Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Maria Barroso e Augusto de Figueiredo em "Benilde ou a Virgem Mãe" de José Régio (in site da C.M. de Vila do Conde)
ATORES, ENCENADORES (XIX) REFERÊNCIAS A MANOEL DE OLIVEIRA, JOSÉ RÉGIO, MARIA BARROSO por Duarte Ivo Cruz
Fazemos aqui uma abordagem global a três nomes exponenciais da cena portuguesa – e cada um deles, a seu modo e na biografia respetiva, em muito transcendeu a abordagem específica da arte do espetáculo. Referimos Manoel de Oliveira, na sequência da publicação anterior, mas também, pelas razões que adiante se explicam, José Régio e Maria Barroso.
Como bem sabemos, cada um transcendeu em muito a expressão dramática, aliás, também cada um deles, assumindo-a num nível de qualidade excecional. Mas é o teatro e o espetáculo que aqui os relaciona – e a partir da peça “Benilde ou a Virgem Mãe”, peça escrita por José Régio em 1947, estreada no Teatro Nacional de D. Maria II em 1947-1948 com Maria Barroso na protagonista, e filmada por Manoel de Oliveira em 1975 com Maria Barroso no papel de Genoveva.
Maria Barroso termina o curso de teatro do então Conservatório Nacional em 1943 e no ano seguinte ingressa na Companhia do TMDM II dirigida, como se sabe, por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Prossegue estudos na Faculdade de Letras de Lisboa, enquanto assume diversos papéis de protagonista no Nacional, com destaque para a Maria de Noronha do “Frei Luís de Sousa” em 1946. No ano seguinte estreia-se no cinema com “Aqui Portugal” de Armando Miranda: mas mais importante do que isso, nessa mesma temporada de 47-48, fará a protagonista da “Benilde” no D. Maria, com Augusto de Figueiredo no papel de Eduardo.
António Braz Teixeira assinala que «tal como o rei de “Jacob e o Anjo”, também a protagonista de “Benilde”, porque foi escolhida por Deus, só na morte serenamente aceite ou desejada (…) alcança a verdadeira liberdade redentora» (in “Teatro I” ed. INCM-2005 pág. 22). E o próprio Régio destacará esta interpretação, quase a última que Maria Barroso assume no Teatro Nacional antes de ser afastada em 1948. A crítica da época é aliás unânime em reconhecer a notável interpretação de Maria Barroso. “É o reconhecimento do seu talento. É a consagração do seu nome. É o ponto iluminado do seu palco” escreverá, meio século decorrido, Leonor Xavier, que reproduz um conjunto relevante de críticas da época. (in “Maria Barroso – Um Olhar Sobre a Vida”, ed. Difusão Cultural - 1995 pág. 98).
Maria Barroso afasta-se dos palcos. Mas em 1965, retoma a carreira em duas interpretações notáveis que marcaram o início de atividade do Teatro Villaret: “O Segredo” de Henry James e a “Antígona” de Jean Anouille, que já evocamos nesta série de artigos.
Ora bem: em 1975 estreia em Lisboa o filme de Manoel de Oliveira precisamente denominado “Benilde ou Virgem-Mãe”. Aqui, a protagonista é Maria Antónia Mata, e Maria Barroso assume o papel de Genoveva “velha criada da casa”. O texto teatral articula-se na expressão cinematográfica: diz João Bénard da Costa que “é o cinema que invade o teatro, num jogo de alçapões e sótãos, como se sob a profundidade do primeiro se escondesse o espaço do segundo”… (in “Histórias do Cinema” ed. Europália e INCM 1991 pág. 153).
E Eduardo Prado Coelho: «Em primeiro lugar, o filme nunca pretende figurar, melhor ou pior, uma realidade, mas sim registar uma peça de teatro. Quer dizer que, com “Benilde”, Manoel de Oliveira avança sim pouco mais na sua conceção sobre a passividade do cinema. Em segundo lugar, opera-se, neste movimento de câmara, uma passagem para um espaço deliberadamente fechado, onde o exterior adquire uma força simbólica desmesurada (…). Em terceiro lugar, este espaço fechado é o espaço maldito que, na sua velha clausura, assistiu ao enlouquecimento da mãe de Benilde, ao bizarro comportamento do pai, e serve agora como explicação para o mistério que envolve o estado de Benilde”. (in “Vinte Anos de Cinema Português – 1962-1982” ed. ICLP pág. 58).
Entretanto, quero aqui frisar a expressão dramática e a qualidade do texto em si, e a sua “adaptabilidade” digamos assim, a formas de espetáculo em si mesmas distintas: o que em rigor se deve ao extraordinário talento de José Régio, que como sabemos não esteve, ao longo da vida, especialmente ligado aos meios teatrais e/ou cinematográficos…
Maria Barroso faria pequenas intervenções em dois filmes de Manoel de Oliveira: “Amor de Perdição” (1977) e “Le Soulier de Satin” (1984).
E seja-me permitido terminar com uma citação de texto de minha autoria, a propósito da “Benilde” - peça:
“Luta Benilde pela sua verdade. E só a morte evidente mostra a verdade essencial e subjetiva das suas vozes. (…) Teatro e grande teatro é a tensão doseada e progressiva de «Benilde ou a Virgem-Mãe», o seu remate inesperado, a dúvida que sempre subsiste”… (in “História do Teatro Português”- Verbo ed. 2001, pág.296).
DUARTE IVO CRUZ
Obs: Reposição de texto publicado em 15.04.15 neste blogue.
A sua obra dramatúrgica, hoje de certo modo esquecida, envolve uma intervenção notável na cultura teatral da época, isto, note-se bem, no âmbito e ao nível da criação dramática. E será relevante reconhecer que a iniciação dramatúrgica de Régio remonta a 1930, com a publicação, na revista Presença, de uma primeira versão do "Jacob e o Anjo”, primeira peça conhecida do autor.
Saliente-se entretanto que em 1930 publicou cenas que viriam a ser introduzidas na peça iniciática do autor, “Jacob e o Anjo”. Mas importa ter presente que Régio inicia-se como dramaturgo público, digamos assim, a partir de 1934, com a publicação, na revista Presença, de uma versão do “Jacob” a que chamou desde logo precisamente “Jacob e o Anjo, História do Rei e do Bobo escrita em seis diálogos aumentados dum Monólogo do Rei e de uma Epílogo”. A versão definitiva desta peça iniciática data de 1937, e em 1941 é republicada na Revista de Portugal.
Segue-se um conjunto de peças que efetivamente marcam a dimensão cénico-poética do teatro de José Régio. E tenha-se presente que o conjunto dramatúrgico é relevante. Em 1934 assinala-se a publicação da peça “Três Máscaras”. Em 1935 escreveu e em 1937 é republicado o “Jacob” em versão definitiva.
E a partir daí, o teatro de José Régio surge espaçado mas sempre muito relevante. E digamos que variado no que respeita a épocas e conflitos dramatizados. E a heterogeneidade de temas e ambientes cénicos é “compensada”, digamos assim, pela qualidade relevante de sucessivas abordagens criativas da arte teatral.
Assim, em 1947 é publicada a “Benilde ou a Virgem-Mãe”. Dois anos depois, é publicado “El-Rei Sebastião”. Em 1954 é publicado “A Salvação do Mundo”, em 1957 “O Meu Caso” e “Mário ou Eu- Próprio-O Outro”. Assinalam-se ainda designações que não foram concretizadas: “O Santo à Força”, “O Judeu Errante”, “Sonho de uma Véspera de Exame” (1935) publicado em 1989 e uma incompleta peça iniciada em 1940 e não completada, denominada “Sou um Homem Moral”. E é de referir que o “Jacob” foi representado em Paris.
Ora bem: interessa-nos referir citações e opiniões expressas acerca desta dramaturgia de José Régio, expressas pelo próprio. Porque, para alem de notabilíssimo dramaturgo, Régio marcou também a cultura portuguesa através de estudos que, no respeitante ao teatro, marcam a sua obra e a sua opinião divulgada e devidamente analisada.
E nesse aspeto, a obra de José Régio assume uma relevância que deve ser analisada na sua própria extensão e diversificação. E isto, porque há que relacionar a expressão teatral com outras criatividades que Régio aplicou na sua vasta obra criacional. E nesse aspeto, não será possível, note-se bem, esgotar a extraordinária vastidão e profundidade da sua vasta e variada, mas coerente criação poética e literária.
E nesse aspeto, só haverá referências necessariamente reduzidas no contexto da obra exemplar de José Régio. E mais: na vastidão e heterogeneidade da sua obra criacional, sempre coerente e sempre notável, só haverá que selecionar algumas citações exemplificativas da sua vasta obra e da sua vastíssima concecionalidade.
Assim, escreveu José Régio no texto que denominou “Vista sobre o Teatro”, publicado no notabilíssimo estudo denominado “Três Ensaios sobre Arte”:
“Fantasiemos um momento: a admitirmos a trindade autor dramático, ator e encenador – três pessoas distintas e uma só verdadeira - diríamos que a essa tal única verdadeira caberia a autoridade do espetáculo teatral. Não passando isto da fantasia, que visa a lucidamente sugerir o nosso sentimento levado ao extremo, regressemos à realidade: esse pensamento teatral, de que se tenta uma realização no palco, essa ideia central, ou teia coletiva realizadora; essa intenção profunda em foco, esse, unitário que sustente o espetáculo – não é ilusoriamente que desde sempre os atribui o bom senso comum ao autor dramático criador do texto”.
Novamente retomamos a dramaturgia de José Régio, numa evocação dos 120 anos do seu nascimento, ocorrido em 1901. Morre em 1969 e não podemos hoje ignorar a relevância da criação e análise da sua obra dramatúrgica, no contexto de uma vastíssima e relevantíssima inovação, na época menos considerada mas hoje merecendo evocações específicas.
Tal como já amplamente analisámos, a dramaturgia de Régio merece destaque, não obstante a maior relevância, essa sempre evocada, de outras expressões criacionais que marcam hoje a literatura. E no entanto, o teatro de José Régio não pode nem deve ser esquecido. Em 1930 publicou na Presença uma versão parcial da sua considerada primeira peça, “Jacob e o Anjo”, que depois viria a considerar a sua primeira e definitiva criação teatral. Será oportuno insistir na dramaticidade da sua obra vasta e completa, não obstante, repete-se, a variedade, diversidade e qualidade criacional. E importa então outras intervenções criativas no teatro que não completou ou não evocou.
Mas citamos hoje novamente um longo texto doutrinário que Régio publicou em 1967 em “Três Ensaios Sobre Arte”, precisamente intitulado “Vista sobre o Teatro”.
Escreveu então José Régio: “Fantasiemos um momento: a admitirmos a trindade autor dramático, ator e encenador – três pessoas distinta e uma só verdadeira – diríamos que a essa tal única verdadeira caberia a autoridade do espetáculo teatral. Não passando isto de fantasia, que visa a lucidamente sugerir o nosso sentimento levado a extremo, regressemos à realidade: esse pensamento teatral de que se tenta uma realização no palco, essa ideia central, ou teia de ideias, em redor da qual é preciso criar uma espécie de personalidade coletiva realizadora; essa intenção profunda, em foco, esse unitário que sustenta o espetáculo – não é ilusoriamente que desde sempre os atribui o bom senso comum ao autor dramático, criador do texto”.
Aqui temos referido espaçadamente, como é óbvio, as ligações de José Régio à arte do Teatro, tendo bem presente a relatividade cénica da sua produção teatracional: um conjunto de textos diversos e dispersos que, entretanto, se valorizam pela própria criatividade e qualidade do autor. Mas mesmo assim há que ter presente a relatividade do teatro do conjunto admirável da sua obra em geral e mesmo na comparação e visão completa e complexa dessa criatividade global. Régio é de facto um grande autor, mas o teatro não significa a dimensão mais determinante da sua obra geral.
Não vamos aqui e agora repetir o que certa vezes escrevemos sobre a obra teatral de Régio e, no entanto, será sempre oportuno retomar o comentário que a qualidade, vastidão e heterogeneidade da sua obra amplamente justifica.
Em qualquer caso, importa invocar a doutrina constante neste conjunto de peças de teatro, ainda por cima contabilizadas com dois aspetos sempre citáveis na obra de Régio: de um lado a vastidão e qualidade do suporte literário subjacente, aliás adequado à atividade profissional; e por outro lado, o sentido do espetáculo que em si mesmas cada uma das peças comporta.
E tudo isto insista-se, numa qualidade literária, poética e de espetáculo que, em si mesma, sobrevaloriza cada uma das peças. Sendo certo que, se por um lado o conjunto da obra de José Régio tudo valoriza de forma coerente, por outro lado a conciliação com os aspetos complementares da restante e vastíssima obra marcam o sentido intuitivo da espetacularidade que o teatro exige!...
E de tal forma assim é, que o próprio Régio assim o consagra, numa vasta análise denominada rigorosamente “Vista sobre o Teatro”, incluída nos três ensaios sobre a Arte que editou em 1967.
Diz então José Régio: “fantasiemos o momento: a admitirmos a trindade o autor dramático, ator e encenador – três pessoas distintas e uma só verdadeira – diríamos que é essa única verdade que caberia ao cuidado do espetáculo teatral. Não passando isso de fantasia que viria a, lucidamente, sugerir o sentido dado aos extremos, regressemos à realidade: esse pensamento teatral, de que se tenta uma realização no palco, essa ideia central ou teia de ideias, em redor da qual é preciso criar uma espécie de personalidade coletiva realizadora; essa intenção profunda em foco, esse unitário que sustenta o espetáculo – não é ilusoriamente que desde sempre os atribui o bom senso comum, o autor dramático, criador do texto”.
“A Velha Casa” de José Régio (1945-1966) é a obra de ficção mais importante do seu autor, que considera como obra de uma vida. Não se trata, porém, de uma autobiografia, nem Lelito é o seu herói…
SÍNTESE CULTURAL COMPLEXA Se há herói neste romance de seis volumes é a própria casa. Mas “trata-se de uma meditação sobre a vida humana; sobre a condição humana. Apesar disso um romance: pois a condição humana não é aí meditada senão por meio de uma localização no espaço, duma situação no tempo, e através de personagens que vão vivendo o seu destino, tecendo e emaranhando a sua teia”…José Régio (1901-1969) merece uma atenção especial enquanto referência da cultura portuguesa do século XX. Cinco elementos poderemos salientar, que o tempo se encarregará de tornar mais evidentes. E a título de exemplo, podemos referir a apreciação que Régio fez de Camilo Castelo Branco e do lugar que ocupava na nossa literatura, que é de algum modo uma apreciação que poderemos considerar paralela relativamente ao seu próprio percurso, com as naturais distâncias. A história portuguesa e a síntese complexa que comporta demonstra bem como Régio segue as passadas camilianas, compreendendo a coexistência permanente entre o que puxa para a permanência e o que reclama as transformações. De facto, José Régio (a) compreendeu que a cultura portuguesa é múltipla e heterogénea; (b) ao salientar o papel de “Orpheu” e do primeiro modernismo, bem como a necessidade de o relembrar e continuar com a “Presença”, pôs em diálogo a modernidade e as raízes culturais permanentes; (c) o exemplo de Camilo é, assim, ilustrativo do modo como este via a nossa identidade, incompreensível sem a tensão entre uma arreigada tradição provinciana e castiça e o apelo do cosmopolitismo; (d) esta mesma tensão, na qual o eu se afirma, na relação com os outros (como em “A Velha Casa”, com Lelito), está bem patente na obra de Régio, como ponto de encontro entre diversas contradições, ora entre Deus e o Diabo, ora na distância entre a cidade e a província; e (e) Portugal viverá, assim, sempre entre a lembrança das raízes antigas e o apelo à metamorfose e à mudança, sendo a aparente homogeneidade identitária feita de um complexo melting-pot que permite acolher as diferenças e completá-las, mais do que proceder à sua mera adaptação.
UMA MODERNIDADE ABERTA Como afirma Eugénio Lisboa, a obra de Régio “insere-se (…) numa conceção de moderno, não fanática, e aceita (…) uma ideia de originalidade irremediavelmente chumbada à noção de sinceridade”. O respeito pela singularidade obriga a pormo-nos no lugar do outro, para melhor o compreender a ele, e a nós também. E Jacinto do Prado Coelho dirá: “José Régio é um poeta moderno autêntico – pela desordem psicológica, pelo hipercriticismo dos próprios instintos, pela originalidade rebuscada, pela sobriedade vincante dos conceitos atirados à cara do leitor, pelo encerramento num castelo inacessível à maneira de Julião Sorel, de Stendhal, pelo arrojo e desencontro das formas”. Lembremos, de facto, a relação histórica de Régio com Camilo, sem tentação de anacronismo, ambos têm um diálogo natural, no qual prevalece a importância da sociedade, incapaz de se fechar numa das lógicas possíveis, a tradicional ou a moderna. “Em demasia foi encomiado Camilo por características estimáveis, sim, mas não de suprema importância na criação de um artista: o seu purismo, por exemplo, ou a extraordinária opulência do vocabulário, adquirido no trato com o povo e os clássicos. Outros dos seus admiradores – que, bem portugueses, reconheciam instintos e sentimentos seus próprios genialmente expressos nos livros do grande escritor – nem souberam descer ao fundo de si mesmos nem da obra dele. Balbuciaram razões de ordem acessória, eles que as tinham de boa categoria”. Régio chama, assim, a atenção mais para a obra de Camilo e menos para a sua imagem ou para a sua biografia, não confundível com as qualidades do escritor e do cultor da língua. Daí a citação de Luís Cardim, na “Seara Nova”, em que o crítico, ao escrever sobre a biografia de Oskar Wilde, de Hesketh Pearson, afirma que a melhor maneira de falar de um autor é “muito simplesmente, a de lermos as suas obras, e deixarmos em paz a vida, e até as idiossincrasias do autor que nas suas produções não estejam refletidas”.
OBRA DE ARTE, OBRA DE PENSAMENTO Para Régio, a obra de arte, como a obra de pensamento, tem um valor em si – é uma “realidade concreta e objetiva”, cujo estudo desprevenido deve prevalecer sobre o da biografia, fisiologia, psicologia. A riqueza camiliana vem da simbiose entre a biografia do autor e a criação literária que a transcende. E assim, Régio salienta que o escritor aparentemente popular é, no fim de contas, menos acessível na intimidade da sua verdadeira grandeza do que, por exemplo, um Eça. Longe de um velho escritor subjetivista ou sentimental, “incorrigível narrador de histórias de amores contrariados, pais tirânicos, meninas metidas em conventos e galãs fatais, com a morte ao fundo”, Camilo é um profundo conhecedor dos clássicos e da melhor criação literária, um conhecedor da vida do povo, um estudioso atento da realidade histórica e um fino analista do género humano. Contudo, vivendo da escrita, antecipou o que o tempo veio a tornar comum – a necessidade de encontrar modos de atrair e de fidelizar os seus leitores. Enganam-se, porém, quantos se limitam a lembrar as obras mais conhecidas, esquecidos da preocupação do escritor em ir além da receita romântica, designadamente no romance histórico ou na análise da sociedade. José Régio compreende esta lição, numa circunstância totalmente diferente. Importaria agora pôr em diálogo a melhor literatura e a reflexão individual. A “Literatura Viva” significa exatamente a compreensão da heterogeneidade e das diferenças. Como em “A Velha Casa”, metáfora da vida e da realidade: “O que lhe mostrava a experiência é que ninguém, senão ele, sabia na casa como ela tinha personalidade própria; como nessa personalidade compartilhavam todos os aposentos, tendo, embora, cada um o seu aspeto funcional; e como não só a personalidade da casa era insubmissa às coisas e pessoas que a povoavam, mas antes acabava por pesar sobre os seus gestos, palavras, atitudes, sentimentos”…
Passam cinquenta anos sobre a morte de José Régio (1901-1969), autor multifacetado, que escreveu “A Velha Casa” (1945-1966), que considerou ser como a sua mais importante obra de ficção e “uma meditação sobre a vida humana, sobre a condição humana”.
MARGENS DO MONDEGO “Uma coisa sei de certeza: Que nunca me arrependi de ter ido para Coimbra. Lá ganhei novos amigos. De lá saiu a presença. Lá passei pelo menos alguns dos anos mais felizes da minha vida. E creio que a minha criação literária lucrou com a ida para Coimbra, pois lá achei elementos para um fecundo ambiente literário que não acharia no Porto”. É o próprio José Régio quem o confessa, num dos seus últimos escritos, Confissão de Um Homem Religioso (1971), esta sua ligação muito especial a Coimbra. É verdade que as raízes de Régio estão em Vila da Conde e aí sentimos a força das bases telúricas, éticas e literárias. Mas o núcleo das amizades do poeta e romancista, encontramo-lo na cidade do Mondego, em Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões, Casais Monteiro, Edmundo de Bettencourt, Miguel Torga, Vitorino Nemésio ou Afonso Duarte… Aí começará a publicar (Poemas de Deus e do Diabo, 1925) e a ter contacto com a literatura como realidade viva, ligada necessariamente ao quotidiano e à cidadania. E no primeiro livro de poemas surge logo a associação a seu irmão Júlio (Saul Dias), desenhador e pintor que é uma extraordinária referência do segundo modernismo, com vincada influência de Chagall. Depois, nas andanças docentes, Régio fixará em Portalegre o seu lugar de vida, em alternância com Vila do Conde. Para o biógrafo e intérprete fiel de Régio, Eugénio Lisboa: “o mais importante da sua biografia decorreu, como é o caso de tantos de nós, dentro de si próprio. As suas tempestades foram sobretudo interiores e são essas que irrigam, com vigor o tecido da sua obra” (José Régio ou a Confissão Relutante, Rolim, 1988). A consideração de Eduardo Lourenço sobre o carácter da obra de Régio e sobre a natureza da presença levará, no entanto, a uma estranha acumulação de equívocos, que só uma leitura mais atenta de “Presença ou a contrarrevolução do modernismo” (“Comércio do Porto”, 14.6.60) poderá esclarecer. O próprio Eduardo Lourenço preocupou-se em clarificar o que tinha dito, acrescentando a uma nova versão do texto o qualificativo “português” ao modernismo e um ponto de interrogação no final, procurando afastar qualquer entendimento político ou literal nessa ideia. Deste modo, Eugénio Lisboa, na comparação entre os dois modernismos, o de Orpheu e o da presença, afirma mesmo: “o primeiro modernismo foi um momento de convulsão e o segundo um momento de reflexão e consolidação” (Ibidem.). Um e o outro completam-se e diferenciam-se. E até se percebe que Nemésio tenha preferido, em dado momento, criar um outro órgão de ideias - a Revista de Portugal (1937) talvez menos contaminada com a proximidade dos modernismos… A razão parece hoje irónica, mas foi invocada.
É VIVO O ORIGINAL “Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de uma personalidade artística. A primeira condição de uma obra viva é pois ter uma personalidade a obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos, superficialmente, o que o diferencia dos mais (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjetivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo, o adjetivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro… Eis como é falsa toda a originalidade, calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas – mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre estas qualidades, o produto destes temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afetadas, semelhantes qualidade não passarão de um truque literário” (presença, nº 1, 1927). Eis o programa de Régio, que prefere, na sua batalha pela “Literatura Viva”, afirmar: “à personalidade do artista-criador nada proíbe a presença senão que se falseie; nada impõe senão que se revele” (“O Primeiro de Janeiro”, 25.10.44). No entanto, se desconfiava das originalidades “demasiado exibicionistas”, acusava de conformismo a falta de originalidade e a falta de sinceridade. Numa palavra, o certo é que a presença tornou-se o verdadeiro arauto que exprimiu quão relevante e visível foi a geração de Orpheu.
O SEGUNDO MODERNISMO Todavia, o segundo modernismo era, essencialmente, um momento de reflexão e consolidação – e é essa distinção que Eduardo Lourenço quis fazer, de modo metafórico. Aliás, o próprio Régio assume esta ambiguidade, quando põe a dialogar, em AVelha Casa, Lelito com seu irmão João, e este diz: “Tornas falsas muitas coisas que são em si verdadeiras e sinceras”. E se o tema político merece toda a atenção tal deve-se à independência da revista e dos seus animadores, acima de toda a suspeita, e sob muitas desconfianças. Não houve, de facto, conciliação com o regime nascido em 1926 – vejam-se, por exemplo, a publicação do texto fortemente crítico de Raul Leal, aquando da homenagem coimbrã a António Correia de Oliveira (1930); a identificação de Régio relativamente à posição política de António Sérgio; e a tomada de posição de Guilherme Castilho, José Marmelo e Silva e João Campos, quando a presença fechou as portas (1940), dando ênfase à fidelidade da revista aos valores do espírito que estavam a ser destruídos pelos senhores da guerra. O modernismo não era, assim, uma receita, mas uma atitude: “qualquer mestre de hoje só é modernista na medida em que, sem ter de negar seja qual for das descobertas vitais do passado, se encaminha para novas descobertas e antevê novos mundos… que podem não ser mais do que a imprevista sondagem dos mundos já conhecidos” (presença, nº 23, dezembro de 1929). Régio foi sempre um escritor verdadeiramente livre, e encontramos nele: a compreensão da renovação da cultura portuguesa no século XX, com a geração de Orpheu, mas também com Teixeira de Pascoaes e o melhor da Renascença Portuguesa; ou com a consideração do modernismo não como uma escola ou um grupo, mas como uma atitude orientada para a compreensão dos novos mundos; na interrogação aberta e inconformista da transcendência – na linha de Dostoievski, Tolstoi, Proust, Claudel e Gide. Régio não é apenas poeta – é sobretudo dramaturgo, ensaísta e romancista, e nesses domínios encontramos alguma da melhor expressão da sua criatividade. David Mourão-Ferreira dirá: “Penetrante, arguto, tão apto por vezes para a síntese impressionista como para a análise psicológico-literária…”. A 22 de dezembro de 1969, em Vila do Conde, deixou-nos José Maria dos Reis Pereira, depois de uma vida de pedagogo, de escritor, de dramaturgo, de romancista, de novelista, de poeta, de contista, de ensaísta, de cronista, de memorialista. Foi há cinquenta anos. A sua obra multifacetada permite-nos compreender a existência humana através da literatura e da arte. E hoje voltamos a ler: “Era a hora do estudo da tarde, e Lelito pensava. As Catilinárias abertas na carteira, o dicionário à direita, o caderno de significados à esquerda e o lápis na mão – pareciam demonstrar que Lelito prepareva a sua lição de latim. Mas Lelito não pensava nas Catilinárias. Na realidade nem pensava…”
Novamente são referidos pela imprensa e pelas autoridades locais os problemas relativos ao velho Teatro Portalegrense, que aliás já abordamos em diversas ocasiões. E no entanto, o Teatro Portalegrense, independentemente da qualidade e potencial do edifício e da sua cada vez mais difícil situação, merece referência mesmo na perspetiva do historial do teatro português: assim, José Régio ficou marcado pela longa atividade docente na cidade; atores de relevo, como designadamente Artur Semedo lá se estrearam; e lá subiu à cena pela última vez Amélia Rey Colaço, num espetáculo de despedida, precisamente com “EL- Rei Sebastião” de Régio.
Independentemente desse historial histórico-dramatúrgico, importa novamente referir que o Teatro Portalegrense foi inaugurado em 1858 segundo projeto arquitetónico de José de Sousa Larcher, nome ilustre, na época bem conhecido e de certo modo ainda hoje. O Teatro estreou-se com “O Alfageme de Santarém” de Garrett.
O Teatro Portalegrense foi arquitetonicamente inspirado no Teatro do Ginásio de Lisboa, na sua versão oitocentista. E como tal funcionou nessa fase em que os Teatros então chamados da Província mantinham uma dupla atividade: ou serviam para exibição dos espetáculos de Lisboa em tournée nacional ou de suporte a grupos e companhias locais.
Em qualquer caso, como já se disse, foi lá que Amélia subiu pela ultima vez á cena, numa dupla homenagem: à atriz que assim se despediu da cena e ao Professor do Liceu de Portalegre, José Maria dos Reis Pereira que assinava a sua vasta obra literária como José Régio...
E Régio cita “Portalegre cidade/ do Alto Alentejo, cercada/ De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,/ Morei numa casa velha/, Velha, grande, tosca e bela,/a qual quis como se fora/ feita para eu morar nela” e seguem mais 228 versos de uma beleza evocativa de amor à cidade. (in “Fado” – “Toada de Portalegre”). Citamos sempre este belíssimo poema.
E também já tivemos ocasião de recordar que nos anos 80 do século passado o Teatro Portalegrense foi destruído no interior para nele se instalar um ringue de patinagem, insolitamente rodeado de camarotes.
E depois foi Templo Evangélico, ao contrário, note-se, de tantas áreas públicas e de espetáculo, construídas e/ou adaptadas de antigos templos...!
Esta semana lembrei-me de ir a um maço, guardado num lugar recôndito da biblioteca, onde estão números antigos da “presença – folha de arte e crítica” e dei-me a recordar referências antigas. Fiquei no início de tudo, em março de 1927, no texto emblemático de José Régio sobre “Literatura Viva”. Com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, tratou-se de, sob a inspiração dos modernistas de “Orpheu”, iniciar um novo tempo que demoraria a afirmar-se. E se digo que demoraria a afirmar-se é porque os jovens presencistas não foram os iconoclastas de 1915. O que fizeram, sim, foi proclamar o reconhecimento do contributo decisivo de Fernando Pessoa e dos seus. E se em determinado momento houve uma especial irritação com Eduardo Lourenço por ele ter estabelecido a distância entre o “Orpheu” e a “presença”, usando a palavra “contra-revolução”, a verdade é que o ensaísta de “Pessoa Revisitado” não usou a expressão com sentido político, mas com jaez metafórico. Os doze anos que separavam as duas revistas tinham muito que se lhes dissesse. Houve um compasso de espera de uma terrível guerra que durou trinta anos – e o presencismo tomou as devidas cautelas, não embarcando em qualquer unilateralismo. À Literatura o que era da literatura, sendo que a liberdade criadora, deveria ser posta em lugar cimeiro. Aqui completavam a geração de “Orpheu”, pondo mesmo a liberdade na ordem dia, sem ambiguidades que os modernistas alimentaram no fascínio mussolinesco. Fernando Pessoa desdobrou-se nos registos diferentes dos heterónimos e tornou-se progressivamente cada vez mais interessante, para além de um certo nacionalismo, que era moda do tempo. A “presença” admirava o cultor e os cultores da literatura viva, demarcando-se da mera função social da arte… Punham a tónica na palavra, na expressão artística, na liberdade criadora. Em arte seria vivo tudo o que era original. E a esta luz li o primeiro editorial da revista e tudo o que isso significava, de liberdade e autonomia – a começar pelo reconhecimento do génio de Pessoa e dos seus, sem preconceito nem limitação… Era, no fundo, a originalidade que admiravam.
Eis a célebre prosa Regiana:
«Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjetivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjetivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas - mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre estas qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afetadas, semelhantes qualidades não passarão dum truque literário.
Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhes esse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade da nossa literatura contemporânea está documentada pelos nomes que mais aceitação pública gozam. É triste - mas é verdade. Em Portugal, raro uma obra é um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser coletivo. O exagerado gosto da retórica (e diga-se: da mais sediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra dum moço traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germes de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a personalidade pelo estilo. Mas criar um estilo já é ter uma personalidade. E quem não tem personalidade só pode ter um estilo feito, burocrata, erudito, amassado de reminiscências literárias, de auto-plágios, e de pobres farrapos sobreviventes ao naufrágio. Assim se substitui a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só então os críticos portugueses começam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral, os nossos críticos são amadores de antiguidades. Em vez de lhes alargar o gosto, a erudição amarelenta-lhes a alma... Mas esta é outra questão, bem digna de ser tratada menos acidentalmente. Volto ao meu assunto, e suponho agora um exemplo talvez mais consolador: O escritor português tem e mantém uma personalidade. Pergunto: É essa personalidade suficientemente rica para que produza uma obra rica de conteúdo e de continente, de substância e de forma? É regra geral - presto homenagem às exceções - os nossos artistas terem uma mentalidade insuficiente; uma sensibilidade por vezes intensa, mas reduzida; e uma visão unilateral da vida. Esgotados em dois ou três livros, repetem-se confrangedoramente. E o seu progresso é puramente linguístico, superficial e negativo, porque breve a língua deixa de ser um meio vivo de expressão artística. É um instrumento quase inútil, que se aperfeiçoa segundo este ou aquele preconceito». (Presença, número 1, 1927)
"Diário de Viagens Fora da Minha Terra" de Eugénio Lisboa (Opera Omnia, 2017) completa os imperdíveis cinco volumes das Memórias do escritor e ensaísta - «Acta est Fabula».
UM LEITOR INCANSÁVEL
Depois de termos seguido a par e passo nas Memórias as deambulações ao longo da vida do escritor, do engenheiro, do diplomata, do ensaísta, do estudioso e do crítico literário, temos direito a uma interessante sobremesa, na qual contamos com a verve e o estilo do leitor incansável, que nos acompanha em encontros e caminhadas por Montevideo, Los Angeles, Peru, Viena, Budapeste, Praga, São Tomé, Havana, Paris e Marrocos. E Antonieta está presente. É como se o escritor nos convidasse para irmos com ele ao encontro de referências culturais e literárias que nos enchem de prazer e curiosidade. As recordações de Eugénio Lisboa têm a extraordinária virtude de ser genuínas e de não embrulhar em papel de presente, com flamantes laços, o que pensa sobre o que vê, lê, conhece e encontra. Daí dizer-nos, a propósito de um obituário sobre Vergílio Ferreira, que a melhor atitude perante um autor que respeitamos é dizer o que se pensa – abrangendo os claros e os escuros, as penumbras e as luminosidades, e nesse sentido elogia a prática britânica, que se revela imbatível em rigor e respeito por quem se pretende recordar. Ao começar por Montevideo, no ano de 1996, tão próximo, parece que se retrata um momento distante, talvez do neolítico, quando, com uma dose especial de ironia, o autor nos fala de pessoas que usavam, por uma questão de estatuto, telemóveis falsos. E conta que nesse tempo em Madrid num lugar público houve um incêndio, vieram os bombeiros, o vestiário ficou intacto e, surpresa das surpresas, nos casacos deixados pelos utentes, metade dos telemóveis eram falsos. Hoje, parece anedota... E lembro o que Umberto Eco afirmou, nessa altura, sobre a utilidade dos telemóveis sobretudo, dizia ele, para intriguistas e doentes crónicos... Onde já vai tudo isso... Em duas décadas, o que avançou o mundo da tecnologia e da informação... Hoje, há mais telemóveis que habitantes nas sociedades de consumo e a dependência desses bicharocos tornou-se endémica. Mas o fait-divers serve para ilustrar um seminário académico, em que Cleonice Berardinelli pontua com charme e interligência. Eugénio gostou do Uruguai – “a gente é acolhedora e simpática e as ruas parecem, por enquanto, seguras. Mas vê-se que é um país recente, a que ainda falta um bom bocado de história. (...) Mas há um ar exterior de riqueza relativamente bem distribuída e parece que a maior fatia da população é constituída pela classe média”. Também gosto do país, que é uma espécie de domínio do “portunhol”, dadas as vicissitudes históricas. E, pensando na Colónia de Sacramento, ainda há muito para fazer para valorizar esse património que tem tudo a ver com a cultura da língua portuguesa.
JOSÉ RÉGIO VEM À LEMBRANÇA
Em Los Angeles, José Régio vem à lembrança. A encenação de Lisistrata de Aristófanes é motivo de regozijo. “Fiquei contente. E o Régio também ficaria, se fosse vivo”. Mas sobre os excessos da criatividade interpretativa, lembra-se Yehudi Menuhin no King’s College a dizer que cada intérprete dá sempre a sua interpretação de uma partitura, mas esta só admite uma certa margem de variação... O reparo visa em cheio certas liberdades teóricas que nada têm a ver com o sentido original, para além da margem do bom senso... Entre contratempos burocráticos e contactos inteligentes, na companhia do amigo Boris Katz, um médico cheio de solicitações, o escritor encontra a afirmação de Charles Townes, especialista em Eletrónica Quântica: “Se olharmos para aquilo de que a religião se ocupa, verificamos que ela visa compreender o propósito e o significado do universo. A ciência tenta compreender funções e estruturas. Se existe algum significado, a estrutura terá muito que ver com esse significado. A longo termo, chegarão a convergir”. Mas Eugénio Lisboa fica cético e fala de especulação e de wishful thinking... O mundo do conhecimento está naturalmente cheio de dúvidas e contradições... No Peru, “pobrete e nada alegrete”, vai ao encontro da filha Geninha e família, e depara com o “país vivendo de desassossego em desassossego, até que um dia salta uma erupção qualquer, que um ditador sem escrúpulos, como Fujimori, sufocará, legislando no sentido de dar às forças de repressão imunidades que são uma vergonha”. Sente-se uma situação de incerteza e instabilidade – e na passagem por Caracas (era 2005) ainda não se sentia todo o inferno em que a Venezuela se transformou. Já a peregrinação ao Império Austro-Húngaro – a Viena, Budapeste e Praga – é singular. Apesar das pequenas desilusões culinárias, é Graham Greene, do “Terceiro Homem”, a ser recordado, como símbolo da transição após o fim da catástrofe da Segunda Guerra, que prolongou por trinta anos o inesperado conflito iniciado em Agosto de 1914. Há um fundo musical mozartiano nesta invocação vienense. Os Habsburgos, o Palácio de Belvedere, o principe Eugénio, e compreende-se que a ponte Francisco José tenha as luzes apagadas, por contraste com a iluminação da ponte Sissi – que é venerada, “farta das peneiras austríacas, veio viver para Budapeste e não quis mais nada com os seus compatriotas, que abominava...”. Depois vem Kafka: “Habita-me a presença de Kafka que, obviamente, não cabia aqui”... Eugénio parece-se fisicamente com Kafka, já o diziam Vergílio e Régio... A inesgotável matéria-prima kafkiana poderia não ter chegado até nós... E a imersão total parisiense lembra que “foi bom ter-te conhecido, em 1953, ter-te visitado, depois, uma dúzia e meia de vezes e ter estado contigo, agora, mais uma – que será, provavelmente, a última. Que milagre ter nascido e que milagre maior ter nascido entre aquele número muito reduzido de pessoas a quem foi dado conhecer cidades e tesouros, como tu, Paris...”. E se a capital francesa é uma referência civizacional, Cuba é o lugar mítico que recorda Fidel e Che a descerem da Sierra Maestra em 1959, para pôr fim à ditadura de Fulgêncio Batista. Depois o regime começou a endurecer, a eternizar-se no poder e a perseguir e prender os dissidentes. E com que emoção, na viagem a S. Tomé, Eugénio Lisboa fala de Isaura Carvalho, que com João Carlos Silva era a alma da deslumbrante roça de S. João dos Angolares. Deixou-nos há pouco – com uma voz lindíssima e um português que era um modelo de perfeição... As memórias tornam a vida presente...
Faço hoje aqui uma breve evocação/citação de José Régio como doutrinador e teorizador da estética e até da técnica do espetáculo, na perspetiva expressa e assumida dos atores e encenadores. E vale a pena então lembrar que Régio, para além da qualidade, força poética da linguagem e sentido de espetáculo da sua dramaturgia, com os condicionantes da longa permanência em Portalegre, esteve sempre próximo da produção teatral a partir designadamente da encenação da sua primeira peça, “Sonho de Uma Véspera de Exame”, representada no Teatro Portalegrense em 30 de Março de 1936, fará em breve 80 anos, em récita de alunos do Liceu onde Régio lecionava.
António Braz Teixeira, no Prefácio à edição do Teatro Completo de José Régio (ed. INCM vol I- 2005) assinala a existência de umas cenas de “revista”- espetáculo musicado, escritas pelo jovem José Maria dos Reis Pereira, nos seus 16/17 anos, muito antes de adotar o pseudónimo do José Régio que o consagrou. Braz Teixeira resume a cena, comentando que aí se “revela já inegável talento, sentido espetacular e clara apreensão de algumas das exigências da revista”.
Eu próprio me ocupei também dessas peças inéditas e/ou esquecidas de Régio. E ocorre uma curiosa convergência: no mesmo Teatro Portalegrense, inaugurado em 1858, projeto do arquiteto José de Sousa Larcher inspirado no primeiro Teatro Ginásio de Lisboa, Amélia Rey Colaço fez a sua última aparição em cena, em 1985, numa récita única de “El-Rei Sebastião” de Régio, no papel da Rainha Catarina.
Vale a pena transcrever parte do depoimento de Amélia acerca desta atuação, recolhida no recentíssimo livro de Vítor Pavão dos Santos de que já aqui falamos. Diz Amélia:
“Há quinze anos que não representava e num desses solilóquios, aqui sozinha, pensei: Mas que diabo, ainda havia uma personagem para a minha idade que eu podia fazer (…) A ideia era muito bonita mas uma coisa é o sonho e depois vem matéria. Pensei fazê-la com o João Perry, depois com o Sinde Filipe, e só pensava nisto, até de noite, sem poder dormir queria fazer El-Rei Sebastião, depois foi o José Wallenstein que fez e fez muito bem. (…) senti uma insistência que não era de mim”… (in Vítor Pavão dos Santos – “O Veneno do Teatro ou Conversas com Amélia Rey Colaço”- 1915).
E já agora: a “casa sinistra” onde Benilde ouve as suas vozes situa-se “em qualquer solidão do vasto Alentejo”, plausivelmente Portalegre… (”Benilde ou a Virgem Mãe” - 1947). E é de notar ainda que Portalegre terá tido algo como 16 teatros! (cf. José Martins dos Santos – “Teatro em Portalegre -1989”: Duarte Ivo Cruz “Teatros de Portugal” - 2005).
Ora bem: referimos hoje os conceitos de José Régio sobre a arte do ator/encenador, publicados pela primeira vez em 1949 no “Primeiro Volume de Teatro” e posteriormente retomados em sucessivas publicações e designadamente em “Vistas sobre o Teatro” publicada, na versão final de 1968, nos “Três Ensaios sobre Arte”. Vejamos, numa longa citação, o que Régio aí escreveu sobre aqueles criadores/executantes do espetáculo:
“A passividade do ator e do encenador perante o texto dramático nada tem de vexatória. Se me é permitido esta paradoxal, todavia justa, manifestação de me exprimir, é uma passividade ativa: pois, além das apontadas manifestações na sua atuação na realização cénica dum pensamento teatral expresso num texto, a verdade é que tanto o ator como o encenador podem, numa certa medida – medida tanto mais larga quanto mais inteligentes e sensíveis forem na sua arte e profissão próprias – enriquecer, completar, tornar comunicável esse texto. Alterando-o, desfigurando-o, traindo-o? De modo nenhum. Mas enchendo, pela simples mímica, os silêncios de que o poeta dramático não pôde senão sugerir o sentido; mas criando, quer pela marcação de toda a movimentação em cena, quer pela revelação dos vários elementos espetaculares, um ambiente ou meio que o poeta só interiormente vira, e pela palavra não conseguira senão fazer entrever; mas desenvolvendo, por apreensão da sua sensibilidade inteligente, por adequado e sensível emprego dos seus recursos técnicos, virtualidades e subentendidos do texto que o mesmo autor porventura não chegara a consciencializar. Nisto se revelam artistas o ator e o encenador e o papel tanto dum como doutro se torna muito importante. Tão importante que sem a sua apropriada ação, nenhuma obra dramática, por mais bela que literariamente seja, pode chegar a viver como teatro”.
Notável análise doutrinária do fenómeno e do espetáculo teatral. Coerente com a qualidade ímpar da criação literária de José Régio, em todos os géneros, mas sobretudo coerente com o sentido de dinâmica de espetáculo – e aí, tanto mais de registar quanto é certo vir ela de quem ao longo da vida esteve afastado dos grandes centros de produção de espetáculo, mesmo de Lisboa…Ora, o teatro de José Régio é eminentemente espetacular.
E para terminar: curiosamente, “Jacob e o Anjo”, traduzido em espanhol e em francês, estreou-se em Paris, no Studio des Champs-Elysées em 1952; em Lisboa, só em 1968! Mas, no seu conjunto, o teatro de José Régio acabaria por ser interpretado, ao longo dos anos e das peças, pelo melhor que existiu ou existe na cena nacional: entre tantos mais, nas diversas peças e produções, recordamos Eunice Muñoz, Madalena Souto, Maria Barroso, Amelia Rey Colaço, Lus Veloso, Linda Bringel, Fernanda Figueiredo, Maria de Jesus Aranda, Teresa Mónica, Maria Tavares, Maria João Galope, Augusto Figueiredo, João Mota, Carlos Duarte, Samwel Dinis, Assis Pacheco, Andrade e Silva, João Perry, Erico Braga, Álvaro Benamor, João Lourenço, Hugo Casais, Joaquim Rosa, Costa Ferreira, Carlos Cabral, Vitor de Sousa, Sinde Filipe, José Wallenstein, Batista Fernandes, Fernando Midões, Carlos Santos, Dário de Barros, Jorge Sousa Costa…
E encenações de Jacques Charpin, Orlando Vitorino, Amélia, Costa Ferreira, Norberto Barroca, Claude Henri Frèches, Pedro Martins.
Voltaremos ao teatro de José Régio, na perspetiva dos atores encenadores mas também, como temos feito, na análise da dramaturgia originária do espetáculo.