Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. Só uma cegueira maldizente não reconheceria que a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa foi um êxito. Houve muitas críticas à Igreja, umas justas, outras não, e ela só tem de reflectir, pois há imensos buracos negros na sua história — para mim, a maior tragédia são a Inquisição e a pedofilia do clero. Houve, por vezes, referências críticas aos gastos públicos, e é bom que se reflicta, mas, desde já, é fundamental pensar no retorno, e, quando se reflecte sobre o retorno, não se trata apenas de pensar que, por exemplo, o próprio altar servirá para eventos futuros e que o país acabou por ser publicitado por todo o mundo, pois impõe-se pensar também no retorno imaterial do evento: pense-se no que significa a vivência dos grandes valores, como a alegria, a amizade, a solidariedade, toda a mensagem transmitida pelo Papa, a fé. Por vezes, invocou-se uma possível agressão ao Estado laico. Penso que, evidentemente, é preciso estar criticamente atento, pois a laicidade enquanto Estado não confessional é essencial para garantir a liberdade religiosa de todos, incluindo a liberdade de não ter religião, mudar de religião — aliás, o Papa fez questão de receber representantes de várias religiões, pois o diálogo inter-religioso é essencial para a promoção da consciência da fraternidade universal e a paz—, mas, por outro lado, é preciso prevenir que não se pode confundir laicidade com laicismo, que pretenderia reduzir a religião à esfera privada, sem lugar no espaço público.
Reflectindo sobre a herança mais positiva do evento, penso que será a da vivência de que somos e formamos uma só humanidade. Agora, já não se trata só do que se sabe abstractamente, agora é uma realidade concreta, pois jovens vindos dos cinco Continentes, com cores, culturas, vivências, até credos diferentes, conviveram, falaram, dançaram, rezaram, emocionaram-se juntos, e é isso: somos todos seres humanos, diferentes, mas iguais, e é realmente possível uma só humanidade em alegria, em diálogo, em paz...
2. Evidentemente, o herói da Jornada foi o peregrino mais jovem em espírito: o Papa Francisco, um líder político-moral global. O fascínio que ele exerceu! Quem não tentou aproximar-se dele? Quando se pergunta a razão disso, ela é clara: ele é um cristão, nele vê-se alguém que é, nas palavras e nos actos, um discípulo de Jesus. E é um homem bom, com uma bondade inteligente e activa.
Deixou mensagens inesquecíveis. A primeira, na base de todas: Deus é bom, e “ama-te”. “Jesus a todos acolhe”. “Cada um é único e original, e somos amados como somos, sem maquilhagem.” “Não tenham medo, sejam corajosos.” “Somos chamados pelo nosso nome, não somos um número”. Sim, do que mais precisamos é de que alguém olhe para nós, confie em nós, nos dê ânimo, porque somos capazes, que reconhece que temos valor — eu nunca esqueço que em Maputo tentei um dia explicar isto e soube depois que um moçambicano fez quase 40 quilómetros para ir dizer a uma irmã de sangue: está aí um padre de Portugal que esteve a explicar que valemos para Deus, Deus reconhece o nosso valor; já viste? Valemos para Deus. Eu tinha de vir dizer-te isto.
A outra mensagem: “Na Igreja, há espaço para todos, todos, todos. Repitam comigo: todos, todos, todos.” Na capelinha das aparições em Fátima: “A Igreja não tem portas, para que todos possam entrar.” Por isso, continuou: “Caminhar sem medo. Não tenham medo.” Só tem sentido “olhar de cima para baixo”, para ajudar “alguém caído a levantar-se”.
Consequências? A política é uma forma nobre de caridade, se o seu objectivo for só o bem comum. Europa, para onde navegas, se não cuidas dos teus velhos e “os berços estão vazios”? E que futuro tens, se não és capaz de pôr termo à guerra na Ucrânia? E que política a tua para os migrantes e refugiados? A economia não pode ter como único objectivo o lucro, com ricos cada vez mais ricos e o número dos pobres a aumentar. E como salvar o planeta, a casa comum? E o escândalo dos gastos com armamentos, que deveriam ir para a educação e a superação da fome no mundo?...
E a Igreja vai acolher todos, todos, todos? Também os recasados, os homossexuais, os trans? E as mulheres não vão continuar discriminadas? Este é o desafio histórico, a tratar em próximas crónicas...
3. E tive um sonho, um sonho acordado. Na Missa do envio, na despedida, depois do Evangelho e da homilia do Papa e a oração por todos, bispos nada engalanados, padres também vestindo de modo simples, jovens (eles e elas), com cestos cheios de pão, deram a cada um dos peregrinos (milhão e meio) um pão. O Papa lembrou então a Última Ceia de Jesus e disse: “Tomai, comei todos. Isto é a minha vida entregue por vós e a vós. Sempre que fizerdes isto, lembrai-vos de mim, lembrai-vos do que eu vos disse, do que eu fiz por vós, lembrai-vos da minha morte, sabei que estou vivo na plenitude da vida em Deus como esperança e desafio para vós, sabei que não caminhais para o nada mas para a plenitude da vida em Deus. Sempre que fizerdes isto fazei-o em memória de mim. Mistério da fé.”
Todos responderam, cada um na sua língua: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus.” E todos comungaram. E comprometeram-se a fazer o possível e o impossível para acabar com a fome no mundo. E assumiram a missão de levar o Evangelho a outros, promover a fraternidade, uma economia solidária, combater pela salvaguarda da casa comum e da paz.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 12 de agosto de 2023
1. Nesta sua presença de 5 dias nas Jornadas Mundiais da Juventude no Panamá, o Papa Francisco também visitou um centro de detenção de jovens, que é modelar, pois, com a ajuda de assistentes sociais, psicólogos e peritos de várias especialidades, prepara os jovens para a sua integração na sociedade, sendo também obrigatória a sua participação em cursos de formação profissional e de desenvolvimento humano. Francisco animou-os: “Que ninguém vos diga nunca: ‘não vais conseguir’. Deus não vê rótulos nem condenações, vê filhos.”
Foi ali que um jovem preso contou ao Papa a sua história: que desde pequeno sempre sentira um vazio interior, a falta de um olhar carinhoso de pai; um dia, encontrou esse olhar em Deus, mas, depois, caiu e agora encontrava-se ali cumprindo uma pena; e disse-lhe, do fundo do seu contentamento, que havia de ser um grande chefe. Francisco ouviu com atenção e carinho, como só ele sabe escutar. E o jovem comentou enternecida e admirativamente: “... Que alguém como você tenha arranjado tempo para ouvir alguém como eu, um jovem privado da liberdade!... Não sabe a liberdade que sinto neste momento!” O jesuíta Diego Fares comentou: “Talvez tenha que ser um preso para valorar quem o Papa é e o que faz.”
Ao longo desta sua viagem, Francisco encontrou-se com políticos, bispos, padres, religiosos e religiosas, fez discursos para as centenas de milhares de jovens, vindos de 155 países, mas encontrou tempo para escutar a história deste rapaz e assim escreveu mais um capítulo da sua encíclica, que não é de palavras, mas de gestos, encíclica que dá sentido a todas as suas encíclicas e discursos. Jesus também assim procedeu.
2. Neste contexto, Francisco tem autoridade para falar duro aos bispos. Arremetendo contra “o funcionalismo e o clericalismo eclesial, tão tristemente generalizado e que representa uma caricatura e uma perversão do ministério”, pediu-lhes conversão. Invocando o exemplo do bispo Óscar Romero, assassinado e recentemente canonizado por ele, atirou: “Não inventámos a Igreja, ela não nasce connosco e continuará sem nós. Uma Igreja autosuficiente não é a Igreja de Deus. É importante, irmãos, que não tenhamos medo de nos aproximar e de tocar as feridas da nossa gente, que também são feridas nossas, e fazê-lo segundo o estilo do Senhor. O pastor não pode estar longe do sofrimento do seu povo; mais: poderíamos dizer que o coração do pastor se mede pela sua capacidade de se deixar comover perante tantas vidas doridas e ameaçadas.”
A Igreja de Cristo “não quer que a sua força esteja no apoio dos poderosos ou da política”, a sua força vem-lhe do Crucificado”. A Igreja de Cristo “é a Igreja da compaixão, e isso começa por casa, pelos sacerdotes, pelos fiéis, e o que não podemos delegar é ‘o ouvido’, o que não podemos delegar é a capacidade de escutar”; os bispos devem, em primeiro lugar, ouvir os seus padres, e “é importante que o padre encontre no bispo o pai, o pastor em quem se revê e não o administrador que quer ´passar revista às tropas’.” “No pastor, a autoridade radica especialmente em ajudar a crescer, em promover os seus padres, mais do que em promover-se a si mesmo: promover-se a si mesmo fá-lo um solteirão”.
E, lembrando o acontecimento das Jornadas, chamou a atenção dos bispos para “irem ao encontro e aproximar-se ainda mais da realidade dos nossos jovens, cheia de esperanças e desejos, mas também profundamente marcada por tantas feridas”. Os jovens “levam com eles uma inquietação que devemos valorar, respeitar, acompanhar, e que tão bem nos faz a nós todos porque desinstala e recorda-nos que o pastor nunca deixa de ser discípulo e está a caminho. Como não agradecer ter jovens inquietos pelo Evangelho!”, acrescentou. “Exorto-vos a que promovais programas e centros educativos que saibam acompanhar, apoiar e potenciar os vossos jovens; ‘roubai-os’ à rua antes que seja a cultura de morte, ‘vendendo-lhes’ fantasias e soluções mágicas, a apoderar-se e a aproveitar a sua imaginação. E fazei-o, não com paternalismo, de cima para baixo, porque isso não é o que o Senhor nos pede, mas como pais, como irmãos para irmãos.” “Há lares alquebrados tantas vezes por um sistema económico que não tem como prioridade as pessoas e o bem comum e que fez da especulação o seu ´paraíso’, a partir do qual continuar a ‘engordar’, sem se importar à custa de quem, e, assim, os nossos jovens sem lar, sem família, sem comunidade, sem pertença, ficam à intempérie do primeiro vigarista.”
3. Evidentemente, o centro tinha de ser ocupado pelos jovens. Francisco conhece bem as suas dificuldades e os seus dramas e, por isso, já na mensagem de preparação das Jornadas lhes tinha dado ânimo. “Convido-vos a todos a olhar para dentro de vós próprios e a ‘dar nome’ aos vossos medos. Perguntai-vos: hoje, na situação concreta que estou a viver, o que é que me angustia, o que é que mais temo? Porque é que não tenho a coragem de abraçar as decisões importantes que deveria tomar?”. Continuou: “O medo nunca deve ter a última palavra, mas ser ocasião para realizar um acto de fé em Deus... e também na vida. Isto significa acreditar na bondade fundamental da existência que Deus nos deu, confiar que ele conduz a um fim bom, mesmo através de circunstâncias e vicissitudes muitas vezes misteriosas para nós.”
Logo à chegada, nas boas vindas, avisou: “O cristianismo não é um conjunto de verdades nas quais se tem de acreditar, de leis que se tem de cumprir ou de proibições. Assim, é repugnante. O cristianismo é uma Pessoa que me amou tanto que reclama e pede o meu amor. O cristianismo é Cristo e é amar com o mesmo amor com que ele nos amou.” E, utilizando linguagem digital, ele que não tem computador nem smartphone, como lembrou A. Tornielli, director dos média do Vaticano: A mensagem de Cristo “não é uma salvação armazenada na ‘cloud’ (nuvem) nem uma aplicação descarregável”; “a vida não espera ser descarregada, não é uma ‘aplicação’ nova a descobrir, a salvação é uma história de amor que se entretece com as nossas histórias.” Quanto às redes sociais alertou: “As redes servem para criar vínculos, mas não raízes, são incapazes de nos dar pertença, de fazer-nos sentir parte de um mesmo povo.”
No final da Via-Sacra, Francisco fez um reflexão sobre “o caminho de sofrimento e solidão” que Jesus já padeceu e que “continua nos nossos dias”. “Ele caminha e sofre em tantos rostos que sofrem a indiferença satisfeita e anestesiante da nossa sociedade que consome e se consome, que ignora e se ignora na dor dos seus irmãos.” A via-sacra da Humanidade prolonga a de Jesus “no grito sufocado das crianças que se impede de nascer e de tantas outras às quais se nega o direito de ter uma infância, família, educação, que não podem brincar, cantar; nas mulheres maltratadas, exploradas e abandonadas, despojadas e coisificadas na sua dignidade; nos olhos tristes dos jovens que vêem arrebatadas as suas esperanças de futuro pela falta de educação e trabalho digno; na angústia de rostos jovens que caem nas redes de gente sem escrúpulos — entre elas também se encontram pessoas que dizem servir-te, Senhor, redes de exploração, de criminalidade e de abuso, que se alimentam das suas vidas; na espiral de morte por causa da droga, do álcool, da prostituição e do tráfico; na dor oculta e indignante daqueles que, em vez de solidariedade por parte de uma sociedade repleta de abundância, encontram rejeição, dor e miséria, e mais: são tratados como os portadores e responsáveis por todo o mal social; na resignada solidão dos velhos abandonados e descartados; no grito da nossa mãe Terra, numa sociedade que perdeu a capacidade de chorar e comover-se perante a dor.”
Pediu aos jovens que continuem a sonhar e que sejam os “influencers do século XXI”: “ser ‘influencers’ no século XXI é ser guardiães das raízes, guardiães de tudo aquilo que impede que a nossa vida se torne gasosa, se evapore no nada. Sede guardiães de tudo aquilo que nos permite sentirmonos parte uns dos outros. Que pertencemos uns aos outros.” Avisou: “Não se está a dar raízes e alicerces à juventude”. “Sem educação, é difícil sonhar com um futuro. Sem trabalho, é muito difícil ter futuro, família e estar em comunidade.”
4. Já de regresso ao Vaticano, deu, como é hábito, uma conferência de imprensa no avião.
4.1. Renovou o pedido suplicante de “uma solução justa e pacífica” para a situação dramática da Venezuela, “respeitando os direitos humanos e desejando exclusivamente o bem de todos os seus habitantes”. E preveniu para o risco da violência: “O que mais me custa? O derramamento de sangue, e aí também peço grandeza aos que podem ajudar a resolver o problema”.
4.2. Quanto à cimeira anti-pedofilia, com os Presidentes de todas as Conferências Episcopais do mundo, convocada para os dias 21-24 de Fevereiro em Roma, disse que deve ser, em primeiro lugar e essencialmente, uma tomada de consciência da tragédia, “uma catequese para que se tome consciência do drama que é uma menina ou um menino abusados. Eu recebo com regularidade pessoas abusadas, e recordo uma que passou 40 anos sem conseguir rezar. É terrível o sofrimento.” Como disse, durante as Jornadas, Alessandro Gisotti, director de imprensa da Santa Sé, “A questão dos abusos está no centro, no coração e na mente de Francisco”, que quer que se adopte, durante a próxima cimeira de bispos, “medidas concretas” para combater esta “terrível chaga”. “Será uma ocasião sem precedentes para enfrentar, como dissemos muitas vezes, o problema e encontrar realmente medidas concretas para que, quando os bispos regressem de Roma às suas dioceses, possam combater este flagelo da Igreja.”
4.3. Francisco também foi dizendo que é contra o fim da lei do celibato obrigatório: “Pessoalmente, creio que o celibato é um dom à Igreja e eu não estou de acordo com a permissão do celibato opcional.” Mas está aberto à possibilidade, que está a ser estudada, de ordenar homens casados que deram e dão exemplo de maturidade humana e cristã. Como tenho escrito aqui, estou convencido de que isso vai tornar-se realidade já no Sínodo sobre a Amazónia, em Outubro próximo. Quanto à lei do celibato e ao seu fim, também estou convencido de que é uma questão de tempo. Francisco também saberá disso, mas está como João Paulo II: “Eu sei que os padres hão-de vir a poder casar, mas isso não acontecerá no meu pontificado.”
5. Já após o anúncio de que a sede das próximas Jornadas será Portugal, Francisco agradeceu a todos, sobretudo aos jovens: “A vossa fé e alegria fizeram vibrar o Panamá, a América e o mundo inteiro. Somos peregrinos, continuai a caminhar, continuai a viver a fé e a partilhá-la; vós, queridos jovens, não sois o futuro nem o ‘entretanto’, mas o agora de Deus. Peço-vos que não deixeis esfriar o que vivestes durante estes dias.” Uma expressão belíssima, plena de sentido: sois “o agora” de Deus.
Em 2022, pensa-se que poderão participar 2 milhões de jovens de todo o mundo no acontecimento com mais representatividade de sempre em Portugal, precisamente as Jornadas Mundiais da Juventude. Reunidos na alegria da juventude, da festa, do encontro de culturas e histórias diferentes, estabelecendo pontes — o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o Patriarca de Lisboa Manuel Clemente lembraram concretamente as pontes com o mundo lusófono, sobretudo na África, o único continente que ainda não recebeu as Jornadas —, sabem que o ponto de confluência e união é a fé em Jesus Cristo.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado o no DN | 3 FEV 2019