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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 31 de julho a 6 de agosto de 2023


Ao falar de identidade nacional, José Mattoso lembrava a anedota que se contava do rei D. Luís quando, já bem adiantado no século XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou se eram portugueses e a resposta foi bem clara: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa de Varzim”.

 


Com efeito, é sempre complexo o processo de definição do que designamos por identidade nacional. Ela é inseparável de uma perceção coletiva. Por isso a consciência histórica é fundamental, correspondendo à noção de apropriação do poder, tendo no caso de Portugal o Estado precedido a Nação, num processo lento e gradual. Esta anedota serve para se perceber que, longe de um entendimento fechado, estamos perante uma realidade complexa e aberta, que no caso português se traduz num curioso cadinho que, na diversidade, se uniformizou no território, na fronteira, na língua e numa construção convergente realizada de norte para sul e de sul para norte. “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida” – disse-o José Mattoso (cf. A História Contemplativa – Ensaio, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2020). “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida. Uma verifica os vestígios deixados pelo que aconteceu e relaciona-os entre si para representar o que já não existe. A outra é o conjunto dos próprios acontecimentos, que se sucedem no tempo e por isso podem ser recordados por quem os viveu, mas já não existem. Ao escrever a História construímos uma representação, ou seja, uma réplica do que aconteceu. Com efeito, os acontecimentos deram-se em momentos fortuitos, que não podemos representar porque a cada um deles segue-se outro momento”. A História-escrita não explica a reação dos poveiros. E para o historiador o encadeamento dos factos corresponde a operações mentais. Daí a necessidade de sínteses, de classificações, de agrupamentos racionais. Contudo, perante a complexidade temos dificuldade em distinguir o individual e o coletivo, o nacional e o internacional, os fatores sincrónicos e diacrónicos. Assim, a organização do tempo revela-se importante não apenas para distinguir a sucessão dos acontecimentos, mas também para permitir a comparação com o que ocorre noutros horizontes e que converge e diverge entre si. Como há um movimento permanente e simultâneo da sociedade humana, só podemos situar-nos na razão de ser das coisas a partir das referidas operações mentais.


ANÁLISE CERTEIRA E INOVADORA
José Mattoso fez uma análise certeira e inovadora, usando uma metáfora feliz: a História-escrita assemelha-se à maquette de um edifício que já não existe, mas que idealizamos e pode ser reconstruída. A História-vivida não tem lugar na realidade, desapareceu, mas pode ser representada pela História-escrita, como operação que procura ser verosímil. É algo que já não existe, uma vez que está a ser apenas objeto de uma projeção – e, sendo-o. Move-se, modifica-se sob o risco de permanente anacronismo, uma vez que a crítica é influenciada pelas mentalidades. Pode aproximar-se da objetividade, sem certezas, mas não está preservada da neutralidade. Lembremo-nos dos conceitos de identidade e de património cultural. José Mattoso teve o cuidado de encarar tais realidades como elementos complexos. “Quando o pensamento moderno se apropriou da História para reconstituir o passado, procurou rever as histórias nacionais para excluir as lendas e milagres, mitos, revelações e fantasias, descobrir causas e efeitos, e enfim impor a racionalidade e a lógica das narrativas anteriores”. Houve, assim, a tentação de reduzir tudo à racionalidade e à mentalidade ocidental. A diversidade, a recusa da superficialidade das análises, a exigência da compreensão do contexto – já que os factos dependem não só das decisões individuais ou coletivas, mas de fatores estruturais, antes desvalorizados. O tempo curto e o tempo longo têm de se articular – ensinou-o Braudel. E a memória recorda o que aconteceu, representando-o, ainda que de um modo fragmentado. No caso dos poveiros, temos a experiência da pesca e do conhecimento do mar no tempo longo e a vulnerabilidade das correntes e da meteorologia, bem como a maior ou menor presença do pescado no tempo curto, os economistas chamam-lhe estrutura e conjuntura. Mas como poderemos analisar a vida humana transcendendo o efémero? E Paul Ricoeur leva-nos para um caminho em que possamos usar uma mediação imperfeita ou incompleta entre o futuro, o passado e o presente. E se falamos de mediações e de instituições estamos no cerne da interrogação sobre como podemos colocar as pessoas como protagonistas da organização da sociedade e da realização do bem comum.


CHEGAR À CONTEMPLAÇÃO
Para José Mattoso, chegamos assim à contemplação, que é o único modo de entender a unicidade e a coerência do ser, compreendendo a diversidade e a complementaridade, a prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão, a consideração do método que valoriza o contexto e o conjunto, o reconhecimento do elo entre a unidade e a diversidade da condição humana, além  da aprendizagem de uma identidade planetária, da exigência da atenção ao inesperado e ao incerto como marcas do nosso tempo, da educação para a compreensão mútua entre as pessoas de pertenças e culturas diferentes e do desenvolvimento de uma ética do género humano de acordo com uma cidadania inclusiva – em que insiste Edgar Morin. “Ao captar a realidade pluridimensional do Homem no tempo, nasce nele o verbo silencioso forte de imagens, símbolos e alegorias que não o esgotam, mas indicam o sentido da vida humana sobre a terra, tudo o que se passa no tempo – os grandes impérios, o sofrimento dos excluídos, a renúncia aos bens terrenos, o amor e o desejo, o riso das crianças que brincam no campo, a exploração da terra, a composição de uma sinfonia musical – enfim tudo o que é real. Tudo tem sentido, tudo pode desencadear a exaltação de quem descobre esse mesmo sentido”. E eis-nos diante do paradoxo que é a existência humana, evidenciado no mistério revelado na fórmula de Pedro Calderón de la Barca de que “a vida é sonho”. A História-escrita e a História-vivida explicam uma exigência de compreensão da importância do tempo e da reflexão, da contemplação e do mistério…   José Mattoso, foi um profundo renovador da moderna historiografia em Portugal, sendo exemplar nos novos métodos e na revelação de muitos enigmas, renovando a investigação como um campo de complexidade e de compreensão, até para se entender a necessidade de uma melhor vivência democrática, bem como da defesa efetiva do património cultural e de uma relação europeia e global mais profícua.


Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

  

De 10 a 16 de julho de 2023


"A História Contemplativa" de José Mattoso (Temas e Debates, 2020) é ponto de partida para a invocação da Carta Apostólica do Papa Francisco “Sublimitas et Miseria Hominis” sobre 4 séculos do nascimento de Blaise Pascal.



A HISTÓRIA HUMANA… 
Começo por recordar a memória de José Mattoso (1933-2023), referência fundamental da moderna historiografia e da cultura portuguesa. Deixo uma breve citação, na qual recordo o seu espírito: “A minha visão da História humana, da História-vivida, é contemplativa. Sem dispensar nenhum dos recursos da investigação crítica, da heurística, da cronologia, da situação no espaço, da reconstituição dos factos, da perceção das ideias, da averiguação dos conjuntos humanos, do sentido dos mitos e dos rituais, procuro nela a trajetória temporal do Homem que creio ter sido feito à imagem e semelhança de Deus. Procuro a relação do Homem – de qualquer homem e de qualquer mulher – com o Filho do Homem (Mateus 8,20; Marcos 8,31). Do Filho do Homem que é igualmente Filho de Deus vivo (cf. João 6,51) Não esqueçamos que a atitude contemplativa é da ordem da visão. Requer um olhar atento, global, pacífico, não interventivo. Um olhar que capta as relações do pequeno com o grande, do singular com o plural, do diferente com o semelhante, do mesmo com o contrário. O olhar que coloca as coisas na sua ordem, que permite descobrir os géneros e as espécies, que classifica os conjuntos e que lhes atribui qualidades. Um olhar que reconhece o movimento e as mutações, sem que a diferença de tempo altere a identidade. Um olhar que compreende os percursos e os destinos da Humanidade, a atração e a repulsa, o amor e o ódio. (…) A visão contemplativa da História total faz da Arte, um dos caminhos que creio poderem conduzir ao Transcendente” (in “A História Contemplativa, Temas e Debates, 2020).


A RELIGIÃO E O MUNDO
O Papa Francisco, quando se assinalam quatro séculos do nascimento de Blaise Pascal (1623-1662), filósofo, matemático e homem de fé, põe-nos diante deste tema que tão bem foi tratado por José Mattoso, na linha dos ensinamentos e reflexões de Yves Congar, O.P., a quem devemos o diagnóstico sobre as razões da incredulidade dos dias de hoje – “a uma religião sem mundo, sucede um mundo sem religião”. Daí a preocupação de João XXIII sobre a compreensão dos sinais dos tempos e sobre a exigência de olharmos o mundo com olhos de ver. “Sublimitas et Miseria Hominis” é o título da Carta Apostólica e trata-se de um documento excecional, já que reflete sobre a experiência de um cientista cristão, que fez luz sobre a dignidade humana. É a vida vivida que está em causa “um olhar que compreende os percursos e os destinos da Humanidade”. «Desde criança e por toda a vida, (Pascal) procurou a verdade. Com a razão, esquadrinhou os sinais dela, especialmente nos campos da matemática, geometria, física e filosofia. Em idade ainda muito precoce, fez descobertas extraordinárias, alcançando fama considerável. Mas não ficou por aí. Num século de grandes progressos em muitos campos da ciência, acompanhados, porém, dum crescente espírito de ceticismo filosófico e religioso, (o cientista) mostrou-se um incansável investigador do verdadeiro: como tal, permaneceu sempre «inquieto», atraído por novos e mais amplos horizontes». A homenagem a alguém que se tornou célebre pelos sucessos científicos e técnicos e pelos trabalhos desenvolvidos na busca da verdade dos factos e das experiências, permite-nos pôr a tónica na modernidade e nas suas virtudes, dúvidas e perplexidades. «Se Blaise Pascal consegue tocar a todos, é sobretudo porque falou admiravelmente da condição humana. Mas seria errado ver nele apenas um especialista, embora genial, dos costumes humanos. O monumento formado pelos seus Pensamentos, de que alguns ditos isolados ficaram célebres, não se pode compreender realmente se se ignora que Jesus Cristo e a Sagrada Escritura constituem simultaneamente o centro e a chave do mesmo». A um tempo, Pascal adverte-nos contra a tentação de nos considerarmos como possuidores da verdade, mas também contra as falsas doutrinas e as superstições «que mantêm, a tantos de nós, longe da paz e alegria duradouras d’Aquele que deseja que escolhamos a vida e a felicidade, não a morte e a desventura». De facto, «sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetas à mercê das tendências da ocasião».


UMA CANA PENSANTE
Tem razão o Papa Francisco, quando salienta que «para se compreender bem o discurso de Pascal sobre o cristianismo, é necessário estar atento à sua filosofia”. Daí a exigência do sentido crítico e do entendimento dos limites, já que o estoicismo leva ao orgulho e o ceticismo ao desespero. E a razão humana é uma maravilha da criação, que distingue o homem dentre todas as criaturas, porque «o homem não passa duma cana, a mais frágil da natureza, mas uma cana pensante». Blaise Pascal colocou o amor dos seus irmãos em primeiro lugar. Sentiu-se e reconheceu-se como membro do Povo de Deus, porque nada é mais perigoso do que um pensamento desencarnado: «Quem quer fazer o anjo, faz a besta». E há ideologias mortíferas, que mantêm os seus sequazes em redomas como se o ideal substituísse o real. Como leigo, saboreou a alegria do Evangelho, com que o Espírito quer fecundar e curar «todas as dimensões do homem» e reunir todos os homens à volta da mesa do Reino. Quando escreveu a Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças (1659), Pascal era um homem pacificado, fora da controvérsia e da apologética. Estando à beira da morte, desejou morrer na companhia dos pobres, com a simplicidade duma criança. E depois de receber os Sacramentos, as últimas palavras foram: «Que Deus nunca me abandone». 


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL


30. JOSÉ MATTOSO (II)


Quanto à alegada incapacidade de planeamento dos portugueses, aliada ao talento para a improvisação, JM desmistifica-a dizendo tratar-se de um fenómeno normal numa sociedade semiperiférica, o que desapareceria com a generalização de um ensino racional e a preferência pelo valor da previsão mais do que do imediato e do inesperado, pondo de lado uma acentuada concentração de poder e recursos de uma minoria que gira em redor do Estado, gerando uma permanente convicção da inutilidade das previsões, da impossibilidade de assumir responsabilidades sociais e a não capacidade de participar nas decisões, concluindo:

“Se,…, o sucesso - não só económico e político, mas também cultural - estava praticamente garantido mas só para alguns, qualquer que fosse a sua competência, não seria mais rentável para os outros (para a maioria) exercitar os dotes da improvisação, a habilidade para viver o dia a dia, quando não o jeito para a pequena fraude, a economia paralela, a  fuga aos impostos, a “cunha”, o clientelismo? Ou, no melhor dos casos, descobrir o fascínio de viver intensamente o dia a dia, momento a momento, aproveitando as coisas boas da existência, como o convívio e a afetividade, ou as mais emotivas, como a paixão, a intriga ou o jogo, com tudo o que ele tem de aleatório? Confirmar-se-ia, assim, uma das caraterísticas mais típicas dos portugueses, uma daquelas,…, que mais entusiasmou Agostinho da Silva. Mas será só deles? Não existe também noutras sociedades da Europa meridional, ou mesmo naquelas que não alcançaram o “benefício” da civilização e não se renderam à racionalidade?”.  

Embora tais críticas, argumentos e observações possam ser empírica e objetivamente aceitáveis (algumas bem atualistas na nossa sociedade), dentro dum relativismo determinista das coisas, sem prejuízo de, em rigor, tudo poder ser tido como subjetivo (no sentido de todos os nossos conhecimentos e opiniões são fruto da perceção individual de cada um de nós); parece assertivo questionarmo-nos de que o mesmo não possa ser extensivo, em maior ou menor grau, a qualquer outro povo ou grupo social estável em termos de regularidade, o mesmo quanto à emotividade, irrealismo e sonho das chamadas teorias providencialistas, míticas e messiânicas, para além de que nenhuma teoria se pode arrogar totalmente “determinista” (incluindo as míticas, messiânicas, utópicas), porque o que é tido como “determinista” hoje pode não o ser amanhã. Não pode o sonho ser “uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer”? (poema de António Gedeão cantado por Manuel Freire). 

Por que também há uma dimensão espiritual em tudo, mesmo em democracia e no Estado de Direito (que podem ser vistos como uma religião laica).

 

05.11.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL


29. JOSÉ MATTOSO (I)


“Se o critério é o da objetividade, teremos de excluir, desde logo, as teorias messiânicas, tão insistentes e tão carregadas de emotividade, acerca do destino universal do povo português, do seu insondável ”mistério” e da sua irredutível originalidade” (José Mattoso, “A Identidade Nacional”).   

A inventariação dos carateres específicos da gente portuguesa é um processo ilusório:   

“Nem o sebastianismo, nem a saudade, postas em relevo por António Sardinha, nem o universalismo internacionalista, propalado por vários autores, nem o lirismo sonhador aliado ao fáustico germânico e ao fatalismo oriental, apontados por Jorge Dias, nem a plasticidade do homem português, intuída por Natália Correia, nem o culto do Espírito Santo, que fascinou António Quadros, nem a capacidade para criar uma “filosofia portuguesa”, patrocinada por Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro e José Marinho, nem mesmo a “brandura dos costumes”, feita lugar comum, se podem considerar como caraterísticas mais do que imaginárias do povo português” (José Mattoso, idem).

Mattoso reconhece que tais interpretações não têm todas o mesmo grau de arbitrariedade ou de subjetividade, sendo premente distinguir aquelas que partem da observação empírica de carateres comportamentais que podem corresponder factualmente a hábitos mentais, daquelas que se fundamentam em especulações de tipo idealista ou de feição mística, merecendo as primeiras, segundo diz, maior atenção, competindo a sua análise e espírito crítico a especialistas da área da sociologia geral, que ele não é, tomando a História como ponto de referência para algumas interrogações sobre elas, do ponto de vista do historiador, como se reclama. 

Após afirmar ter sido necessária a democratização de Portugal e a perda das colónias, para que o passado deixasse de ser visto como tempo glorioso, uma “idade de ouro”, e de defender que o teor subjetivo dos seus critérios e o método impressionista de tais teorias são sempre impossíveis de demonstrar reconhece, de seguida, não podermos também “deixar de registar a formação de uma espécie de consenso a respeito de alguns deles”.      

Exemplifica-o com os estudos do antropólogo Jorge Dias sobre o caráter nacional português, para quem a personalidade básica do português é “um misto de sonhador e de homem de ação,…, um sonhador ativo a que falta certo fundo prático e realista”, com “enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres sem que isso implique perda de caráter”, “…tem vivo um sentido da Natureza e um fundo poético e contemplativo…”, “No momento em que o português é chamado a desempenhar qualquer papel importante, põe em jogo todas as suas qualidades de ação, abnegação, sacrifício e coragem e cumpre como poucos”, “Para o português, o coração é a medida de todas as coisas”, “é um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento”.

Entende, JM, que o perfil de português de Jorge Dias aponta para a permanência de estruturas de longa duração relacionadas com tendências mentais aparentemente comuns, não sendo carateres intrínsecos ao povo português, mas tendências correntes que podem modificar-se se as condições estruturais de ordem económica e social se modificarem. Interroga-se, com outros: quanto à saudade-lirismo, não se relacionará com a constatação de tantos portugueses terem de emigrar, desde sempre, para sobreviver?

 

29.10.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A VIDA DOS LIVROS

De 10 a 16 de junho de 2019

 

 

A atribuição a José Mattoso do Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes constitui um justo reconhecimento de uma carreira exemplar de historiador, ensaísta, pedagogo e pensador a quem muito deve a cultura portuguesa.

 

 

IDENTIDADE NACIONAL
A propósito da identidade nacional, pode dizer-se que o contributo dado por José Mattoso corresponde à consideração da diferença como fator de distinção e de complementaridade – e não como elemento de autossuficiência ou de suposta superioridade. “A identidade nacional, tal como existe hoje, resulta de um processo histórico que passou por diversas fases até atingir a expressão que hoje conhecemos”. Daí que as simplificações se revelem erróneas, sobretudo quando procuram ligar a identidade a elementos naturais, fazendo coincidir a nação com um modelo fechado ou completo de organização política e social. Se no caso português há especificidades, devem elas ser analisadas, em nome da complexidade e do conhecimento dos factos históricos. É verdade que, como muitos autores têm reconhecido, a coincidência entre Estado e Nação, como encontramos no caso português, exige a compreensão de que a encruzilhada de influências do “melting pot” demonstra a importância do intercâmbio de contributos, dados e recebidos, que permitem enriquecer a identidade como realidade aberta e dinâmica, como acontece com o património cultural, que não é uma reminiscência do passado, mas expressão da própria vida. As identidades são tanto mais ricas e fecundas quanto maior disponibilidade houver para a respetiva renovação e valorização. Os últimos anos, o fim do império, a perda das colónias, o retorno, a abertura democrática, a opção europeia permitiram compreender que “a História passou (…) a poder narrar um passado real, com ganhos e perdas, com avanços e recuos, fidelidades e traições, sucessos ou insucessos, unanimidades e contradições; e apesar de tudo como um passado constitutivo da coesão nacional, pelo simples facto de ser um passado comum e de resultar de uma experiência vivida em conjunto ou tornada memória coletiva” (A Identidade Nacional, Fundação Mário Soares – Gradiva, 1998, p. 104). Num tempo em que surgem nuvens negras no horizonte a propósito do fechamento das identidades, da emergência dos nacionalismos e de tentações absolutistas ou relativistas, a leitura da obra de um historiador como José Mattoso constitui motivo de tomada de consciência da responsabilidade cívica e da mediação das instituições como pedra de toque da democracia.

 

ENTRE O CONVENTO E A ACADEMIA
Nascido em 1933, José Mattoso dedicou a sua vida à docência universitária e ao estudo da história das ordens religiosas e das sociedades europeias dos séculos X a XIII. A Identificação de Um País (1985) é uma obra fundamental da historiografia do século XX, que deve ser colocada junto da melhor literatura moderna, desde Alexandre Herculano. A Nobreza Medieval Portuguesa (1982), O Reino dos Mortos na Idade Média (1996), Os Poderes Invisíveis (2001), ou D. Afonso Henriques (2006) constituem corolário lógico de uma investigação persistente, inteligente e rigorosa que nos permite compreender a uma nova luz as raízes da História portuguesa e da nossa cultura. De salientar ainda a direção de obras coletivas, como História de Portugal, Circulo de Leitores (1993-94), História da Vida Privada em Portugal (2010-11) e Património de Origem Portuguesa no Mundo, Fundação C. Gulbenkian (2010). Saliente-se que este último trabalho constitui base de uma plataforma dinâmica, em permanente atualização, que vive animada pelo espírito de abertura e de reconhecimento da importância de uma leitura dinâmica e crítica do Património Cultural, não como realidade do passado, mas como fator de enriquecimento mútuo e de criação de valor. Em 1987 recebeu o Prémio Pessoa e foi ainda diretor da Torre do Tombo (1996-98). Entre 2000 e 2005, colaborou na recuperação dos Arquivos de Timor-Leste, em colaboração com a Fundação Mário Soares. A sucinta referência destes elementos biobibliográficos tem de ser lida em ligação com a riquíssima reflexão espiritual e científica, que revela uma personalidade fascinante, sem cujo conhecimento não podemos compreender uma cultura viva, na qual encontramos a herança e a memória, bem como um entendimento do património cultural – material e imaterial, natural e paisagístico, técnico e digital, em articulação estreita com a contemporaneidade. É esta ligação entre património cultural e criação contemporânea, entre cultura e inovação que nos permite colocar o magistério de José Mattoso na linha da frente da mais rica reflexão da UNESCO e no Conselho da Europa.

 

LABIRINTOS DA SABEDORIA
Numa notável reunião de textos de 2012, Levantar o Céu – Os Labirintos da Sabedoria (Temas e Debates), lembrando a sua vida espiritual, José Mattoso reflete sobre Sabedoria e Razão e Sabedoria e Fé. A sabedoria obriga-nos a ir além das aparências e no entanto “parece-nos estar a caminho do abismo. O homem adquiriu meios técnicos de agir sobre a Natureza, mas não parece capaz de restaurar os equilíbrios que ela cria. São equilíbrios que condicionam a sobrevivência da Humanidade. O contraste entre o excesso de poder de uns poucos e o excesso de miséria da maioria é posto em evidência por todos os meios de comunicação. Estes informam-nos todos os dias e a toda a hora acerca do aquecimento global e dos seus efeitos sobre o mundo biológico, do aumento incontornável do lixo radioativo e dos materiais não recicláveis, da impossibilidade de verificar a nocividade das culturas transgénicas, da ocultação de produtos nocivos na industria alimentar e farmacêutica, da ausência de controlo da industria militar e da venda de armas, da escassez da água e da energia. Informam-nos, enfim, acerca de fragilidade do mundo em que vivemos (pp. 9-10). “Levantar o céu” é o nome que os mestres do chi kung (uma variante do tai chi) dão a um dos seus exercícios, que consiste em levantar os braços em arco com as palmas das mãos apontadas uma para a outra viradas para cima, isto é para o “Céu”. Yiang (céu) contrapõe-se a Yin (terra) na cultura chinesa. Trata-se, no fundo, de reconhecer a importância da componente espiritual da existência. Eduardo Lourenço refere a importância de tentar “desvendar ou antecipar o que nos espera, o nosso destino” – ou seja, “da consciência de que essas coisas em que se crê, em que mais do que se crê, se investe a totalidade da vida, constituem a substância das coisas esperadas…”. A crise financeira de 2008 correspondeu a uma crise de valores e obrigou a entender a esperança que brota da própria crise. “A pobreza, a redução de custos, a limitação do consumo, a contenção dos desperdícios, a aceitação da austeridade têm as suas vantagens. Tornam o homem menos dependente das instituições, da opinião pública, dos vendedores de ilusões” (p.36). Para José Mattoso “é bom acreditar que merece a pena ‘levantar o Céu’ e lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos. Felizmente há muitas mulheres e homens neste mundo a tentar unir esforços para manter o contacto entre o Céu e a Terra. É esse o caminho que a sabedoria ensina a percorrer para encontrar a saída do labirinto em que a vida nos coloca”…       

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

De 18 a 24 de fevereiro de 2019.

 

 

«Património de Origem Portuguesa no Mundo – Arquitetura e Urbanismo» sob direção de José Mattoso (F. C. Gulbenkian, 2010-2011) abrange três volumes e Índices e deu origem ao Portal HPIP – Património de Influência Portuguesa, que é um projeto único, indispensável para os estudiosos do tema, como agora se recorda.

 

 

UMA DESCOBERTA FUNDAMENTAL
A recente descoberta de uma capela quinhentista na Cidade Velha, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, constitui uma nova demonstração (se tal não fosse já claro) da importância da inclusão da Ribeira Grande na lista do Património mundial da UNESCO, que tive o gosto de apoiar desde o início. Trata-se de um exemplo, entre outros, de como o conhecimento do património artístico e arqueológico merece especial atenção e cuidado. Neste momento, a comunidade científica acompanha os trabalhos que estão a ser realizados no local, no âmbito do projeto “Concha” e que permitirão devolver ao público um marco de grande valia no património cultural da humanidade. De facto, no final do presente ano, poderemos visitar o templo devidamente restaurado e próximo da sua versão original, em condições de segurança e qualidade. E devemos insistir na compreensão do Património Cultural, não como realidade do passado ou como marca de uma qualquer identidade, ainda que multiforme, mas como um exemplo de um valor comum, partilhado por diversas culturas e comunidades. E não devo esquecer a reflexão dinâmica desenvolvida na UNESCO e no Conselho da Europa (designadamente na Convenção de Faro sobre o valor do património cultural na sociedade contemporânea - 2005) numa perspetiva aberta e crítica, e não fechada e retrospetiva, a propósito do património e da cultura. As lições do recentemente terminado Ano Europeu do Património Cultural - 2018 apontam nesse sentido, com especial ênfase para a mobilização dos cidadãos para a defesa do património como realidade comum, como realidade inclusiva e não exclusiva.          

                                             

UM PROJETO NOTÁVEL
Serve esta referência para lembrar a importância do projeto “Património de Influência Portuguesa – HPIP”, lançado pela Fundação Gulbenkian em 2012, na sequência do inventário sistemático do património histórico de origem portuguesa, arquitetura e urbanismo, lançado por Emílio Rui Vilar, que deu origem a três volumes em papel e a um de índices, a que sucede o portal, sob a direção de José Mattoso (2007) - como uma base de informação disponível não só para a comunidade científica, mas também para os cidadãos do mundo. Trata-se de um instrumento de trabalho, para quem estuda ou deseja conhecer as repercussões na arte e na arquitetura da presença portuguesa no mundo. E assim constituiu-se “um objeto de estudo, um corpus, como conjunto significativo do contexto em que os seus diversos elementos foram criados, dos sinais que os caracterizam, na sua singularidade ou na sua categorização, das alterações que sofreram, enfim, dos aspetos que justificam o seu valor patrimonial”, urgindo não “confundir as épocas e as situações, e não projetar sobre o passado fenómenos da nossa época”. Falando da obra publicada em 2010 e 2011, temos na Ásia e Oceania o património do Estado da Índia e o que dependeu do Padroado Português do Oriente, ainda que fora do subcontinente indiano, a que se soma Macau e Timor - estão em causa essencialmente os séculos XVI e XVII, sem esquecer o prolongamento do Padroado e o prolongamento das reminiscências da influência portuguesa. Na América do Sul, temos o Brasil e a Colónia do Sacramento (Uruguai) com uma presença fundadora nas construções dos séculos XVII e XVIII, baseadas nos modelos metropolitanos e ligadas sucessivamente aos ciclos do açúcar, do ouro e dos diamantes, com sistemas administrativos análogos aos da metrópole, ainda marcados pela exploração de mão-de-obra escrava, pelas guerras com holandeses e franceses, pela presença da Corte no Rio de Janeiro, pelo Reino Unido e pela independência. Já em África, Mar Vermelho e Golfo Pérsico encontramos vestígios de entrepostos e fortalezas no litoral, criados para servirem a carreira da Índia e a captação da mão-de-obra escrava. A presença no interior é tardia, ocorrendo a partir do século XIX, com a ocupação militar dos vales dos rios e com a criação de estruturas para exploração de matérias-primas, à semelhança do que acontecia na colonização europeia.

 

UMA PERSISTENTE AÇÃO
Esta publicação vem na sequência de uma ação anterior apoiada pela Fundação Gulbenkian, de recuperação em edifícios e monumentos, entre as quais se contaram o Forte do Príncipe da Beira, em Rondónia (Brasil), a Casa de Nacarelo, na Colónia do Sacramento, a Fortaleza de Arzila (Marrocos), a catedral portuguesa de Safim (Marrocos), o Forte de São João Batista de Ajudá (Benim), o Forte de Jesus, em Mombaça (Quénia), o Forte de Quíloa (Tanzânia), as fortalezas de Ormuz e Qeshm (Irão), a Igreja do Rosário, em Daca (Bangladesh), a Feitoria Portuguesa de Ayutthaya (Tailândia) ou a Igreja de São Paulo, em Malaca (Malásia), para além de intervenções para preservar bens culturais valiosos em museus como os de Velha Goa e de Cochim, ou da inventariação e classificação de arquivos. Entendeu, porém, a Fundação dar prioridade à criação de um instrumento de informação traduzido na feitura de um portal público interativo assente numa base de dados georreferenciada. O portal teve como acervo inicial o conteúdo dos livros, mas logrou suscitar o contributo de quantos propuserem acrescentar ou corrigir conteúdos. Daí a importância do protocolo de colaboração entre a FCG e as Universidades de Coimbra, de Lisboa, de Évora e Nova de Lisboa – com o objetivo de estabelecer as condições de cooperação com vista à produção e transferência de propriedade e gestão do portal interativo. As Universidades de Coimbra e de Évora asseguraram até ao presente a coordenação do projeto, e o Conselho Executivo de gestão do HPIP decidiu assegurar a presença de um representante da FCG no Conselho Executivo, mantendo a propriedade e gestão do portal a cargo das Universidades. O projeto HPIP não tem equivalente, dada a sua natureza específica. Não se trata, porém, de fazer mais do que dar uma informação rigorosa e objetiva, não ditada por qualquer razão identitária ou unilateral. É a noção de salvaguarda de um património comum que está em causa. Daí a necessidade de uma informação objetiva, que, ela mesma, permita aos investigadores desenvolverem os seus estudos e tirarem as suas conclusões. A qualidade da historiografia depende do rigor da informação disponível, do mesmo modo que o património, a herança e a memória se devem constituir e consolidar a partir de inventários exaustivos e fundamentados, de estudos críticos respeitantes a fontes criteriosamente escolhidas, credíveis e de confiança. E relembrando o papel desempenhado pelos principais instrumentos internacionais, no âmbito das Nações Unidas, da UNESCO ou do Conselho da Europa, devemos considerar que o património cultural deve tornar-se um fator de paz e de cooperação internacional. O património cultural não é de uma região, de um país ou de uma cultura – é uma manifestação de criatividade e de valor – que deve estar ao serviço da humanidade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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     Minha Princesa de mim:

 

Alertas-me para um prolongado silêncio meu, como se as minhas cartas falassem e eu te faltasse com a minha conversa fiel. Esqueces que, neste voluntário retiro, além dos milhares de livros que vou arrumando ou dispondo - em benefício, espero, de quem os possa apreciar - cozinho os petiscos quotidianos... Primum manducare, deinde philosophare, diriam os antigos, e eu, pobrecito, nem à filosofia chego, só procuro tratar de mim... Também recolho, escolho e dou abrigo mais seguro a muitos documentos da vida passada da nossa família, e da minha própria, não tanto por gosto de colecionar memórias, como pela serenidade de uma comunhão intemporal. E é bem verdade que o intemporal talvez nos tire muito tempo...

 

Dou comigo, muitas vezes, a entrelaçar lembranças e descobertas várias, tantas delas insuspeitas de qualquer relação entre si...ou comigo! No fundo, talvez dê por mim a dizer, com o Alberto Caeiro, que a espantosa realidade das coisas / é a minha descoberta de todos os dias. Aliás, dei novamente com estes versos hoje mesmo, evocados por José Mattoso no seu prefácio, de 13 de abril de 1985, à Identificação de um País, que começa assim: Este livro nasce de uma insatisfação: a de não encontrar na historiografia portuguesa atual respostas para muitas interrogações que a moderna ciência histórica não pode deixar de colocar. Tentei dar as minhas e coordená-las num conjunto que constituísse uma visão global da História de Portugal durante os seus dois primeiros séculos. A minha curiosidade orientou-se especialmente para os homens concretos, a sua maneira de viver e de pensar [...] o que mais me atrai no passado medieval é a mentalidade: como é que os homens viam o mundo e se organizavam para tentarem dominar a realidade, nessa época tão diferente da nossa?

 

Tu também sabes, Princesa, como eu sempre pensossinto a constante mudança das coisas: a vida, o mundo, tudo é movimento, e quando olho para pessoas ou para povos, pela perspetiva do que chamamos História, melhor me apercebo de quão dinâmica, afinal, dialética mesmo, é a ideia ortegana de sermos e sermos a nossa circunstância. Assim, o conceito hegeliano de que die Weltgeschichte ist das Weltgericht deve ser só tomado no sentido de que os efeitos apurados dos factos produzidos são os únicos juízes destes, a História não podendo ser tribunal como se se pudesse julgar o passado por critérios presentes e retroativos... E sabemos quanto atos, factos e seus efeitos vão padecendo de mui diversas interpretações.

 

A História, como um dia disse João Ameal, é a nossa vida antes de nós, sim, mas tal não tem de tornar esta necessariamente gloriosa, nem vergonhosa: as lições da História não são gabanços nem pedidos de desculpa, podem, quando muito, e devem ser ensinamentos da escola da vida.

 

Qualquer povo tem uma história passada - a dos seus seniores - mas, essa mesma, não são os hodiernos que a fazem, é, tão simplesmente, um da sein que herdaram. É dele, de dantes, mas está aí, já feita. E dou aqui, mentalmente, o salto até uma resposta, há pouco lida, de Onésimo Almeida à revista LER, que lhe perguntava se, afinal, o carácter nacional não existe: Não, e deveríamos acabar com conceitos desse género. Não é possível, para qualquer povo, generalizar seja o que for. Nem nunca, em nenhuma época, toda a gente pensa e age da mesma forma, nem nunca, através dos tempos, uma nação se comporta da mesma maneira. Quer dizer que não se pode generalizar, nem diacrónica nem sincronicamente.

 

Ocorreu-me então algo que vou pensandossentindo acerca do modo como eu mesmo e muitos dos meus amigos fomos cultivados no ambiente de "uma certa História do Grande Portugal", algo que tanto me foi remoendo pelo convívio que tive, durante a minha longa estadia no Japão, com versões claramente míticas - para um estrangeiro que eu era - da História nipónica, sobretudo das origens do povo e da estirpe divina da linhagem imperial.

 

Não te esqueças de que até Wenceslau de Moraes escreveu um Dai Nippon (Grande Japão)... Como sabes, já amiúde falei sobre isso. Mas nunca me "psicanalisei" disciplinadamente no tocante ao meu entranhado sentimento de português enquanto filho de uma nação gloriosa, única, diferente de todas as outras. Pensossinto "Portugal", e vibro! Mas a leitura de obras hodiernas, de historiadores estrangeiros e portugueses, dos tais cuja curiosidade - repetindo o dito de José Mattoso acima citado - se orienta especialmente para os homens concretos, a sua maneira de viver e de pensar, ao ponto de os levar a procurar e consultar outras fontes - até agora esquecidas ou ignoradas, quer por razões políticas ou ideológicas, quer por tradicional desconhecimento de estranhas línguas e culturas - para acharem novas perspetivas e, acima de todas elas, uma visão mais global, muda-me o sentir da História, das nossas vidas antes de nós, com as suas circunstâncias. Não já só "nós", os Portugueses, como pioneiros e condutores, mas todo um vasto mundo, povoado por outros, com que sucessivos lusos foram interagindo.

 

Dias atrás, falava com alguns amigos sobre um livro que há já uns anos me encantou, ao ponto, aliás, de dele ter adquirido vários exemplares para oferecer - incluindo alguns na sua bela edição francesa - a conhecidos, amigos e, - vieillesse oblige - aos inescapáveis netos. Trata-se de A Aventura das Plantas, do Prof. Eng.º Mendes Ferrão, famoso catedrático do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, reconhecido internacionalmente. Tive o grande gosto de o conhecer em 2004/5, quando recorri à sua sapiência para melhor me informar sobre a globalização das plantas que surgiu com a aventura da descoberta de caminhos marítimos entre todos os continentes, tema que decidira abordar em exposições e sessões públicas a realizar no pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Aichi (Japão), de que eu era Comissário Geral. Um dos meus convivas referiu então um artigo recente de Guilherme d´Oliveira Martins que diz: "As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos" de Alfredo Margarido (Elo, 1994) constitui uma excelente oportunidade para compreendermos como os portugueses fizeram mudar os hábitos do mundo, alimentares e outros, mercê das viagens para outros continentes.
Os "negritos" são meus - já perceberás porquê. Antes, todavia, deixa-me dizer-te que, com muito gosto lusíada contei a aventura das plantas aos meus netos, por ela ser um dos mais antigos e persistentes sinais do que afinal a globalização é ou pode ser na vida quotidiana e comezinha das pessoas. Mas quantas vezes lembramos, ou quantos de nós sabem, que não se cultivavam nem comiam batatas, feijões ou tomates na Europa, antes das grandes viagens?

 

História fascinante, tetra secular, elucidativa, divertida, consoladora de humanidade... Quem mudava, então, as plantações de legumes e frutos no mundo de todos, era essa mancha de gente de muitas paragens, muito ou pouco ou nada sábia, a mor das vezes sem mais pertença do que qualquer obediência consciente ou instintivamente devida, que andava embarcada. E não eram só portugueses...

 

Já a razão dos meus "negritos" tem a mesma raiz dos que mostro de seguida, por mim postos num anúncio da Fundação e Museu do Oriente: Os Portugueses na Ásia na Segunda Metade do Século XVII  -  curso administrado por João Paulo Oliveira e Costa  -  dá a conhecer o panorama político, económico e sociocultural da Ásia sob a influência portuguesa.

 

No mesmo ou em dia próximo daquele em que recebi esta notícia, lera eu no Público uma entrevista a Eduardo Lourenço, em que este, a dado passo, afirmava: Portugal não é uma ilha, mas vive como se fosse. Talvez por uma determinação de quase autodefesa. O que me admira mais não é a preocupação constante que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos a viver um Ronaldo coletivo, um "nós somos o melhor do mundo"... E, mais adiante: Fomos os primeiros que largámos da Europa para ir para um sítio mítico, só conhecido através de novelas, como as de Marco Polo. De repente, deslocamo-nos do ocidente europeu e demos a volta a África - demos..., deram eles, os navegadores, porque eu não tenho um pé marítimo propriamente dito - para chegar à Índia. E foi como chegar a outro mundo, descobrir outro planeta, e durante dois séculos a nossa capital era mais fora de nós do que dentro de nós. E sempre nos habituámos a que essa imagem que adquirimos num lá fora hípermítico fosse tão universal que ninguém podia não saber que nós lá tínhamos chegado... Há aqui, nesta análise de um nonagenário, muita cândida lucidez. Que, quanto a mim, me levou sobretudo à intuição de que as mitomanias nos podem conduzir a algo que eu definiria como "narcisismo nacional"...

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira