Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 28 de novembro a 4 de dezembro de 2022


A “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, adaptada em Banda Desenhada por José Ruy (Âncora Editores) é uma das obras-primas da 9ª Arte em Portugal. Recordamo-la. no momento em que o grande ilustrador nos deixa com 92 anos de idade.


UMA REFERÊNCIA DA CULTURA PORTUGUESA
Se a obra de Fernão Mendes Pinto é uma das maiores referências da cultura da língua portuguesa, esta adaptação feita por José Ruy (1930-2022) e publicada pela primeira vez em continuados no “Cavaleiro Andante”, entre 14 de dezembro de 1957 e 6 de junho de 1959, constitui uma magnífica adaptação gráfica, na qual o público leitor pode ter acesso a uma síntese servida pela mestria de um dos mais importantes mestres das histórias de quadradinhos (HQ), ao lado de Eduardo Teixeira Coelho (ETC), José Garcês ou Fernando Bento. Quando lemos a adaptação de “Peregrinação” percebemos o porquê de Fernão Mendes ter respondido aos que duvidaram da veracidade dos seus relatos do seguinte modo: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”. É memorável, por exemplo, o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário (não se sabe se alter ego do autor), numa situação, em que quiseram saber novidades de Liampó, “porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito”. Afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto.


O DOMÍNIO DO MOVIMENTO
E é inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia “derramador e bebedor do sangue português”, a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. “E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão…” As ilustrações de José Ruy são exemplares e constituem referências para os melhores especialistas internacionais da Banda Desenhada. Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto está relatado na “Peregrinação”, que constitui um texto pioneiro na literatura europeia, ao lado da obra imortal de Cervantes sobre o Cavaleiro da Triste Figura. Pode até ter acontecido que não fosse Mendes Pinto o real protagonista de tudo o que é relatado, mas percebemos que cada episódio pôde ocorrer de facto, até porque os estudiosos desse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relatam sem ler Fernão Mendes Pinto. E José Ruy com o seu traço inconfundível e o perfeito domínio do movimento interpretou a mole imensa de acontecimentos de modo exemplar. Dir-se-á que, como acontece na literatura moderna, o autor, como o romancista, compõe a visão dos acontecimentos artisticamente, a partir da matéria-prima dos acontecimentos que de facto viveu.


José Ruy, que aqui homenageamos, nasceu na Amadora em maio de 1930, tendo sido aluno e cursado na Escola António Arroio, que sempre tanto elogiou, onde foi discípulo de Rodrigues Alves, Falcão Trigoso e Júlio Santos. Iniciou-se como desenhador e argumentista com apenas 14 anos em “O Papagaio” de Adolfo Simões Müller, tendo tido uma especial preocupação no aperfeiçoamento das técnicas de desenho, ilustração e gravura. É o autor português com maior número de obras publicadas na sua especialidade, mais de 80 álbuns, sendo cinco dezenas de Banda Desenhada (ou de histórias de quadradinhos, como preferia dizer) com destaque para as viagens de Porto Bomvento, bem como para as biografias de Almeida Garrett, João de Deus, Bernardo Santareno, Pero da Covilhã, Pedro Álvares Cabral, Aristides de Sousa Mendes, Leonardo Coimbra, Humberto Delgado, Charlie Chaplin ou Carolina Beatriz Ângelo. Graças ao encontro com um saudoso amigo comum, Amadeu Ferreira, ilustrou a história da língua e do povo mirandês. Com a publicação de “Os Lusíadas” foi o primeiro autor a publicar um álbum sobre um poema épico. O rigor e a qualidade do seu trabalho têm sido reconhecidos tanto em Portugal como no estrangeiro, estando a sua obra publicada em 11 línguas. Foi o primeiro autor a ser galardoado com a Medalha de Honra do Festival de Banda Desenhada da Amadora, tendo ainda recebido a Medalha Municipal de Ouro de Mérito e Dedicação da Cidade da Amadora. O CNC não esquece a extraordinária lição que nos deu sobre os segredos do artista no tempo em que a gravura era trabalhada diretamente na base metálica, até ao mais ínfimo pormenor. Não podemos deixar que o silêncio possa cair sobre a memória de um artista como José Ruy. A sua obra corresponde a um caso único de qualidade e exigência. Enviamos, por isso, a sua família e amigos a expressão dos nossos sentimentos e uma homenagem profunda ao seu humanismo de sempre.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CADA ROCA COM SEU FUSO...

Numa homenagem a José Ruy o grande mestre da Banda Desenhada e à memória de Amadeu Ferreira, que tanto deu à causa da língua portuguesa e da língua mirandesa, citamos um texto publicado há pouco no DN…

A MAGIA DA PALAVRA


Fernão de Oliveira, autor da primeira “Gramática da Linguagem Portuguesa” (1536) alertou: “Não desconfiemos da nossa língua, porque os homens fazem a língua e não a língua os homens”; e João de Barros, quatro anos depois, afirmou que o português “não perde a força para declarar, mover, deleitar e exortar a parte a que se inclina, seja em qualquer género de escritura”. É a língua o nosso mais importante valor civilizacional. Deve, por isso, ser por todos protegida. E como fazê-lo? Falando-a e escrevendo-a bem. Compreendemos, por isso, Fernando Pessoa, num texto muito referido mas pouco compreendido: “Odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon…”.


Muito se tem dito sobre o tema. Contudo, do que falamos é de um ato de cidadania, mais do que de questão de gramáticos, como está no “Livro do Desassossego”. O fundamental é que saibamos comunicar, que nos façamos entender corretamente, tal como nos ensinaram os melhores cultores do nosso idioma. E tantas vezes esquecemos as nossas próprias condições históricas, bem diferentes do caso da língua inglesa, que não necessitou de regulamento ortográfico, porque, como país da Reforma, o rei Jaime I ordenou que fosse feita a tradução da Bíblia em língua vulgar, obra magna que ficaria concluída em 1611. Hoje, continua a ser essa a matriz do falar e do escrever em inglês, como uma das mais belas obras literárias do idioma, criada para ser lida em voz alta nos templos e compreendida em silêncio por cada um dos seus leitores. A história portuguesa nesse domínio é, como sabemos, assaz diferente. Desde 1911 que o tema se discute, numa longa sucessão de encontros e desencontros. A República propôs-se simplificar, com substituição, por exemplo, dos dígrafos de origem grega (th, ph) por grafemas simples (t, f) ou com a eliminação do y. E Pascoaes não se resignou: «Na palavra lagryma, (…) a forma do y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal». Em 1931, foi assinado um primeiro acordo luso-brasileiro, que não foi aplicado. Em 1945, houve novo tratado, mas o Brasil continuou a aplicar o seu vocabulário de 1943. Em 1973, o governo português aboliu os acentos grave e circunflexo em certos casos; e em 1990 houve o Acordo Ortográfico…


Independentemente de controvérsias, temos de tomar consciência de que se trata de um património cultural partilhado, língua de várias culturas e cultura de várias línguas, que terá mais de 500 milhões de falantes no final do século. Temos de cuidar bem desse valor, para que o português seja bem falado e escrito (com os verbos intervir e haver bem conjugados, com o plural de acordo sem ó aberto), sem o massacre dos pronomes; sem erros escusados de uma novilíngua orwelliana – como resiliência em vez de resistência; implementação em vez de execução ou até implemento; evidência em vez de prova; empoderamento em vez de capacitação. Ler ou ouvir grandes escritores é o melhor caminho – disse-o Filinto Elísio: «Aprendei, estudai; / e os bons autores sabereis ter em crédito e valia. / Eles a língua em seu primor criaram / eles no-la poliram».


GOM