Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE JOSÉ MIGUEL SILVA 


Queixas de um utente


Pago os meus impostos, separo
o lixo, já. não vejo televisão
há. cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.


in Ulisses já não mora aqui, 2002


User Complaints


I pay my taxes, recycle
the rubbish, haven’t watched
telly for five months, everyday
I pray for at least two hours
with a book on my knees,
never miss a family visit,
always use public
transport, rarely forget
to leave water in the cat’s
dish, try to be civil
to my neighbours and never spit
on other people’s shadow.

I can’t remember if the doctor
told me this was the right prescription
to save the world or just
to be happy. Either way
I can’t see any results.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese

 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE JOSÉ MIGUEL SILVA 

  


Morangos Silvestres – Ingmar Bergman (1957)


Um ser humano é um combinado de egoísmo,
sofrimento e necedade. Não comove ninguém.
Uma pedra não comove ninguém. A beleza
é um acidente banal e pressupõe a morte;
muitas vezes se rodeia de sandice, e se nos fala,
chega a ser assustador. A inteligência, refrescante
como um duche, sabe bem, no Estio; mas agora,
que é Inverno toda a vida, que lugar atribuir
à inteligência? O de criada de servir nos aposentos
da ganância. Não comove, é evidente, ninguém.
A bondade, sim, comove. Mas é tão débil
e tão rara que ninguém a ouve. Não é fácil,
assim, encontrar algo que possamos amar. Eu
tenho procurado, eu juro que não sei o que fazer:
tudo me parece, até a música, produto de uma falha.
Vou por essas ruas ao acaso e não acerto a conhecer
quem me convença que bem outra poderia ser
a vida. Tudo se mostra sob espelhos deformantes,
tudo arde numa estranha aceitação. Francamente,
que alguém me demonstrasse que não tenho razão.


in Movimentos no Escuro, 2005


Wild Strawberries – Ingmar Bergman (1957)


A human being is a blend of selfishness,
pain and foolishness. Doesn’t move anyone.
A stone doesn’t move anyone. Beauty
is an ordinary hazard and presupposes death;
it’s often surrounded by folly, and if it speaks to us,
it can be frightening. Intelligence, refreshing
like a shower, feels good in the summer; but now,
when it’s forever winter, what place shall we allocate
intelligence? The one of a maid servant in the chambers
of greed. It doesn’t obviously move anybody.
Goodness does. But it’s so frail
and so rare that nobody hears it. It isn’t easy,
therefore, to find something we can love. I’ve been
searching, and swear I don’t know what to do:
everything, even music, seems to me the result of some flaw.
I wander these streets at random and don’t come across
anybody who can convince me that life could well
be different. Everything is seen under distorting mirrors,
all burns in strange acceptance. Frankly,
I wish someone would prove me wrong.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese

 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE JOSÉ MIGUEL SILVA

  


Penélope escreve


É mais que certo: não sinto a tua falta.
Fiquei a tarde toda a arrumar os teus papéis,
a reler as cinco cartas que me foste endereçando
na semana que perdemos: tu no Alentejo,
eu debaixo de água. Fui depois regar as rosas
que deixaste no quintal. Sempre só e sem
carpir o meu estado (porque não me fazes falta),
pus o disco da Chavela que me deste no Natal
e comecei a preparar o teu prato preferido.
Cozinhar fez-me perder o apetite; por isso
abri uma garrafa de maduro e não me custa
confessar-te que não sinto a tua falta.
Por volta das dez horas, obriguei-me a recusar
dois convites pra sair (aleguei androfobia)
e estou neste momento a recortar a tua imagem
(não me fazes falta) nas fotos que possuo de nós dois,
de maneira a castigar com o cesto dos papéis
a inábil idiota que deixou que tu te fosses.


in Ulisses já não mora aqui, 2002


Penelope writes


It’s more than sure: I don’t miss you.
I spent the whole afternoon tiding up your papers,
reading again the five letters you managed to send
during the week that was wasted: you in the Alentejo,
and I under water. Then I watered the roses
you left in the garden. Always by myself and
not moaning about my lot (since I don’t miss you),
I put on the Chavela record you gave me for Christmas
and started to cook your favourite dish.
Cooking made me lose my appetite; and so
I opened a bottle of red and it’s not hard
to confess that I don’t miss you.
Around 10 pm, I made myself refuse
two invitations to go out (I gave androphobia as an excuse)
and right now I’m cutting out your image
(I don’t miss you) from the photos I own of both of us
in order to punish with the paper basket
the awkward idiot who let you go.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese