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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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DAR A VOLTA POR CIMA

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Vi “António das Mortes” no cinema Flamingo, no Lobito. A autoria é do sincrético Glauber Rocha, tão matador de cangaceiros que fez um filme para matar Corisco, outro para matar Coirana. Mal sabia, nesse ano de independência, quem era o brasileiro que filmava sangue como só Godard filmou sangue e que encostava cada cena a canções que, ali onde elas cantavam, qualquer um chorava.

“António das Mortes”, também chamado “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, tinha muitas canções. Uma, “Dar a Volta Por Cima”, é inesquecível. Se algum dia tiver de ajudar alguém que precise de ajuda mas não queira que lhe dêem a mão, estenda-lhe essa canção. Parece críptico: mas basta ouvir os versos falando de um homem de moral que morde a poeira do chão e percebe-se logo.

António é jagunço, assassino: a soldo de coronéis para matar cangaceiros descomandados. O Brasil do passado, talvez, e Deus queira que não, o Brasil do futuro. Como o jagunço, também o cangaceiro pode ser um criminoso a mando. Só que, quando deixa de servir um senhor, o cangaceiro continua criminoso e converte-se num telúrico espírito livre. O cangaceiro brota do seco Nordeste como o mais obstinado dos arbustos. O crime dele agarra-se ao sertão, à crespa paisagem. A sede dele sabe onde encontrar a sobrante, rara, gota de água. O cangaceiro é gémeo de uma Natureza miserável e inóspita. Comungam a escassez, o desapossamento.

Uma sebenta capa cinzenta a cobrir-lhe o corpo vasto, espingarda assassina colada à mão, António, que em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” já matara Corisco, herdeiro de Lampião o príncipe dos cangaceiros, volta agora e volta para matar Coirana, o último rebelde. Porque lhe pagam. É um jagunço: serve os que têm, matando os que nada têm. É esse o maniqueísmo antropofágico do filme de Glauber. Como num western cruel de Peckinpah. Com mais música, uma música inocente e impiedosa, camiliana. De cordel.

Quando a voz do sambista, que dava pelo estranho nome de Noite Ilustrada, canta “dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava”, vemos António na sua estrada de Damasco, no meio de camiões de luz, a sofrer a conversão e a mudar de campo. Os negócios de política passam a ser com os outros, os dele só com Deus, o Deus místico dos que nada têm. 

Na única, brevíssima conversa que tive com Glauber devia ter-lhe perguntado porque é que a lágrima que no cinema do Lobito juro ter visto António chorar, nunca mais a encontrei ao rever o filme. Glauber ligara do hospital para a Cinemateca, a dias de morrer tão jovem. Atendi-o por acidente e ouvi-lhe mais a nítida respiração arfante do que a longínqua voz. Não o podia cansar.

Ainda hoje procuro a lágrima que António das Mortes chorou só para mim num cinema de Angola. Uma lágrima de dois lados. De um lado penitência, do outro, esperança.

 

Manuel S. Fonseca

OS TEATROS NUM LIVRO SOBRE JORGE AMADO

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Foi recentemente editado em Portugal um extenso livro de Joselia Aguiar intitulado “Jorge Amado - Uma Biografia”, em que se descreve e analisa, ao longo de mais de 600 páginas, a vida e a obra do grande escritor brasileiro.

Independentemente das apreciações positivas e elogiosas que o livro evidentemente merece e amplamente justifica, importa agora evocar as referências aos teatros que, ao longo de dezenas de anos, apresentaram parte da obra dramatúrgica do escritor, um dos mais relevantes da literatura moderna brasileira.

Há que referir, entretanto, que o livro engloba não só a vasta produção literária de Jorge Amado, como as conotações epocais que envolvem a obra e obviamente a biografia e o historial respetivo. E nesse sentido, é oportuno desde já salientar que, independentemente de apreciações que se possam fazer do estudo em si mesmo e até da vida e obra que descreve e analisa, haverá que reconhecer a qualidade do livro e a oportunidade da publicação, no que concerne à dramaturgia do grande escritor, que Jorge Amado sem dúvida sempre como tal será justamente reconhecido.

Jorge Amado (1912-2001) completa e de certo modo prolonga a sua vastíssima criatividade literária sobretudo romanesca, de qualidade, projeção e prestígio indiscutíveis, com uma dimensão também dramatúrgica, expressa e assumida como tal num conjunto de peças que Joselia Aguiar cita e evoca. Mas sem efetuar aqui e agora a apreciação critica das peças em si, importa referir então os teatros citados no estudo, pois neles encontramos uma expressão significativa da infraestrutura teatral em que a obra cénica de Jorge Amado se exibiu, se desenvolveu, ou que direta ou indiretamente influenciou.

Sem entrar obviamente em detalhes, e salvaguardando novas abordagens que a dimensão do livro amplamente justificará, referimos, pois, os principais teatros citados, sem excluir evidentemente novas referências. Mas deste já se aluda designadamente aos seguintes Teatros, salas de espetáculo e movimentos de espetáculo teatral-cultural referidas no livro de Joselia Aguiar, cruzando com a vida e obra de Jorge Amado, e isto abrangendo a longa e variada existência cultural e política ao longo de dezenas de anos, no Brasil e em outros países.

Assim, designadamente e não exaustivamente, pois como dissemos ainda não concluímos a análise do livro:

Teatro Castro Alves, Teatro Gamboa e Teatro Vila Velha, de Salvador da Bahia; Teatro Nacional de Praga; Teatro Nacional de Tiblisi; Teatro Oficina; Cine Guarany; Cine São Jerónimo e Clube de Cinema da Bahia, além de outras intervenções de menor referência.

Estes aqui citados são Teatros - edifícios. Mas sobre Teatro criação, literatura e espetáculo, outras evocações e análises surgem ao longo do vasto e valiosos estudo, que estamos a ler e ao qual voltaremos em crónica posterior.

 

“Jorge Amado - Um Biografia” de Joselia Aguiar
Edição portuguesa: Publicações D. Quixote Editora, 2019
Edição brasileira: Editora Todavia, São Paulo 2018

 

DUARTE IVO CRUZ