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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UM TEXTO DE GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS SOBRE UMA CASA DE ESCRITORES

 

Cito hoje um texto de Guilherme d’Oliveira Martins publicado muito recentemente no Diário de Notícias (16/03/2021) sob o título “O soviete dos Caetanos” e que evoca precisamente (e cito) a então “Calçada dos Caetanos (hoje Rua João Pereira da Rosa) no Bairro Alto, entre o Conservatório e a Rua do Século, a antiga Rua Formosa. Aí moraram Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, António Ferro e Fernanda de Castro. E estes chamavam-lhe “o soviete dos Caetanos” e tudo se partilhava desde o sal e o pão até ao teatro, a poesia e a arte” assim mesmo!...


O texto descreve com detalhes o historial da família, designadamente os tios-bisavós Vitória e Joaquim Pedro, além de mais familiares. É desde logo de assinalar que foi Ramalho Ortigão quem orientou em 1888 a casa para Oliveira Martins.


E mais:
Independentemente dessas ligações familiares/residenciais, ou na sequência deles, importa referir, citando as evocações do texto, que António Ferro instalou no prédio um centro social-cultural com um pequeno teatro.


E no prédio viveram ainda, diz-nos o texto, Ofélia e Bernardo Marques, Fred Kradolfer, José Gomes Ferreira e sua mulher (na época) Ingrid.


O texto de Guilherme d’Oliveira Martins que aqui cito, traz transcrições diversas de memoriais da casa e/ou da sua sucessiva utilização por famílias que se destacaram já na época e hoje marcam a cultura do nosso tempo. Algumas transcrições que a seguir fazemos mostram-no bem. Assim, Oliveira Martins transcreve Fernanda de Castro numa longa citação do livro “Ao Fim da Memória” editado pela Verbo em 1986. Citamos designadamente:


“Não tínhamos cheta, ninguém tinha um tostão. Fazia-se café e chá, o Leitão de Barros trazia coisas de casa, eu comprava seis bolos de arroz que cortava em fatias e servia em pratas da Índia. Era deslumbrante! As reuniões literárias, as leituras de peças e de poemas, eram um encanto”.


E mais acrescenta Guilherme d’Oliveira Martins:
“Ninguém pensava em dinheiro, havia então essa superioridade de espírito, os valores dominantes eram os da honradez, os de não nos aproveitarmos das coisas públicas”.


E ainda mais acrescenta que num encontro casual com António Quadros, ele se queixou do estado em que se encontrava a casa onde ainda vivia a sua mãe Fernanda de Castro. A seguir cruza-se com Rui Godinho, Vereador da Câmara Municipal de Lisboa. Oliveira Martins narrou-lhe a conversa: e desse encontro acabou por resultar a recuperação da casa que aliás tinha já na altura lápides evocativas de Ramalho Ortigão, do Oliveira Martins e de António Ferro.


E daí veio a recuperação do prédio. “Pouco tempo depois, o prédio foi devidamente posto em condições, sendo, com inteira justiça, o que tem maior número de invocações na cidade”.


E, tal como afirma ainda Guilherme d’Oliveira Martins, agora “falta apenas colocar a Iápide de lembrança de António Quadros”...!

 

DUARTE IVO CRUZ

JOSÉ GOMES FERREIRA

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Reli “A POESIA CONTINUA – Velhas e novas circunstanciais” de José Gomes ferreira, livro com a chancela da Moraes editores.

A sua escrita neste livro, e passados tantos anos sobre a sua leitura, fez-me pressentir ângulos de interpretação, uns mais, outros menos, dentro da lembrança que guardava. Refiro-me com curiosidade e, sobretudo, ao modo como a sua poesia aborda o sofrimento

Sonhei-me demais e agora

já não me atrevo a ser eu,

nem a andar nu, cá por fora,

sem mim mesmo como véu.

Fui sentindo o quanto era necessário a José Gomes Ferreira dizer da ruptura com o quotidiano interior, num escancarar de gesto preso à condição que o agarra e oposta ao seu desejo. Conhece José Gomes Ferreira os limites das próprias expectativas de si e dos outros. É um operário de um produto que paga com os dias cada decepção que a vida lhe impõe. Agride-o a sociedade mercantilista, repudia o que chama de democracia burguesa e entristece-o o caminho da revolução de 1974. «Democracia é alternância»/repetiu de novo a embalar o tédio/um senhor de sono espesso./Como se fosse possível – ó glória! Ó ânsia! - /construir um prédio/mudando de vez em quando/os mesmos tijolos do avesso.

Consome-o que a energia não baste para lhe dar força ao seu sonho. E de novo o sofrimento modelador da paisagem dos dias é o excedente de cada noite de vigília. A clara ideia de que o detentor da arma atómica não receia represálias e que essa arma não cabe nos limites da natureza, deveria, forçosamente, levar a uma fase nova de progresso e possibilidade. Mas não. E a raiva dos pássaros perdidos em voo antes de chegarem à paisagem desejada por José Gomes Ferreira, necessariamente deixa-lhe cinzas nas mãos.

Escreve:

Um homem gigantesco com milhares de bocas empunhava um cartaz onde se lia em letras ardentes: AGORA TODOS TEMOS DE SER MÁGICOS

Quanta zanga! Quanta vontade! Quanta solidão daquela que é boa para não se estar sozinho.

Recordei A. Malraux «Sei mal o que é a liberdade, mas a libertação sei o que é.» Entenderia José Gomes Ferreira que afinal depois do depois, tínhamos ficado muitíssimo bem disciplinados, pois culpa nossa, não lutáramos pelo mesmo que ele, e, por essa razão, éramos cegos por igual? Ou, a nossa visão militante do mundo era outra?

É de Agustina Bessa Luís a frase

NINGUÉM É MAU. O QUE SOMOS É AINDA NOVOS DE MAIS NA TERRA

Por mim ainda penso, que a ruptura com atavismos e com o que de castrante tem a família, os primeiros beijos, as conversas do estar no mundo, tudo e o mais em proximidade e distância, não me fez o sofrimento na poesia daquele tempo. A anarquia, essa é inata ao poema, e, desde que lá esteja, ele é claridade e rei.

E num repente tão inato e tão humano de José Gomes Ferreira, este poema:

Digam-me lá:

para que serviria ser poeta

se não chorasse

publicamente

diante do mundo?

E Fernando Pessoa

Somos incapazes de revolta e de agitação (…) não nos resulta uma perturbação das consciências.

Eu, na altura da revolução de 74, estava assim num ponto em que uma pessoa começa a descobrir uma data de coisas de que normalmente nem suspeitava. No primeiro dia de greve, andei a limpar os livros todos, para demonstrar a mim mesma que não ia usar bandeira que minha não fosse. E é isso também, é quando se não volta atrás pois esse não voltar quer dizer evoluir. Quer dizer, quantas vezes, que a ingenuidade pode ser amarga e ainda assim, resisto, insisto e fico onde me leva o palpável sonho que construo.

 

Teresa Bracinha Vieira
Novembro 2015