Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Pago os meus impostos, separo o lixo, já. não vejo televisão há. cinco meses, todos os dias rezo pelo menos duas horas com um livro nos joelhos, nunca falho uma visita à família, utilizo sempre os transportes públicos, raramente me esqueço de deixar água fresca no prato do gato, tento ser correcto com os meus vizinhos e não cuspo na sombra dos outros.
Já não me lembro se o médico me disse ser esta receita a indicada para salvar o mundo ou apenas ser feliz. Seja como for, não estou a ver resultado nenhum.
in Ulisses já não mora aqui, 2002
User Complaints
I pay my taxes, recycle the rubbish, haven’t watched telly for five months, everyday I pray for at least two hours with a book on my knees, never miss a family visit, always use public transport, rarely forget to leave water in the cat’s dish, try to be civil to my neighbours and never spit on other people’s shadow.
I can’t remember if the doctor told me this was the right prescription to save the world or just to be happy. Either way I can’t see any results.
Um ser humano é um combinado de egoísmo, sofrimento e necedade. Não comove ninguém. Uma pedra não comove ninguém. A beleza é um acidente banal e pressupõe a morte; muitas vezes se rodeia de sandice, e se nos fala, chega a ser assustador. A inteligência, refrescante como um duche, sabe bem, no Estio; mas agora, que é Inverno toda a vida, que lugar atribuir à inteligência? O de criada de servir nos aposentos da ganância. Não comove, é evidente, ninguém. A bondade, sim, comove. Mas é tão débil e tão rara que ninguém a ouve. Não é fácil, assim, encontrar algo que possamos amar. Eu tenho procurado, eu juro que não sei o que fazer: tudo me parece, até a música, produto de uma falha. Vou por essas ruas ao acaso e não acerto a conhecer quem me convença que bem outra poderia ser a vida. Tudo se mostra sob espelhos deformantes, tudo arde numa estranha aceitação. Francamente, que alguém me demonstrasse que não tenho razão.
in Movimentos no Escuro, 2005
Wild Strawberries – Ingmar Bergman (1957)
A human being is a blend of selfishness, pain and foolishness. Doesn’t move anyone. A stone doesn’t move anyone. Beauty is an ordinary hazard and presupposes death; it’s often surrounded by folly, and if it speaks to us, it can be frightening. Intelligence, refreshing like a shower, feels good in the summer; but now, when it’s forever winter, what place shall we allocate intelligence? The one of a maid servant in the chambers of greed. It doesn’t obviously move anybody. Goodness does. But it’s so frail and so rare that nobody hears it. It isn’t easy, therefore, to find something we can love. I’ve been searching, and swear I don’t know what to do: everything, even music, seems to me the result of some flaw. I wander these streets at random and don’t come across anybody who can convince me that life could well be different. Everything is seen under distorting mirrors, all burns in strange acceptance. Frankly, I wish someone would prove me wrong.
É mais que certo: não sinto a tua falta. Fiquei a tarde toda a arrumar os teus papéis, a reler as cinco cartas que me foste endereçando na semana que perdemos: tu no Alentejo, eu debaixo de água. Fui depois regar as rosas que deixaste no quintal. Sempre só e sem carpir o meu estado (porque não me fazes falta), pus o disco da Chavela que me deste no Natal e comecei a preparar o teu prato preferido. Cozinhar fez-me perder o apetite; por isso abri uma garrafa de maduro e não me custa confessar-te que não sinto a tua falta. Por volta das dez horas, obriguei-me a recusar dois convites pra sair (aleguei androfobia) e estou neste momento a recortar a tua imagem (não me fazes falta) nas fotos que possuo de nós dois, de maneira a castigar com o cesto dos papéis a inábil idiota que deixou que tu te fosses.
in Ulisses já não mora aqui, 2002
Penelope writes
It’s more than sure: I don’t miss you. I spent the whole afternoon tiding up your papers, reading again the five letters you managed to send during the week that was wasted: you in the Alentejo, and I under water. Then I watered the roses you left in the garden. Always by myself and not moaning about my lot (since I don’t miss you), I put on the Chavela record you gave me for Christmas and started to cook your favourite dish. Cooking made me lose my appetite; and so I opened a bottle of red and it’s not hard to confess that I don’t miss you. Around 10 pm, I made myself refuse two invitations to go out (I gave androphobia as an excuse) and right now I’m cutting out your image (I don’t miss you) from the photos I own of both of us in order to punish with the paper basket the awkward idiot who let you go.