Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Ali, debruçada no tanque, cantavas para dentro a canção das raparigas tristes, arrancadas à mocidade, como os malmequeres frescos, na jarra da avó, sobre a mesa. Meu filho, meu enigma azul dos céus do sul, dizias. Tanta ternura, tanto mel coado, dourado, exposto a um vendaval de chamas súbitas. Como procurar-te agora, na eternidade das cinzas, entre as raízes que ainda sangram. Como ver-te, uma vez mais, reencarnada em jovem noiva traída pelo mar, junto às mulheres de luto. Eras a lenta rotação das tardes, e pelas tardes descias a montanha e depois chegavas ao vale da sombra. Cantavas, para que eu adormecesse enfim, apertando nos braços uma estrela, cantavas a canção das raparigas tristes de uma ilha. Minha mãe, é contigo que falo, depois de ponderadas as distâncias que vão de um berço a uma lápide, depois de ouvir os pássaros, chamando por mim, interrompendo-se bruscamente, quando a minha respiração os sobressaltava, sem saberem que no meu peito já pouco ar o percorria.
in Caminharei pelo Vale da Sombra, 2011
There
There, bending over the washing, you sang inside yourself the song of sad girls, those torn from youth, like freshly cut marigolds in grandmother’s vase, on the table. My son, my blue enigma of southern skies, you said. So much tenderness, so much clear, golden honey, exposed to a storm of sudden flames. How can I look for you now, in the eternity of ashes, among the roots, still bleeding. How can I see you once more re-incarnate in the young bride betrayed by the sea, next to the mourning women. You were the slow revolving of the afternoons, and through them you came down the mountain and reached the valley of shadow. You sang so that I fell asleep, holding a star, you sang the sad song of an island girl. Mother, it’s with you I speak, mourning the distance from a crib to a tombstone, after hearing birds calling me, and suddenly stop, when my breathing startled them, unaware that my chest held but a little breath.
Envelhecemos lado a lado, meu amigo, companheiro das sinuosas veredas de cardos e urtigas, guardador dos rebanho brancos e de cada solitária rosa dos meus dias, calámo-nos juntos, meu amigo, companheiro de maculada voz, e agora já não poderei levar-te desta margem às outras margens, onde havias de suavizar, ternamente, as minhas feridas. Sei que em breve te direi adeus. Tenho medo de saber como serão as horas de uma casa, vazia para sempre, depois de ti.
in Esta voz é quase o vento, 2004
Dog
We grew old side by side, my friend, my companion of winding paths of thistles and nettles, guardian of white flocks and of the solitary rose of my days, we stood silent together, my friend, my companion of maculate voice, and now I’ll no longer be able to take you from this shore to another, where you would, tenderly, soothe my wounds. I know I’ll soon bid you farewell. I dread knowing how the hours of a house will be, forever empty, after you.
É a prata da minha amada. Dir-lhe-ei docemente adeus, e que não arranque os espinhos da primeira rosa, subindo pela vida. E quando eu caminhar pelo vale da sombra, ela descerá ao pequeno porto, descalçando as sandálias, mergulhando no mar, repetindo os nomes de todos os que partiram, de todos os que a amaram, hesitando à entrada da taberna, vendo o meu lugar vazio, o violino sobre a mesa, um silêncio maior que a lentidão das praias, e pensará em tudo, em cada som, em cada lágrima, em nada. Ela voltará as costas. Nunca fomos deste mundo, dir-lhe-ei por fim, ao fechar a última porta.
in Caminharei pelo Vale da Sombra, 2011
It is my beloved’s silver
It is my beloved’s silver. I’ll gently say good-bye, and tell her not to cut the thorns of the first life-climbing rose. And when I walk through the valley of the shadow, she’ll come down to the small harbour, taking off her sandals, dive into the sea, repeating the names of all who left, of all who loved her, hesitating at the tavern door, seeing my empty place, the violin on the table, a silence greater than the slowness of the sea shores, and she’ll consider everything, in each sound, in each tear, in nothing. She’ll turn her back. We have never been of this world, I’ll finally tell her, as I close the last door.