabilidade não foi capaz de reorganizar a instrução pública e de combater o analfabetismo. E, perante o contraste com outras sociedades europeias com fortes conflitualidades, surge a hipótese explicativa de que «num quadro de maiores tensões, mais forte teria sido a vontade de educar» («O Atraso Económico Português 1850-1930», INCM, 1993). No entanto, aquilo que Miguel de Unamuno designou o «século de ouro português» permitiria lançar as bases das mudanças profundas que culminaram na democracia contemporânea. Como compreender, por exemplo, Fernando Pessoa ou Eduardo Lourenço sem essa extraordinária sementeira de ideias da segunda metade do século XIX?