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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

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  De 27 de setembro a 3 de outubro de 2021

 

Quando hoje nos deparamos com a capa da revista “O Tempo e o Modo”, nascida em janeiro de 1963, encontramos, ao lado do fundador António Alçada Baptista, os nomes de dois futuros Presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio.

 

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CULTURA COMO MEIO NATURAL

De facto, o grupo que criou a nova revista, como testemunhou João Bénard da Costa, tinha um certa consciência de que algo de novo se preparava nos meios culturais portugueses. E mais do que os caminhos novos e plurais, era a própria ideia de democracia que estava em causa, onze anos antes da sua consagração efetiva através do Movimento das Forças Armadas, em 25 de abril de 1974. A presença do jovem Jorge Sampaio era significativa. Dirigente estudantil de um movimento marcante, escreve na revista, com Jorge Santos, um texto emblemático “Em Torno da Universidade”, no qual afirmam: “uma vez que haviam tomado consciência do papel que tinham a desempenhar na vida nacional, uma vez que tinham bem presente as suas responsabilidades perante a Nação, uma vez ainda, que a Universidade deixara de ser o tal ‘vase clos’, a tal corporação hermética dos tempos passados, os estudantes passaram a ocupar-se dos seus problemas de uma forma que, frequentemente saindo do ‘casulo universitário’, atinge o plano da própria vida política do país. (…) Entraram decisivamente a preocupar-se com o problema do alargamento do ensino ao maior número possível de jovens; começaram a exigir sistemas de subvenção de estudos, de seguros sociais para estudantes, de assistência médica estudantil etc.”. Hoje, quase parece profética essa convergência de contributos diferentes no pensamento e na ação, e a verdade é que a história da revista “O Tempo e o Modo” é bem ilustrativa de como a democracia se preparava, abrindo horizontes, mobilizando ideias diferentes e até contraditórias. As heterodoxias contrapunham-se às ortodoxias e o resultado era a emergência do cadinho das ideias democráticas que se afirmava.

Se refiro este momento emblemático, faço-o para salientar como a cidadania política é algo que não se faz instantaneamente, nem com ilusões de certezas absolutas. Quando lemos a biografia modelar de José Pedro Castanheira, percebemos em Jorge Sampaio um caminho feito de tentativas e erros, mas de uma essencial coerência. E a vida política é apaixonante porque é de riscos extremos. O estudo da história política corresponde à análise de uma sucessão de êxitos e de naufrágios, de persistência e de recuperação, e é preciso haver essa clara consciência. Por isso, Mário Soares disse que só é vencido quem desiste de lutar. O exemplo de Jorge Sampaio é o de alguém que sempre compreendeu que a política tem de ser assumida com independência e sentido de serviço público. Os valores éticos e as causas da cidadania são essenciais, mais importantes do que o sucesso fácil e imediato. Brilhante advogado, jurisconsulto de mérito, defensor ativo dos direitos humanos com todas as consequências, como demonstrou internacionalmente quando esteve no Conselho da Europa, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ainda hoje há quem recorde em Estrasburgo o período em que Jorge Sampaio se ocupou ativamente desses sempre complexos temas.

 

LIBERDADE AUTÊNTICA

Com uma apetência especial para as questões da criação cultural e da sensibilidade artística, deve dizer-se que o político foi moldado por essa especial ligação a essas questões. De facto, a liberdade autêntica constrói-se pela compreensão da complexidade, da capacidade criadora, da incerteza, da dúvida e do sentido crítico. Melómano conhecido, que gostaria de ter sido maestro, Jorge Sampaio amava os grandes autores e as suas obras musicais – Mozart, Beethoven, Chopin, Mahler, Schostakovich. Como leitor ativo de prosa e poesia, era ainda um amante da boa dramaturgia, e também um cultor da memória enquanto património vivo. Com sua Mãe falava indiferentemente em português e inglês – e a literatura e o jornalismo anglo-saxónicos eram-lhe familiares. Nascido de uma família com raízes muito antigas e arreigadas, em que os Bensaúdes, a diáspora e os Açores tinham uma marca forte de abertura, diversidade e apego à liberdade, a Cultura, ou a sensibilidade das artes, era para Jorge Sampaio um meio natural. Assim como, no texto de 1963, para o jovem que há pouco deixara os bancos da universidade ficava clara a necessidade de abertura de horizontes, em lugar da claustrofobia dos ambientes fechados, das soluções herméticas, essa abertura só seria possível se as liberdades fossem conquistadas, já que o valor da cultura obrigaria à democracia – numa ligação íntima entre cultura e liberdade. Daí que a identidade nacional só se enriqueceria de modo aberto, exigindo uma ligação entre cultura, educação e ciência. Afinal, haveria que compreender que “a educação é uma espécie de lugar geométrico de três grandes desígnios cívicos: desenvolvimento, democracia e emancipação individual.” (27.11.2002). Os avanços realizados nas aprendizagens foram importantes, mas não podem satisfazer-nos só por si, porque os progressos gerais não param, e porque a exigência de qualidade é permanente. O mesmo se diga da absoluta prioridade à ciência, a partir da internacionalização, do diálogo e cooperação com os principais centros mundiais. Daí Jorge Sampaio salientar “o papel absolutamente pioneiro que a Fundação Calouste Gulbenkian teve neste movimento de aproximação dos investigadores portugueses aos centros de excelência sediados no estrangeiro” (15.10.2002). De facto, é incindível o triângulo cultura, educação e ciência, obrigando a que a capacidade inovadora do artista permita compreender o impulso criador do cientista, e a afinação de um instrumento de precisão se assemelhe ao que permite ao instrumento musical dar maior fidelidade ao desejado pelo compositor.

 

O PATRIMÓNIO E A LÍNGUA

“O património histórico-cultural é por natureza diverso. Ele alimentou-se de uma tensão entre interno e externo, entre local e universal, entre elites e povo, entre exclusão e integração, entre uniformidade e alteridade. (…) Conservar é promover uma reaproximação. É, portanto, reinterpretar, de acordo com critérios e expectativas do presente. Finalmente porque a identidade de uma sociedade não é um dado imutável, é, isso sim, uma aquisição permanente, um processo continuo entre o passado e o desejo do futuro” (10.10.1996). As raízes históricas apenas podem ser entendidas pela compreensão deste movimento imparável – o que nos permitirá entender, no património imaterial, que “a língua que falamos não é apenas um veículo funcional e utilitário de comunicação, molda o que pensamos e o que sentimos, leva-nos ao mundo e traz-nos o mundo. A língua que falamos exige que a renovemos, que a recriemos, que a amemos. (…) Quando ouvimos falar o português nas vozes dos outros povos, sentimos que a nossa voz se amplia nessas vozes e que o futuro começa na língua que falamos” (6.12.2004). E assim uma cultura aberta e plural constitui-se fundamento da liberdade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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                          Sei bem que Jorge Sampaio estimava a música de Gabriel Fauré. Por isso ouso prestar-lhe esta homenagem, igual à que levei até um amigo que não era agnóstico mas frade. Afinal é no nosso coração, mais ou menos desajeitado, que havemos de guardar memórias nossas de quem tanta humanidade nos disse.

   Com um abraço do

                                     Camilo Maria

 

 

 

Minha Princesa de mim:

 

   Em carta já datada de 24 de junho de 2018, publicada no blogue do CNC, falei-te de Gabriel Fauré e do seu Requiem. Dizia-te então, citando o compositor francês que eu apelidara de "agnóstico muito religioso", que o meu Requiem é tão meigo como eu. O meu Requiem... já alguém disse que ele não exprime o susto da morte, já lhe chamaram canção de embalar a morte: é uma feliz libertação, aspiração à felicidade do além, mais do que doloroso trânsito. Gosto intrinsecamente dessa peça sem terrores nem temores, ameaças justiceiras ou fanfarras. Soa-me mais a acolhimento pela ternura de Deus do ser humano que regressa a casa do pai. E, afinal, é isso que Requiem quer dizer: descanso. Eis o que essa missa pede: dá-lhe, Senhor, o descanso eterno. E a esperança logo acrescenta: entre os esplendores da luz perpétua...

 

  Volto a escutar hoje o Requiem de Fauré, lembrando-me de frei Bernardo Domingues, irmão do frei Bento que acorreu ao Porto para o acompanhar à beira do mistério. E a tantos amigos, mulheres e homens, que lá vão partindo na secreta viagem, também lhes faço companhia com essa música toda feita de acenos evangélicos. Talvez não haja alegria maior do que a desse encontro com a misericórdia de Deus e dos humanos todos. Sinto-o muito nesta tarde de sexta feira, quando me chega a notícia de que o frei Bernardo morreu de madrugada.

 

   Melhor do que eu, diz Vladimir Jankélévitch num dos textos de L´Enchantement Musical: O Requiem de Fauré é como o amor e a morte. Depois de tudo o que já foi dito, que mais conseguiremos dizer? E, todavia, é facto: ouvimos os sublimes arpejos do Sanctus e os acentos patéticos do Libera me como se pela primeira vez os escutássemos. O mistério do Ofertório, o alegreto bergamasco do Agnus Dei, o azul seráfico do In Paradisum, todos temas inesgotáveis de meditação e exaltação. [O canto do Agnus Dei, na missa de Requiem, por três vezes pede o descanso para o morto: Agnus Dei qui tollis pecata mundi dona eis requiem. Repara, Princesa de mim, que Jankélévitch chama, a esse andamento em alegreto no Requiem de Gabriel Fauré, bergamasco, sublinhando assim a alegria dançante de uma música que lhe evoca a bergamasca, dança ligeira (como a tarantela) da região de Bérgamo.]

 

   Confidencio-te hoje, Princesa de mim, a minha experiência espiritual na escuta desta obra musical, porque ela me ajuda a uma contemplação evangélica do mistério da vida e da morte humanas. Até pela fraternidade em que esse mesmo mistério se torna presente, nesta irmandade de todos nós, os da mesma humana condição, aqui algures no inacabado (Quelque part dans l´inachevé, outro título de Jankélévitch). No momento em que encaro a morte de um amigo, estou de certo modo a interiorizá-la: há sempre um pouco de nós que morre com os amigos que partem, com qualquer humano que se morre, e há ainda essoutra parte de nós, que fica, bem viva pela força persistente que nos diz como há algo em nós, na comunhão de todos nós, que não irá morrer. Esta é doravante a comunicação mais forte que temos com os que já não vemos agora. Afinal, estamos sempre em comunhão com todos os que são - pela, e na, sua e nossa humanidade - o nosso próximo, confundidos na mesma condição, na vida e na morte. 

 

Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira
25.02.19