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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 13 a 19 de maio de 2024


«Filosofia Medieval – Uma Introdução Histórica e Filosófica» de John Marenbon (Gulbenkian, 2024) é a mais recente publicação da reconhecida Coleção dos Clássicos, permitindo um conhecimento de um dos períodos mais ricos e complexos da história europeia.


Filosofia Medieval
 de John Marenbon (Gulbenkian, 2024) oferece um relato sintético e abrangente sobre a história da filosofia na Idade Média, referindo os principais escritores e ideias daquele período histórico, envolvendo os contextos sociais e intelectuais e os principais conceitos a considerar. O Professor John Alexander Marenbon (1955) é um prestigiado filósofo britânico, Fellow do Trinity College da Universidade de Cambridge e membro da British Academy. Exerceu a docência ou realizou conferências na Sorbonne, na Universidade de Toronto, no Vaticano e em Beijing. Tem vasta obra publicada, avultando a conferência “De quando foi a Filosofia Medieval” (2011) e “Pagans and Philosophers. The problem of paganism from Augustine to Leibniz”, Princeton University Press 2015. Esta introdução fornece um relato cronológico que trata das quatro principais tradições da filosofia que derivam da herança grega da Antiguidade tardia (filosofia cristã grega, filosofia latina, filosofia árabe e filosofia judaica); inclui secções de «estudo» focadas nos argumentos e «interlúdios» mais curtos que apontam para questões mais amplas do contexto intelectual; combina a análise filosófica com antecedentes históricos; incluindo um guia detalhado e útil para leitura adicional e uma extensa bibliografia, atualizada para esta edição. A tradução foi coordenada por José Meirinhos.


Foi Boécio, filósofo do século VI, quem definiu pessoa humana como “substância individual de natureza racional”. A citação do pensador romano na declaração sobre a dignidade humana permite-nos fazer a ligação, numa inserção plural, da obra agora publicada à declaração “Dignitas Infinita” sobre a Dignidade Humana, elaborada durante cinco anos e publicada em março de 2024 pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, pondo a tónica na dimensão universal, filosófica e antropológica, do respeito pela pessoa humana enquanto fator de salvaguarda dos direitos humanos, do primado da justiça e do reconhecimento de que todos os seres humanos como livres e iguais em dignidade e direitos. De facto, importa enfatizar «o caráter único da pessoa humana, incomensurável em relação aos outros seres do universo» (DI, 14). Assim se pode compreender o modo como é usado o termo dignidade na Declaração Universal das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948, onde se fala «da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos, iguais e inalienáveis». Apenas esse caráter inalienável da dignidade humana permite que se fale de direitos da pessoa humana na sua plenitude. Contudo, para melhor esclarecer o conceito de dignidade, deve tornar-se claro que esta não é concedida à pessoa humana por outros seres humanos, a partir de seus talentos e qualidades, por isso não pode ser perdida ou retirada por decisão aleatória. A dignidade é, pois, intrínseca à pessoa. «Em consequência, todos os seres humanos possuem a mesma dignidade, independentemente de serem ou não capazes de exprimi-la adequadamente» (DI, 15). Assim, o Concílio Vaticano II refere a «eminente dignidade da pessoa humana, superior a todas as coisas e cujos direitos e deveres são universais e invioláveis». E para a Declaração conciliar Dignitatis humanae, «os seres humanos tornam-se sempre mais conscientes da própria dignidade, crescendo o número daqueles que exigem poder agir por iniciativa própria, com a sua liberdade responsável, movidos pela consciência do dever e não obrigados por medidas coercivas».  Assim, a liberdade de pensamento e de consciência, individual ou comunitária, é baseada no reconhecimento da dignidade humana «como foi dada a conhecer pela Palavra de Deus revelada e pela própria razão». 


Infelizmente, há numerosos mal-entendidos sobre o conceito de dignidade, que distorcem o seu significado. Longe de uma abstração devemos insistir no facto de se tratar da dignidade de cada pessoa humana, “para além das circunstâncias”, reconhecendo-se ao ser humano uma dignidade que não se perde mais, sendo possível garantir a tal qualidade um inviolável e seguro fundamento, que não oscila à mercê de diferentes e arbitrárias avaliações, pois «os direitos da pessoa são direitos do ser humano». Assim, a dignidade não se identifica com uma liberdade isolada e individualista. A defesa da dignidade do ser humano é fundada em exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem do arbítrio individual, nem do reconhecimento social. Os deveres que resultam do reconhecimento da dignidade do outro e os correspondentes direitos que daí derivam têm, pois, um conteúdo concreto e objetivo, fundado sobre a natureza humana assumida em comum. Desse modo, a dignidade do ser humano compreende a capacidade ínsita na mesma natureza humana, de assumir obrigações em relação aos outros.


Segundo nos lembra o Papa Francisco, «devido à sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas. [...] Por isso o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar um uso desordenado das coisas». E assim, a vida humana torna-se incompreensível e insustentável sem as outras criaturas. Pertence, por isso, à dignidade humana o cuidado com o ambiente, considerando em particular a ecologia humana que lhe preserva o próprio existir. Importa ainda salientar que um dos fenómenos que contribui consideravelmente para negar a dignidade de tantos seres humanos é a pobreza extrema, ligada à desigual distribuição da riqueza. De facto, «continua “o escândalo de desigualdades clamorosas”, em que a dignidade dos pobres é duplamente negada, seja pela falta de recursos à disposição para satisfazer as suas necessidades primárias, seja pela indiferença com que são tratados por aqueles que vivem a seu lado» (DI, 36).


Outra tragédia que atinge a dignidade humana é o prolongamento da guerra, hoje como em todos os tempos. E o Papa Francisco sublinha, que «não podemos mais pensar na guerra como solução. Diante desta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível “guerra justa”. «Aqueles que invocam o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra não seguem o caminho de Deus: a guerra em nome da religião é uma guerra contra a própria religião. Também os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. E é urgente recordar que «cada migrante é uma pessoa humana que, enquanto tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados por todos em todas as situações». O seu acolhimento é um modo importante e significativo de defender «a inalienável dignidade de toda pessoa humana para além da origem, da cor ou da religião». O tráfico de pessoas, os abusos sexuais, a violência contra as mulheres, o recurso ao aborto, a maternidade de aluguer, a eutanásia e o suicídio assistido, o desrespeito pelas pessoas com deficiência, a violência digital e tecnológica são violações graves da dignidade humana. E urge ainda reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, evitando “toda marca de injusta discriminação” e particularmente toda forma de agressão e violência.


É nesse espírito que, com referida Declaração, a Igreja Católica exorta a colocar o respeito pela dignidade da pessoa humana, para além de toda circunstância, no centro dos esforços pelo bem comum e de todo o ordenamento jurídico. “O respeito pela dignidade de cada um e de todos é, de facto, a base imprescindível para a existência mesma de cada sociedade que se pretende fundada sobre o justo direito e não na força do poder. Sobre a base do reconhecimento da dignidade humana se sustentam os direitos humanos fundamentais, que precedem e fundam toda convivência civil” (DI, 64). E Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença