Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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O AMOR NÃO INVESTIGA CULPAS… por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José Saramago:
São suas "As Pequenas Memórias", essas que nos contam como, menino e moço, pelas férias de verão em casa dos seus avós Josefa e Jerónimo, metia "um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge" (tal como o Jesus do seu romance "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", que não é evangelho nem pretende sê-lo) e saía para o campo, por onde pouco tinha para escolher: "ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe cobre e protege as margens, ou os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo para jusante, depois do ponto de confluência com o Almonda, ou, enfim, na direção do norte, a uns cinco ou seis quilómetros da aldeia, o Paul do Boquilobo, um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso. Não havia muito por onde escolher, é certo, mas, para a criança melancólica, para o adolescente contemplativo e não raro triste, eram estas as quatro partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro"... Por longa que fosse a aventura, ou penoso o esforço que o levasse além dos obstáculos, até novas descobertas, "o rapazinho da Azinhaga só teria para apresentar a sua ascenção à ponta extrema do freixo de vinte metros, ou então, modestamente, mas com maior proveito degustativo, as suas subidas à figueira do quintal, de manhã cedo, para colher os frutos ainda húmidos da orvalhada noturna e sorver, como um pássaro guloso, a gota de mel que surdia no interior deles"... No fim do séc.II, Santo Ireneu de Lyon, na esteira de tradições ainda mais antigas no convívio e na pregação evangélica da Igreja, afirma a autoridade canónica de quatro evangelhos. Sabemos que, em tempos sem imprensa nem televisão, etc., a comunicação em sociedade se fazia por transmissão oral - designadamente em assembleias e reuniões - que era muitas vezes registada em manuscritos, então copiados para serem lidos de forma a darem alguma consistência e uniformidade aos relatos e teses que se iam difundindo. Houve assim várias narrativas da vida e dos ensinamentos de Jesus e, embora todas fossem autorizadas em privado, sentiu-se a necessidade de reter, como corpo autêntico de futuras leituras, um pouco como o José memorizou percursos e paisagens da sua infância, quatro delas, "como partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro". Assim escreveu Santo Ireneu: "Não pode haver nem maior nem menor número de evangelhos. Na verdade, porque existem quatro regiões do mundo em que estamos e quatro ventos principais, e posto que, por outro lado, a Igreja se dispersou por toda a Terra e tem por coluna e suporte o Evangelho e o Espírito de vida, é natural que tenha quatro colunas que de todos os lados soprem a incorruptibilidade e deem vida aos homens. Por isso nos deu o Verbo um evangelho em quatro formas, ainda que alimentado por um único espírito..." Leio, com alguma regularidade, os apócrifos cristãos antigos, até porque neles encontro essas memórias do imaginário cristão de antanho, que tantas vezes serviram - e ainda hoje servem - de tema e inspiração para a arte religiosa ou a simples representação de cenas bíblicas mais familiares: o Presépio é disso belo exemplo. Também me aconteceu ler romances ou outras fantasias da vida de Jesus, nada aprendi para além do que já sabia sobre o gostinho que alguém possa ter em meter sexo em tudo ou escandalizar crentes. Nunca me escandalizei, pareceu-me tudo isso pouco interessante. Mas cada qual sabe como se trata. No seu romance, José, há todavia aquela insistência na culpa de Deus, ao ponto de querer confundi-lo com o diabo. Penso que, hoje em dia (para mim, não para si, que já saiu do tempo), o José terá esclarecido a questão. O que a seguir direi é, portanto, mero desabafo, seria estultícia pensar agora convencê-lo, a si, fosse do que fosse. São José, pai de Jesus, é culpado da morte das inocentes crianças que Herodes mandou ceifar, pois apenas pensou em salvar o seu filho e se esqueceu de avisar as famílias de Belém. Será castigado, crucificado pelos romanos por conspiração em que não entrou: "Deus não perdoa os pecados que manda cometer." Mais tarde, no seu romance, Jesus descobrirá que "nunca houve no mundo gente mais inocente que aquela de Belém, os meninos que morreram sem culpa e os pais que essa culpa não tiveram, nem gente mais culpada terá havido que meu pai, que se calou quando deveria ter falado, e agora este que sou, a quem a vida foi salva para que conhecesse o crime que lhe salvou a vida, mesmo que outra culpa não venha a ter, esta me matará". E nessa revelação do mal intrínseco ao ser e à vida surge, como força telúrica, quase sem idade, como Deus, o anjo, mendigo na anunciação, pastor na natividade, Pastor dos fantasmas que, depois, perseguirão Jesus, aquele a quem "não fazemos as perguntas porque ainda não estávamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas. E, quando encontramos coragem para as lançar, não é raro que não nos respondam, como virá a fazer Jesus quando um dia lhe perguntarem, Que é a verdade. Então se calará até hoje." Não sei se Pilatos encontrou resposta, tampouco sei se a pergunta que fez era já a sua resposta, é por vezes mais cómodo duvidar do que procurar. Perante a ordem aparente do mundo, que não esconde um caos eminente, vivemos esta condição de pressentimento contínuo. Poderei não saber a verdade do que vejo, ou encontrar uma verdade em várias fórmulas apresentada e discutida, ou, ainda, ir ou não descobrindo um pouco mais desta ou daquela verdade. Todas essas verdades, com mais ou menos lógica e aceitação, são meras representações. Mas acredito numa Verdade. Inscrita no coração dos homens. O menino que sou aventura-se pelos quatro evangelhos, como o menino da Azinhaga, pelas quatro partes do mundo, trepa por freixos acima quando encontra frases misteriosas ou afirmações estranhas, que deverá avistar lá de cima, para não se deixar enredar por arbustos e silvas, nem travar por muralhas de trepadeiras. Percorro narrativas singelas, cheias de amor pelas crianças e outros pequenos, de segredos guardados no coração, porque só aos que têm a humildade de aceitar que não sabem muito, e nem tudo poderão perceber, é dada a revelação negada aos sábios e poderosos. Os evangelhos por onde me passeio falam-me de culpa mas a pretexto de perdão, de falta como porta aberta à misericórdia. E da única Verdade que posso, em vida, e devo, conhecer: amai-vos uns aos outros. Nenhuma demonstração teológica, nenhum martírio, nem manifestação pessoal ou coletiva de fé ou de sagacidade filosófica, é isenta de contestação. A Verdade, a única, essa que cada um de nós deve descobrir no íntimo do coração, é o amor. Que vai criando o mundo e revelando Deus. A verdade que me cabe, a única de que tenho absoluta certeza, é o amor de cada dia, como se, ao dá-lo, Deus esteja comigo na construção da paz. Escuto muitas vezes os 4º e 5º andamentos da 3ª sinfonia do Mahler. O 4º, como sabe, é um solo para contralto: "O Canto da Meia-Noite" de "Also sprach Zarathustra" do Nietzsche. "Ó Homem, tem cuidado! Que diz a meia-noite profunda?... ...Profunda é a sua dor!" Mas logo se inicia o 5º andamento, com o "bim-bam" do coro de crianças e mulheres e esse poema tradicional que Mahler foi buscar ao "Knaben Wunderhorn", anunciando que a Pedro foram perdoados os pecados: "A alegria celeste é uma cidade feliz / a alegria celeste não tem fim./ A alegria celeste foi dada a Pedro/ por Jesus, e a nós para felicidade nossa!". O amor não investiga culpas, alegra-se na misericórdia.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 08.11.13 neste blogue.
NASCER É OBRA DE MILÉNIOS… por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José:
Saberá, meu unilateral correspondente, melhor, muito melhor do que eu, o quanto gostei do seu relato da Natividade de Jesus: "O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. "Sei bem que me desvio (um pouco?) da contemplação feliz, apaziguadora, certamente necessária, de um Presépio tradicional, inodoro e bonito. Eu, como todos, gentes várias de muitas condições, preciso dessa paz, do instante, curto que seja, em que sinto, no coração angustiado ou perdido, o conforto duma lareira amiga, a visão de uma esperança como promessa antiga... (Uso as ... reticências, sei que o José as não usava nem gostava delas. Mas não é por mim nem para mim que as uso. É tão só porque assim exprimo uma expectativa, que mais não é do que querer aguardar o que ainda não conheço. Modos de ser, concedo...) Mas gosto, sem reticência alguma, da verdade humana, dessa densidade tão sentida do parto de Jesus, do livramento de Maria. Essa foi a Incarnação de Deus. É, como todas as dores de parto, contra todos os atentados contra a vida e todos os desvios dela, o Manuel, o Deus connosco. É, para o cristão, o que a poesia é para Novalis: o real absoluto. Fundador da nossa cultura como visão metafísica do mundo e da história. O Deus que "nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo..."morrerá, infamemente talvez, mas para que, na hora da morte, ao fechar os olhos, cada um de nós os possa abrir com Ele. Deus é como a semente: morre para renascer. E porque não será assim, na nossa condição de trânsfugas, quando até do casulo da lagarta sempre nasce uma borboleta? Ou do coração que está na boca de um poeta analfabeto, se liberta um poema que nos prende o vadio pensamento? Onde se nos promete Deus? Se à sua imagem e semelhança fomos feitos, ele certamente habita o segredo do nosso coração. E é esse o segredo, José, da vida de cada um. O tal que cada um, à sua maneira, desvendará ou não. Por isso sempre penseissenti que de nada vale, nem para nada serve, a santa inquisição ou outra qualquer perseguição. A verdade não se impõe de fora para dentro, nem sequer se demonstra fora da íntima intuição de cada um. Creio muito que, no coração de Deus, a verdade é uma vocação lançada ao coração dos homens. E Deus lá sabe. Posso entender que almas piedosas se amofinem à imagem súbita dessa natividade tão carnal do Deus humanado. Mas assim terá sido, nenhum escrito canónico nem apócrifo o contesta, e, pelos séculos de piedade cristã que se sentia na rudeza do mundo em que ela vivia, tal sentido de pertença de Jesus à terra e à condição dos homens esteve sempre presente. Mas é também parte do humano coração dos povos uma eucaristia, ação de graças. A incarnação de um deus transcendente, nem nos olimpos onde os deuses incarnavam os nossos desejos e fúrias, nem mesmo nos neopaganismos "à Ricardo Reis", em que se contentavam com o espetáculo do mundo, despidos já de qualquer intervenção nas nossas vidas, tem, para os fiéis de religião monoteísta, explicação plausível. É um escândalo. E tal é o espanto, que a sua representação terá de se apoiar em sinais de transcendência. Até o José Saramago talvez não tenha resistido a essa tentação: no seu "evangelho", percebo, a conceção de Jesus terá de ser realizada pela união carnal de Maria com José. Não me escandalizou a ideia, devo dizer-lhe, nesse tempo terrenal (como diria o nosso Gil Vicente), em que o José a pôs por escrito. Nada tem contra a natureza das coisas. Aliás, nem sempre compreendi, antes de estudar alguma antropologia, o horror "religioso" ou "puritano" ao ato carnal - que, na minha religião, tal como a fui entendendo, é sacramento do amor criador, com Deus, entre um homem e uma mulher - nem ganhei horror ao sangue menstrual da mulher; nem me passou pela cabeça que a união de meu pai e minha mãe fosse um ato reprovável... Abençoado gozo que me deu vida! Mas também não vejo por que razão, antes e depois de ter estudado antropologia, eu não hei de perceber que um acontecimento de dimensão cósmica como é a incarnação de Deus, não possa ter, nos textos que nos transmitem testemunhos coevos - que, aliás, ó José, note bem!, não eram de gente interesseira, antes de pessoas simples, muitos pobres, todos talvez agradecidos por esse gesto de Deus, que maravilhava a sua fé! - essa expressão de pureza absoluta, o gesto sem mácula possível, livre de qualquer outro pensamento - desses muitos que nos ocorrem quando em ato sexual, a luxúria ou a violência vêm apagar a ternura e o amor. Somos trânsfugas, sabê-lo-á hoje, bem melhor do que eu. Por isso tanto precisamos dessa " Ó estrelinha do norte, espera por mim, que já vou, alumia o meu caminho, já que o luar me enganou..." Cá em baixo, José, digo-lhe com franqueza: preciso de esperança, não de mitos que os homens construíram e trucidantemente se entreteram a destruir... Como Antero de Quental, tenho um coração que procura a mão de Deus... Amar os outros, amar mesmo este destino de escuridão e saudade, a que tantas vezes nos sentimos condenados, não é fácil. Para nenhum de nós, sobretudo para os que o fado despojou e nós outros desamparámos. Só por isso seja abençoada a virgindade de Maria, pois não é de um insignificante pormenor físico de que então falamos ,mas desse indizível sentimento de dignidade inicial, essencial, falo-lhe, José, do intocável que habita o cerne de cada pessoa e que, à falta de melhor, os mais pobres reconhecem na Virgindade Maternal de Maria.
Por isso, à margem e contra as tradições misóginas e machistas de civilizações, culturas e religiões, se foi impondo, no culto popular, a revelação do que não deixamos que alguém desrespeite em nós. No seu "evangelho", o José Saramago tem algum temor (?), ou será premonição temerosa (?), quanto ao sobrenatural de Jesus: concebido pela união de Maria e José, não se livra todavia de um mendigo - anjo? - a quem Maria dá de comer numa tijela, onde ele deitará terra, no fundo da qual brilhará uma luz e que, mesmo enterrada, por obra de José e dos da sinagoga, será sempre semente de uma árvore sempre renascida. Será esse anjo (?) escolta de Maria até ao livramento, aí feito pastor que lhe leva o pão. Bonita imagem, no seu presépio, aliás, só os pobres participam e oferecem... Se algum dia eu chegar aí acima - pois duvido de que o José possa entretanto voltar cá abaixo - far-me-á o favor de explicar porque insistiu em que o outro José (o carpinteiro) fizesse mais filhos a Maria, e lhes deu os nomes que uma narrativa egípcia, de que se conhecem originais em copta e árabe, atribuiu aos filhos do primeiro casamento de José Nazareno, antes de Maria. Estes textos, como outros coevos, e a tradição dos povos crentes, sempre referem a Virgindade Maternal de Nossa Senhora. Ora, se o Alfredo Marceneiro perguntava, sobre ele mesmo, "há maneira melhor de ser fadista?", não poderei eu inquirir se há maneira melhor de concebermos a incarnação de Deus? Noutro texto apócrifo, uma vida de Jesus em árabe, de origem síria, remotamente persa, diz-se "Em nome de Deus, Benevolente e Misericordioso: no Tempo de Moisés, o profeta, sobre ele permaneça a paz, vivia um homem chamado Zoroastro; foi quem revelou as ciências da magia. Certo dia, em que, junto de uma fonte, ensinava as ciências do magismo, disse-lhes em seu discurso: A virgem engravidará, sem ter conhecido homem, sem que o selo da virgindade tenha sido rompido..." E diz o Corão: "Deus não pode ter filhos. Longe da sua glória essa blasfémia! Quando decide uma coisa, diz: Seja! E ela é." Mas antes disse: "A ela enviámos o nosso espírito... ...Disse-lhe: sou o enviado do teu Senhor, para te dar um filho santo... Como, contestou ela, terei eu um filho? Homem algum se chegou a mim e certamente não sou uma dissoluta... Respondeu-lhe: Será assim, disse o teu Senhor: isso é fácil para mim. Será o nosso sinal diante dos homens, prova da nossa misericórdia". Haverá forças ocultas, ânimos, que nos escapam e perseguimos com símbolos e ritos que possam possuí-las; ou deuses olímpicos, tão cheios de vícios nossos que poderemos corrompê-los; ou divindades sanguinárias que exijam sacrifícios que medularmente nos anulem. Ou, ainda, promessas de homens com memória mais curta e força mais fraca do que a sua própria existência. E aparece esta proposta de um Deus que fecunda, ele mesmo, o ventre de uma mulher humilde e nos diz: Quero ser convosco! Posso acreditar, aceitar ou não. Se disser sim, sei que participo dessa geração. E não preciso de mexer numa história que foi tão lindamente contada.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 03.11.13 neste blogue.
EM DIA DE COMUNHÃO DE IGUAIS por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José Saramago:
Veja bem ao que chegámos! Aí, que não é sítio em que se esteja, mas tão simplesmente se é, em alegria e paz... Ou, melhor ainda - procuro eu exprimir-me apesar da minha limitação - aí, que nem sítio é, mas tão somente a magnífica glória da comunhão de todos nós, passados, presentes e futuros, com a infinitude do universo que, creio, sim, é o coração de Deus, o José está cheio de todos os que amou, publicamente ou no segredo íntimo do seu coração imortal, o tal que já morreu e continua... Desculpe, hesito no modo de dizer, pois não sei como... e como seria eu capaz de dizer o profundamente sentido, o que nem eu de mim entendo e entrego à misericórdia de Deus? O indizível, porque indefinível como o mesmo Deus? Volto ao meu sítio, Portugal em dia de Todos os Santos, 258 anos depois do terramoto que arrasou Lisboa. Não vou comemorar uma dor, basta-nos a lembrança dela. E a esperança renascida, que reconstruiu uma cidade, hoje ainda renovadamente querida! Lisboas com vários nomes, muitos senhores, diversos povos e fés, mais ou menos acertadas urbanizações, muitas houve! E, nelas todas, só uma é. A nossa Lisboa, que está aqui, como a vemos hoje, mutilada, reparada, acrescentada, projetada ainda, esta que o nosso olhar enxerga...é querida e efémera! A Lisboa que é, aquela que ainda descobrimos ou vamos pressentindo como estava noutros disfarces passados, essa é a que é, sem tempo nem modo, a nossa comunhão com o que vemos e não vemos, com o que dizemos e o que não conseguimos dizer. Volto ao meu tempo, a este 1º de novembro de 2013, quando, pela primeira vez, por acordo entre o Estado Português e a Igreja Católica, não haverá dia de feriado santo para a celebração do que é a essência das comunidades: esse manifesto sinal de pertença e esperança, essa lembrança de que não somos sem os que nos vieram antes e nos virão depois. Há milénios que todas as civilizações de gentes humanas procuram conservar os mortos e celebrá-los com os vivos. Numa Nação tão tecnologicamente "avançada" e economicamente poderosa como o Japão, a celebração de lares e de penates - assim diriam os romanos - determina hoje duas semanas de feriados por ano. Não há futuro sem origem. Não há sociedade solidária sem comunhão. Não há existência sem essência. Não há desenvolvimento sem pessoas. Nem motivação sem alma. Esta, já outro dizia, no século XIX, que não a encontrara na ponta do bisturi. Procurou mal, nunca ali a encontraria. Estes dizem que encontram aumento de produto no corte da comunhão das almas. Curto é o alcance de quem não comunga na gente. Talvez o José me compreenda. Já não está aqui, onde o interesse imediato é o exercício quotidiano da estupidez. Chegue a esse assento etéreo o meu queixume.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 02.11.13 neste blogue.
Nomeai-vos, foi pelo José dito, uns aos outros. E bem. São sempre bonitos e bons, e connosco devem ficar, estes nomes que pais ou avós, ou padrinhos ou quem nos acolheu, ou alguém antes de nós, nos deu em penhor de nos querer bem. Pensossinto, muitas vezes, esse instante único, irrepetível, em que, todos nós, fomos simplesmente esse ser que gritou um choro ou chorou um grito, pouco importa aqui a ordem das palavras, a dor de um livramento de mulher é a nossa dor inicial, e a alegria dela aquela que não sabemos nunca quanto tempo dura. Assim somos feitos, esta, e nenhuma outra, é a nossa condição. Da minha vida só sei que a recebi para que jamais ela me pertença. Não possuo, nunca poderei possuir, o meu bem mais precioso. Aí, onde hoje já não está mas simplesmente é, o José único, que em seu dia nasceu, talvez saiba já (já, para mim, aí se apagou o tempo, nem espaço há, digo aí por escassez de conhecimento) que a negação de Deus é tão absurda, aqui em baixo, se assim me posso exprimir, como qualquer perentória afirmação de um deus reduzido à nossa dimensão, com as nossas simpatias e antagonismos. Há um rasgão inato à condição humana: ao rompimento das águas do ventre materno, somos compulsivamente atirados para o desconhecido, e não sei se choramos para podermos respirar, ou se já de saudade de um refúgio que tão cedo não teremos. Nesse momento, sem o saber sabemos que, da nova vida em que acabámos de entrar, só a morte nos livrará. E porque, a partir daí, passamos a ser quem busca sempre, quem sempre terá de procurar, queira ou não queira, até aquilo que desconhece e não sabe se irá encontrar, aprenderemos de nós que somos esses que Ortega y Gasset chamou trânsfugas da natureza. E mais trânsfugas seremos ainda, quando, de Caronte, o barqueiro sombrio nos largar na outra margem. Onde, teimo eu em crer, com S. João Evangelista, "Deus é luz e nele não há quaisquer trevas"... Como se tivéssemos sido destituídos de um paraíso inicial, achamo-nos desamparados, sabemos todos que seremos sempre pobres, mesmo aqueles que acumulem muitas riquezas no mundo. É nesta aflição que pensamos em Deus ou, se preferir, interrogamos o desconhecido, o inevitável mistério da vida e do destino. E essa interrogação habita o coração de cada um, como segredo que se poderá ou não desvendar... Mas lá fica, usque ad mortem. O José já (já, para mim, claro!) conhece a resposta, sem segredo, tão só como evidência. Eu ainda não, e todos os dias repito a mesma prece: Que a minha tão dura condição não me deixe cair no desalento, nem baixar os fracos braços perante a injustiça e o mal; nem me leve a qualquer raiva, manifesta ou surda, contra a única esperança que a transcende. Que não esqueça, no decurso do tempo incógnito desta minha vida - o único em que ontem ou amanhã, agora, jamais ou nunca poderão ser significantes - que "um só dia, perante o Senhor, é como mil anos, e mil anos como um só dia". Ascendeu o José a uma sabedoria que está muito acima da minha, da nossa, dos que por cá andamos neste esforço de cegos a abrir os olhos. Conhece o que é o mal, não precisará de procurar, como nós, uma explicação plausível, comum a todos, para o escandaloso facto de ter sido razão de castigo maior Adão e Eva terem provado o fruto da árvore do conhecimento. Eu ainda me pergunto porquê. Sobretudo quando considero tanta literatura sacra, tantas religiões insistindo em que devemos saber distinguir entre o bem e o mal. E será o mal, cujo conhecimento original nos foi negado - só porque a primeira mulher o terá querido saber - culpa mesmo nossa? Diz o José que Caim matou Abel, mas por culpa de Deus. E que em nome de Deus (perdoa-me, certamente, que antes da minha hora eu escreva Deus com maiúscula) se foram fazendo, pela extensão do tempo e do espaço, fartas guerras, perseguições, sevícias e mortandades. Não posso negar que assim, de facto, foi e é múltiplas vezes invocado esse nome de Quem é. Como não será possível escamotear que, em nome do benefício da negação e desejada morte de Deus, tão indesculpáveis atrocidades se cometeram, ainda em tempo da vida terrena do José, do império soviético ao Cambodja de Pol Pot. Porque terei eu de culpar Deus de tudo o que os humanos fazem - e do mal, ainda, de todo o mal que cada um de nós considera que não praticou e cuja responsabilidade, portanto, a outrem deverá ser imputada? Não é tudo isto um enormíssimo absurdo? Que sentido tem a raiva, o ódio do Outro, o mesquinho, malevolente impulso ou desejo de lhe imputar culpas? Será essa revolta que nos libertará do mal que nos rodeia e persegue? Quantas teses filosóficas, quantas revoluções sangrentas nos prometeram a construção do homem novo pela sua auto-apropriação, por essa ilusão de um destino possível e controlável? E, finalmente, impuseram regimes de tão sentida redução do homem e tanta injustiça persecutória... A tal ponto que George Orwell verificou esta simplicidade lapaliciana: "All animals are equal, but some animals are more equal than the others..." Assim é sempre, e a injustiça relativa dos destinos pessoais e das desigualdades sociais, tanto quanto o possamos saber, não encontrou ainda solução satisfatória, isto é, resposta adequada das nossas teorias e métodos. Por maioria de razão, perplexos continuaremos perante a questão do mal. No tempo e no lugar, no espaço em que o José percorreu a vida tensa que a cada um de nós cabe "cá em baixo" (e é bem baixinho, por vezes...), acreditou talvez no milagroso Deus da sua infância, jurou, mais tarde, a morte dele e a redenção dos homens pelos homens (repare no plural). Só não acabou (porque, como o José tão bem disse,há "essa estranha formosura" que não morre) nem revoltado nem resignado por obra e graça da Morte (perdoe-me outra vez a maiúscula) que, afinal, se queda intermitente, hesita e, como se Deus fosse, não ceifará um homem, só pelo encanto de uma suite para violoncelo, de Bach. Mais precisamente, como aponta José Saramago em "As Intermitências da Morte", da 6ª, em ré maior. Composta em Cöhten, quando o compositor estava ao serviço da família ducal Anhalt-Cöhten que, apesar de calvinista, fazia questão em fomentar a liturgia e a música, quer sacra quer profana. Conta-nos o José que a Morte foi visitar o violoncelista desconhecido a sua casa, para lhe entregar o pré-aviso da sua hora letal. Mas não resiste à tentação de lhe pedir que para ela toque essa suite nº6, opus 1012, ao que ele finalmente acederá: "mãos felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a Rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher"... Mas foi Rostropovitch quem escreveu: "Com a "allemande" da 6ª suite espera-nos uma grande surpresa. A sua melodia flutuante parece escapar à lei da gravitação universal - é como se errasse pelo espaço". Creio que o José Saramago sabe que nunca se emancipou totalmente de uma certa tentação religiosa. Afinal, o pessimismo da sua visão do mundo e dos homens parece-me ser antes fruto duma frustração: a de não ter jamais conseguido discipliná-los, tal como, ao engano, também certas instituições religiosas chegam a presumir que podem. Ou como Ricardo Reis que, monárquico educado pelos jesuítas, até no seu neopaganismo continua sendo fiel à disciplina mental dos tais jesuítas. E eu ousaria afirmar que há fortes analogias psíquicas entre arautos do materialismo ateu e fundamentalistas religiosos, entre os quais certos proclamados católicos que num qualquer "corpus" canónico pretendem encerrar Deus e assim responder terminalmente às inquirições da nossa angústia. Penso todavia que a revelação de Deus não está terminada, vai-se desenrolando ao longo da história dos homens. São, assim, os dogmas uns semáforos, surgem em encruzilhadas e têm o seu tempo: avança, espera,pára, avança, etc. Deus vai-se revelando em nós e por nós. Essa é a dinâmica do cristianismo, religião incarnada. Aí se debruça Deus como o pai do fugitivo pródigo, naquele quadro do Murillo,na National Gallery de Washington D.C., que Camilo Maria gostava de lembrar e comentava dizendo que, sem querer blasfemar, lhe parecia que o pai, ao acolher o filho arrependido, lhe pedia perdão também, perdoar outro é pedir-lhe perdão também. Eis o que, para mim, é tão bonito no cristianismo, essa constante misericórdia que, só ela, torna solidária a esperança. Contemplo muitas vezes o mundo e a história com uma visão "teilhardiana": vivemos um processo de cosmogénese, somos, Deus e nós, solidários no sofrimento, na dor do parto, e na alegria da promessa que nos dá esperança. Que bem o diz este Papa Francisco: "A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para S. Francisco de Assis, ou os pobres para a beata Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob forma de uma presença que o acompanha, de uma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. Em Cristo, o próprio Deus quis partilhar connosco esta estrada e oferecer-nos o seu olhar para nela vermos a luz. Cristo é aquele que, tendo suportado a dor, se tornou " autor e consumador da fé " (Hebr.12,2). O sofrimento recorda-nos que o serviço da fé ao bem comum é sempre serviço de esperança que nos faz olhar em frente..." E agora mesmo, no silêncio desta casa grande onde estou só, a essa fé entrego a dor do meu parto, e à esperança a simultânea alegria. Talvez também como a Morte faz no fim das intermitências do seu livro, José: "A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu".
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 01.11.13 neste blogue.
DE MARCENDA A LÍDIA… por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José:
A última carta que o seu Ricardo Reis escreve não é carta, nem vai assinada. É um sobrescrito endereçado a Marcenda Sampaio, para a posta restante de Coimbra. Dentro leva, sozinhos, estes versos, de que o José apenas transcreve os dois primeiros:
"Saudoso já deste verão que vejo, Lágrimas para as flores dele emprego Na lembrança invertida De quando hei-de perdê-las. Transpostos os portais irreparáveis De cada ano, me antecipo a sombra Em que hei de errar, sem flores, No abismo rumoroso. E colho a rosa porque a sorte manda. Marcenda, guardo-a; murche-se comigo Antes que com a curva Diurna da ampla terra".
Marcenda é murchante, flor que murcha. É essa menina doente de si mesma, de braço pendente e mão inerte. Descrente da esperança, trava a seiva de um amor nascente e, deste, o viço para sempre se quedará secreta memória. O José foi atrás do gosto classicista de Reis, que assim cria a forma verbal "marcenda" (de "marceo-es,-ere,-ui = murchar) , e dali fez um nome de mulher e o deu à contraponto de Lídia. Se, como escreve João Gaspar Simões, "com efeito, é através de Ricardo Reis que Fernando Pessoa se aproxima de si mesmo, de si mesmo como Fernando Pessoa. E Ricardo Reis, no fim de contas, quem descobre Fernando Pessoa a si próprio", a Marcenda de José Saramago descobre-nos o namoro de Fernando e Ofélia... Mas tudo isso é mera conjetura, Marcenda é criação sua, José, tal como a Lídia que se deita com Ricardo Reis não é a musa das odes,a menos que o poeta afinal a ela também diga "Temo, Lídia,o destino. Nada é certo... / ...Fora do conhecido é estranho o passo / Que próprio damos." E em mais odes repetirá "Sofro, Lídia, do medo do destino. / Qualquer pequena cousa de onde pode / Brotar uma ordem nova em minha vida, / Lídia, me aterra." Mas esta Lídia, criada de profissão e solteira, anuncia ao homem, que é médico e pessoa de outra condição, a esperança - também chamada embaraço - que ele lhe fez. E logo lhe corta a ilusão de poder ou querer fugir do que - a ela, mais do que a ele, pois é desamparada e de humilde condição - lhe mudará o destino e a vida: "Lídia mete-se adiante e responde, Vou deixar vir o menino. Então, pela primeira vez, Ricardo Reis sente um dedo tocar-lhe o coração... ...Que é um embrião de dez dias, pergunta mentalmente Ricardo Reis a si mesmo, e não tem resposta para dar, em toda a sua vida de médico nunca aconteceu ter diante dos olhos esse minúsculo processo de multiplicação celular, do que os livros ao acaso lhe mostraram não conservou memória, e aqui não pode ver mais do que esta mulher calada e séria... ... Puxou-a para si, e ela veio como quem enfim se protege do mundo, de repente corada, de repente feliz, perguntando como uma noiva tímida, ainda é tempo delas, Não ficou zangado comigo, Que ideia a tua, por que motivo iria eu zangar-me, e estas palavras não são sinceras, justamente nesta altura se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis, Meti-me em grande sarilho, pensa ele, se ela não faz o aborto fico para aqui com um filho às costas, terei de o perfilhar, é minha obrigação moral, que chatice, nunca esperei que viesse a acontecer-me uma destas. Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força, por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem nenhuma ênfase particular, Se não quiser perfilhar o menino não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu. Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade, distinga-as quem puder, num impulso, enfim, sincero, abraçou-a, e beijou-a, imagine-se, beijou-a muito, na boca, aliviado daquele grande peso, na vida há momentos assim, julgamos que está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão." Conjeturando ainda, pergunto-me - pergunto-lhe, a si, talvez o José, desde esse assento etéreo, me responda - que mais teria feito Ricardo Reis, se Fernando não o tivesse vindo buscar para donde não se regressa tão cedo... Sei, posto que o afirma, que o médico-poeta assentiu que devia ter ficado à espera de Lídia, ali no Alto de Santa Catarina, para a consolar da perda do irmão marinheiro, o próprio Pessoa lho diz. Mas acha, afinal, que não poderia valer-lhe, a ela que dele tantas vezes cuidou. Mais sei que, ao ouvir o som dos canhões que atiravam contra o navio Afonso de Albuquerque, ele vai correndo por Lisboa, na ânsia de poder ser de algum préstimo no eventual salvamento do irmão de Lídia. E que a procura no Hotel Bragança, onde ela é serviçal, a ver se poderá oferecer-lhe apoio e conforto. Não a encontra, mas algo terá já mudado nesse monárquico, antigo aluno dos jesuítas, hoje cético dos deuses todos, que o seu neopaganismo situa num olimpo distante dos homens e onde "há só noite lá fora". O Ricardo que pensa que "sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo", e assim se considera, sairá afinal ao encontro do outro, desse desconhecido irmão da mulher humilde que quiçá o converteu à misteriosa capacidade do amor. Que pena tenho, José Saramago, de que não esteja agora aqui para me contar que caminhos imaginou para esse homem novo.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 27.10.13 neste blogue.
QUE SOBRE SI NÃO SE ENGANE QUEM AMA… por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José:
Ao dirigir-me tão familiarmente a si, meu Caro José, lembrei-me das hesitações de Ricardo Reis sobre o modo como tratar Marcenda na primeira carta que lhe escreve. O José resolve-lhe bem o problema: "depois de algumas folhas rasgadas achou-se com o simples nome, por ele nos devíamos tratar todos, nomeai-vos uns aos outros, para isso mesmo o nome nos foi dado e o conservamos". Nomeai-vos uns aos outros convoca esse preceito que diz "amai-vos uns aos outros", e a evocação não é gratuita, muito pouco do que o José escreve é gratuito, nem sequer os pleonasmos de que afirma não gostar mas pelos quais tantas vezes tão bem se exprime. No que tenho lido de si, há inspirações recorrentes, como se Quem o perseguisse no seu labirinto. O texto bíblico vai aparecendo, há um qualquer som evangélico que em si canta como a sombra que nos acompanha. Volto sempre a "O Ano da Morte de Ricardo Reis", ouço o poeta das "Odes" dizer a Marcenda que, ao médico que ele é e ela quer amigo, pede uma cura, um conselho, um remédio que lhe reanime a inerte mão esquerda: "Já lhe disse que não sou especialista, e a Marcenda, tanto quanto posso julgar, se está doente do coração, também está doente de si mesma, É a primeira vez que mo dizem, Todos nós sofremos duma doença, duma doença básica, digamos assim, esta que é inseparável do que somos e que, duma certa maneira, faz aquilo que somos, se não seria mais exato dizer que cada um de nós é a sua doença, por causa dela somos tão pouco, também por causa dela conseguimos ser tanto..." E quando, cansada de adiamentos, Marcenda lhe confidencia "Já quase não acredito", Ricardo lhe dirá "Defenda o que lhe resta, acreditar será o seu álibi, Para quê, Para manter a esperança, Qual, A esperança, só a esperança, nada mais, chega-se a um ponto em que não há mais nada senão ela, é então que descobrimos que ainda temos tudo." E o visitante Fernando Pessoa que, de vez em quando, regressa da mansão dos mortos para conversar com Reis, explica-lhe assim a diferença entre vivos e mortos: "A diferença é uma só, os vivos ainda têm tempo, mas o mesmo tempo lho vai acabando, para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de a não ter dito, morre-se de não o ter feito, é disso que se morre, não de doença, e é por isso que a um morto custa tanto aceitar a sua morte..." Assim também medita a Sophia que há-de regressar para buscar os instantes que não viveu junto do mar, na sua homenagem a Ricardo Reis:
"Não creias, Lídia,que nenhum estio Por nós perdido possa regressar Oferecendo a flor Que adiámos colher. Cada dia te é dado uma só vez E no redondo círculo da noite Não existe piedade Para aquele que hesita. Mais tarde será tarde e já é tarde. O tempo apaga tudo menos esse Longo indelével rasto Que o não-vivido deixa. Não creias na demora em que te medes. Jamais se detém Kronos cujo passo Vai sempre mais à frente Do que o teu próprio passo."
O mesmo pensassentimento, esse acreditar-esperar que nos persegue e nos diz que sem-remédio é só o que não amámos, surge na última carta de Camilo Maria à Princesa de... "Neste ano em que talvez me morra, nesta manhã tão cheia de sol amigo, vejo as primeiras andorinhas de uma primavera que tardou. Estou deitado, pedi que me abrissem as largas janelas do quarto, para te escrever à luz firme de um novo dia..." E recorre ao teólogo Yves Congar: "A ontologia do céu é o amor, a comunhão e a ação de graças; a da terra é a possibilidade de tudo correr melhor amanhã, a possibilidade da conversão. A ontologia do inferno é a permanência numa vida destituída de significado e esperança. Uma vez mais, Dostoïevsky tem sobre tudo isso páginas de extraordinária profundidade. " E cita passos das reflexões do monge Zózimo em "Os Irmãos Karamazov": "O que é o inferno? É o sofrimento de já não poder amar. Uma vez só, na vida infinita que não podemos medir, nem no tempo nem no espaço, foi dada a um ser espiritual, pelo facto de ter aparecido cá em baixo, a possibilidade de dizer: Sou e amo! Uma vez, apenas uma vez, lhe foi dado um instante de amor ativo e vivo, e por isso lhe foi dada a vida terrestre nos seus limites temporais." Sabe, José? Senti-o por vezes um pouco irrefletido, inutilmente injusto, quase ou até inquisitorial na perseguição, quiçá mesquinhamente raivoso. Está no seu direito, ou no seu esquerdo, é como queira, todos nós acordamos para o lado errado, hoje, amanhã ou depois. Ou temos alergias, birras, escrúpulos irritáveis, suscetibilidades. Mas talvez isso nos torne humanos, diferentes do barro inerte de que fomos feitos. E como necessariamente temos de conviver, meritório será o esforço de aceitarmos esse risco inato. É certo que, pelo espaço geográfico e o tempo histórico do mundo a que chamamos nosso, a força centrípeta que moldou tribos e estados, seitas e religiões, qual roda de oleiro, foi sempre suscitando a afirmação do poder centralizador pela exclusão do estrangeiro ou do heterodoxo, do servidor escravizado ou do hereje perseguido... Por isso, ao longo de gerações de seres humanos, alguns clamaram que o poder político e as religiões eram fautores de injustiça e guerra. Ceifadores da fé e da esperança, porque o objeto destas é o amor que prometem e podem ir realizando. Talvez o José Saramago pudesse ter amado mais, se não tivesse sentido o espinho do desamor, esse falhanço de uma promessa que outros tornaram engano. Ou talvez não, ou, quiçá, pudesse e devesse amar mais, mesmo sem essa frustração. Não sei. Nem tenho de saber. Sei, sim, pensossinto, que amou muito. Sem excessos de romantismo nem baboseiras eróticas ou beatas, quantos outros escritores terão falado das mulheres (da Mulher que há em todas) com a atenção, a veneração natural e sensível, a misericórdia (que, só ela torna visível, entre nós, o amor de Deus)? E termino esta com mais um texto seu, este respigado de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", sobre o qual me sobra ainda muito para lhe dizer. "Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as mais que o foram, teria também de ser loura, para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que pudesse ter amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira..." Noutra carta, José, lhe falarei do seu curioso materialismo, ou de como a poesia (ou lá o que é) escapa à consideração positivista da natureza. Pensandossentindo essa luz guardada na tijela cheia de terra que o anjo-mendigo deixou a Maria e José de Nazaré. E se nesse assento etéreo abraços desta vida se consentem...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 25.10.13 neste blogue.
Pensamos, vezes sem conta, uma coisa e sentimos outra...ou, pelo menos, isso pretendemos e afirmamos. Quando o António Damásio demonstrou que o pensamento é também emoção, ocorreu-me que não seria disparate dizer pensossinto, sobretudo ao referir-me a coisas mais intimamente percebidas. Tanto quanto as percebemos, pois a mesma palavra "coisa" diz muito e coisíssima nenhuma... Assim andou o José às voltas com o apelido do autor do livro que Ricardo Reis se esquecera de devolver à biblioteca do Highland Brigade, o vapor da Mala Real que o trouxera do Rio a Lisboa: Herbert Quain, irlandês, chamara "The god of the labyrinth" ao livro para o qual "o tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial"... Mas fica-lhe a bulir como pergunta simples e difícil, no labirinto de si, essa de aquele autor desconhecido se chamar Quain: "o nome, esse sim, é singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se, Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem.". Pensassente bem, José, Quem é labiríntico, essa intuição de nós que em nós nos perderá, a menos que outra interrogação nos transcenda. Como essa que Ricardo Reis encontra com inacabados versos seus: "Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser." Olhe, José: eu cá só tenho homónimos, porque os heterónimos dão muito mais trabalho, e nem por isso disfarçam. Não fugimos a Quem. Nascemos com ele, com ele vivemos e morremos. É inalienável, intransmissível. É este quem que pensassente e está e o Quem é. Espinoza intuiu bem a essência ontológica, o Ser tudo em todos. Como os grandes místicos. Os livros da colecção "Poesia" da Ática - que eu comprava nos anos 50, e onde me encontrei com o universo de Pessoa, Sá-Carneiro, Sebastião da Gama, Nemésio, Sophia, Carlos Queiroz, Pessanha... - abriam todos com essa citação de Novalis que, creio, foi sugerida pelo Luiz de Montalvor: "A Poesia é o autêntico real absoluto. Isto é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro." Hoje, hoje para mim, para si não há nem hoje, nem ontem, nem amanhã, como o D. Sebastião do Pessoa, deixou cá o seu " ser que houve, não o que há "... Para mim, que ainda estou, pouco importam as fórmulas das "coisas"... Artífices, tudo formulamos. Menos esse impossível de dizer, que é uma imagem que, como a memória de Platão, inexoravelmente carregamos. Que, dolorosamente ou com feroz alegria, sentimos com gratidão ou raiva, mas a que não escapamos. Quiçá por ser fruto do pensarsentir, acolhemos a poesia, como a música, universalmente, expressão misteriosa do indizível em nós. Encontro-me muitas vezes consigo, quando, lendo-o, sinto um toque de graça que me atinge, uma visão que me encanta. Termino esta carta, agradecendo-lhe este trecho da História do Cerco de Lisboa": "Trago-lhe aqui as provas ,como combinámos, disse Raimundo Silva, e a doutora Maria Sara recebeu-as, por assim dizer, à passagem, agora está sentada à secretária, convidou o revisor a que se sentasse, mas ele respondeu: Não vale a pena, e desviou o olhar para a rosa branca, tão perto dela está que pode ver-lhe o coração suavíssimo, e, porque palavra puxa palavra, lembra-se de um verso que em tempos revira, um que falava do íntimo rumor que abre as rosas, pareceu-lhe este um formoso dizer, venturas que podem acontecer até a poetas medíocres, O íntimo rumor que abre as rosas, repetiu consigo mesmo, e ouviu, ainda que não se acredite, o roçar inefável das pétalas, ou teria sido o roçar da manga contra a curva do seio, meu Deus, tende piedade dos homens que vivem de imaginar." Deus já teve piedade de si, José. Tenha de mim também e de todos os que, por cá, procuram porto, como Cristo, na agonia e na esperança. E a todos nós ajude a estar atentos ao "íntimo rumor que abre as rosas"...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 18.10.13 neste blogue.
UMA NOVA SÉRIE – MEU CARO JOSÉ! por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José Saramago:
Por qualquer razão que me escapa, quando me achei já cansado de traduzir as cartas do Marquês de Sarolea à Princesa de... lembrei-me de si. Talvez por ter caído na tentação de responder post-mortem a Camilo Maria, que me desafiara a telefonar-lhe para o céu... Terei pensado então que, nesse nenhures intemporal, o José (permita-me tratá-lo com uma familiaridade antiga em mim) estaria presente lá em cima, lado a lado, com aquele "reacionário"? Ou, antes, seria pela necessidade de lhe confessar, a si, sentimentos de profunda, eterna (acredita, eterna?) intimidade espiritual? Porque me ocorreu dizer-lhe essas palavras com que o José fala de Fernando Pessoa, "neste preciso instante em que Ricardo Reis, encostado a um candeeiro no alto da Calçada do Combro, lê a oração fúnebre" que, pela morte do seu alter ego, alguém escreveu mas Reis-Saramago diz assim: "Duas palavras sobre o seu trânsito mortal, para ele chegam duas palavras, ou nenhuma, preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito, com ele está bem o que está perto de Deus, mas também não deviam, nem podiam os que foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes, subir as linhas definitivas da Eternidade, sem anunciar o protesto calmo, mas humano, da raiva que nos fica da sua partida... ...lastimamos o homem que a morte nos rouba, e com ele a perda do prodígio do seu convívio e da graça da sua presença humana, somente o homem, é duro dizê-lo, pois ao seu espírito e seu poder criador, a esses deu-lhes o destino uma estranha formosura, que não morre..." Assim é: nascemos um dia, e connosco, em qualquer de nós, inda que pequeno, breve, talvez feio, essa misteriosa "estranha formosura, que não morre."
Vivi quarenta anos - trinta deles seguidos - fora de Portugal. Por enquanto, ainda não mas quase 50% do tempo deste meu itinerário mortal. Quando vinha por cá, "esvaziava" livrarias e... pagava excessos de bagagem! O José, entre outros, foi um dos "culpados" desses excessos. Primeiro, com o "Memorial do Convento" que, no avião e em casa, achei interessante mas algo pesadote. Depois, com "O Ano da Morte de Ricardo Reis", que devorei sem dormir.... Até me cheirava a Lisboa, como "El Amor en los Tiempos del Colera" do Garcia Marquez me tinha enchido as narinas, o coração, a pele e os ossos da alma, de Cartagena de las Indias! Adolescente ainda, gastei uns cobres da mesada a comprar os Pessoa na Ática, e trazia no bolso do obrigatório casaco essa edição de uma antologia dos heterónimos, que o Adolfo (veja o José, aí no céu, como até os nomes enganam!) Casais Monteiro tinha publicado com a Agir, no Brasil... Aos quarenta, dou de caras, graças a si, com o Ricardo Reis, andei com ele pela Lisboa húmida, que transpirava, e nós com ela... Bem haja! Reparo agora que nunca o tratei por V. Exa., nem sequer por Senhor Saramago... Sem mesmo qualquer respeito, sequer, pela progressiva familiarização das formas de tratamento com que o Eça nos vai medindo, em "Os Maias", com os oportunismos do mundo. Trato-o por José, nome respeitável e cristão, em meu entender preferível ao "você" com que nos banalizam. Não digo Senhor José, atenção!, mas José apenas: é bem maior e muito mais bonito! Sabe? Quando adquiri, na livraria Arco-Íris, ali nas Avenidas Novas, o seu "O Ano da Morte de Ricardo Reis", vivia em Scarsdale, no Westchester County, subúrbio de New York. Abri-o em casa, logo que cheguei, lá pelas dez da noite (três da manhã em Lisboa), na cama, para me vir o sono. Fechei-o só a meio do dia seguinte, não dormi, li-o todo! Como se acompanhasse, percorrendo a sua vida de Ricardo Reis, não apenas essa, mas outro percurso interior: aquele em que José Saramago se reconhecia nas "Odes" de Ricardo Reis. Com a mesma perplexidade de uma cidade de Lisboa que, ali, com Ricardo Reis que acaba de chegar do Brasil, num vapor inglês da Mala Real, nasce de um Tejo húmido, cinzento e frio, e o leva no seu coração, em que o tempo pára. Começa assim: "Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro..." E termina quando Fernando Pessoa vem buscar o mais coevo dos seus heterónimos, e o tira do leito e das ilusões, para a noite fria: "Você não trouxe chapéu. Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa. Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera." Chegado a este fim, ocorreu-me essa breve ode de Reis:
"Aguardo, equânime, o que não conheço... Meu futuro e o de tudo. No fim tudo será silêncio, salvo Onde o mar banhar nada."
E fico, talvez como o Ricardo Reis do Saramago, que, ao sair, ainda "foi à mesa de cabeceira buscar «The god of the labyrinth», meteu-o debaixo do braço"... nesse (cito o autor das "Odes"):
"Nesse desassossego que o descanso Nos traz às vidas quando só pensamos Naquilo que já fomos, E há só noite lá fora."
Ricardo chega a Lisboa no princípio de dezembro de 1935, quando é devolvido à terra o corpo de Fernando, nascido um ano antes dele e que publicara, em 34, o seu único livro em vida: "Mensagem". Aí diz, da vida breve, o que lhe oferece a memória de D. Sebastião, Rei de Portugal:
"Louco, sim, louco porque quis grandeza Qual a sorte não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há”
Na Lisboa invernal e turva Reis-Saramago está entre parênteses, ou entre dois portos: o da chegada, onde o mar acabou; e o da partida, onde Fernando Pessoa o vem buscar. Nem ele nem ninguém sabe qual é a demora, nem experimentou ainda a divisão de quem parte e fica. Desconhece o destino, sabe apenas que há essa "estranha formosura, que não morre"... E porque eu mesmo, muitas vezes, não sei bem separar a angústia da esperança, nem fugir à tentação de estar, ficando, quando uma voz me chama para a loucura de ser, desligando-me do meu temor, penso em si, José, e em onde estará o seu ser "que há". Onde talvez veja como Deus nos vê, e leia, com nova descoberta, esta ode de Ricardo Reis:
"Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive."
Se achar bem, vou-lhe escrevendo. Gosto de conversar consigo.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 15.10.13 neste blogue.
Criado há mais de cem anos (1901), o prémio Nobel de Literatura só foi atribuído a um escritor de língua portuguesa, ao português José Saramago, em 1998.
O Brasil, país independente há 200 anos, não foi, até hoje, contemplado, o mesmo sucedendo com escritores africanos (ou timorenses) de países de língua oficial portuguesa.
O que contrasta com 33 prémios de escritores de língua inglesa (entre os quais 12 do Estados Unidos, 11 do Reino Unido, 4 da Irlanda, 2 da Austrália e 1 do Canadá), 16 de autores em língua francesa, 14 em alemão (2 da Áustria), 12 em espanhol (2 do Chile, 1 da Colômbia, Guatemala, México e Perú, além dos de Espanha), 7 em sueco, 6 em italiano e russo, 2 em dinamarquês e norueguês, 2 em grego e japonês.
Sendo o nosso idioma transcontinental, transoceânico, cultural, pluricultural, pluricêntrico, de exportação, internacional e global, o mais falado do hemisfério sul, o terceiro do ocidente, quinto na internet, quinto ou sexto a nível mundial, com mais falantes que o francês, alemão, italiano, russo e japonês, é legítimo perguntar se será pela inexistência de autores potencialmente nobelizáveis que escrevem em português, sendo a resposta negativa.
A possibilidade de premiar a terceira língua do ocidente e uma das mundialmente mais faladas, foi abordada várias vezes antes de ser galardoado Saramago. Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles, António Lobo Antunes, também constaram da lista. Consta que Torga teria sido premiado, se não já falecido, apesar da quase ausência de livros seus traduzidos para sueco, sendo levantada a hipótese de subsidiar a sua obra, suprindo tal défice.
O que nos interpela para indagar do porquê de apenas um autor e escritor em língua portuguesa ter sido premiado, num universo de quase 300 milhões de falantes.
Para além da carência de escritores lusófonos traduzidos para sueco (principal língua escandinava, sendo a Suécia patrocinadora da entrega do Nobel de Literatura), também é indispensável, nos dias de hoje, a tradução no idioma global por excelência, ou seja, o inglês, deficiências atempadamente supridas por Saramago.
Quanto à visão eurocêntrica do mundo, subjacente à entrega do prémio, justificativa da falha de escritores lusófonos premiados, nomeadamente brasileiros, não se intui ser decisiva, dado que da lista dos nobelizados há um número significativo de todo o continente americano, que inclui o Canadá, Estados Unidos e toda a América Latina, continuadores e descendentes da Velha Europa, sem esquecer a Austrália e países como o Japão, segundo um critério estratégico do chamado Ocidente.
Por que não, por exemplo, subsidiar, se necessário, a tradução para inglês e sueco, entre outros idiomas, de autores laureados com o prémio Camões, da mesma natureza ou prestígio?
O que nos questiona sobre uma estratégia para a cultura, tendo como ideal, a este nível, uma parceria com os países de língua portuguesa, em que instituições como o Instituto Camões, Fundação Biblioteca Nacional do Brasil, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, incluindo entes privados como a Fundação Gulbenkian, tenham uma voz ativa, com um empenho de todas as partes, sem complexos ideológicos e políticos, em prol de um reconhecimento mais adequado, proporcional e razoável, até agora injustamente não alcançado.
Ao lermos os Cadernos de Lanzarote IV de José Saramago encontramos a lista dos autores que, segundo o próprio, mais o influenciaram.
A LISTA DE INFLUÊNCIAS “A minha lista, com a respetiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque como escrevi em O Ano da Morte de Ricardo Reis, todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão porque demonstrou que não era preciso ser-se génio para escrever um livro genial, Húmus; Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é coleóptero; Eça de Queirós, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luís Borges, porque inventou a literatura virtual; Gogol, porque contemplou a vida humana e a achou triste”. Ao lermos esta genealogia cultural, compreendemos a obra e o percurso de José Saramago, mas também o sentido do caminho que seguiu. Camões permite entender a gesta portuguesa, nos seus claros e escuros. O épico e o lírico retratam não apenas o desafio da demanda da Índia, mas igualmente a procura do eu e do nós e a distância entre o sonho e a realidade como no Memorial do Convento, onde a sociedade é retratada, a propósito de uma descomunal construção, só possível graças ao ouro do Brasil e à coexistência entre a riqueza e a miséria. E ao lermos Que Farei com Este Livro? podemos compreender, co Camões, a nossa panóplia de paradoxos. Portugal e os portugueses mostram-se contraditórios entre si, capazes de cultivar a ilusão, mas também de se empenharem na obra que não se fica pelas intenções. Já Vieira cria na sua oratória uma realidade em que a construção do futuro corresponde à razão temperada pela fé, num extraordinário encantamento da palavra. “É o verbo vieirino que vai ressoando no meu cérebro enquanto escrevo” – di-lo-á Saramago em entrevista ao “Correio do Minho” em 1983. E completa o raciocínio: “Pegamos nos sermões do Padre António Vieira e, para além do preciosismo e do concetismo do gozo por vezes um pouco obscurecedor do sentido, verificamos que há, em tudo o que escreveu, uma língua cheia de sabor e ritmo, como se isto não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco”. E ouvimos Vieira no Sermão de Santo António aos peixes de 1654 no seu ritmo oral, que afeiçoa o uso da palavra escrita: “Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer!". É essa ligação entre os movimentos da sociedade que se torna presente na escrita amadurecida de Saramago. E não seria o Quinto Império o horizonte da sociedade humana reconciliada, com cidadãos da mesma pátria conscientes do respeito mútuo, para não se comerem uns aos outros, facto que tanto preocupa o romancista? Por outro lado, em Cervantes podemos encontrar a raiz de um teatro fantástico, pleno de prodígios, como nos momentos em que Blimunda vê dentro de cada corpo ou quando uma “jangada de pedra” se desprende, como para um mundo de moinhos de vento. Mas não é apenas D. Quixote que se manifesta, mas também Alonso Quijano, ao cair em si, procurando libertar-se, no fim da vida de uma loucura de mil sonhos. Sem Cervantes, a Península seria uma casa sem telhado? Sim, porque com o cavaleiro da triste figura passamos da fantasmagoria dos romances de cavalaria para a tomada de consciência de uma vontade que decorre da coragem de encarar a realidade tal com ela é. E a cultura ibérica manifesta-se como complementaridade entre a loucura e o bom senso, entre o continente e o mar, como condomínio entre a dureza e a abertura, entre a expressão trágica, o lirismo e o picaresco. Já em Montaigne é a singularidade que se manifesta, pondo-se a tónica na capacidade de ser cético e de se perguntar sistematicamente sobre quem somos, o que sabemos e o que fazemos. E em termos literários, no caminho do escritor, o romance torna-se meio privilegiado de expressão, como diálogo com a vida e como exigência de reflexão adequada ao movimento e à compreensão da existência humana.
REGRESSO AO “CÂNDIDO” Já a memória de Voltaire, que tão ligado esteve, pela reflexão, aos acontecimentos portugueses do grande terramoto, corresponderia a uma exigência que deveria funcionar como fator de renascimento e de regeneração, como apelo de Cândido ao espírito de denúncia social, sem esquecer a ironia e a corajosa defesa da tolerância. Raúl Brandão representa a força da representação dos dramas humanos e a influência da grande literatura russa, favorecendo a definição dos conflitos tal como se manifestam e a tensão que resulta da complexidade de fatores que determinam a evolução humana. Como fica patente em O Ano da Morte, mas também no gradual conhecimento que se vai tendo da riqueza da obra de Pessoa, designadamente através da revelação do conteúdo da célebre “Arca”, em especial do “Livro do Desassossego”, a riqueza de conjunto da genialidade pessoana torna-se um fator de enriquecimento da criação de Saramago. Franz Kafka permite a compreensão do absurdo e do horror que se manifestam no mundo – enquanto Eça de Queirós se torna, desde muito cedo, mestre da ironia e da crítica, com as suas personagens marcantes, o que constitui uma presença constante nas referências do romancista, apesar da diversidade nos temas e no seu tratamento. Quanto a José Luís Borges é o culto do paradoxo e da complexa convergência plural de fatores no mundo da vida que se torna marcante. A realidade social tende a ser explicada por algo mais do que a análise da realidade social. Por fim, Gogol procura entender uma humanidade dominada pela indiferença e pela incompreensão. Dir-se-ia que assim seria possível superar uma sociedade sonâmbula, difícil de perceber, que obriga a recorrer a diversos pontos de vista, de modo a perceber-se o efeito da evolução do tempo e das mentalidades. E assim chegamos ao ponto em que Saramago se prepara para escrever o Ensaio sobre a Cegueira, que corresponde a uma reflexão que se encontra delineada em Cadernos de Lanzarote II: “Pensei na História e via-a cheia de homenzinhos minúsculos como formigas, uns que não cabem nas portas que fizeram, outros que arrancaram às pedreiras o mármore com que Miguel Ângelo fez o seu David, outros que a esta hora estão contemplando a estátua e dizem ‘Talvez ainda não tenhamos começado a crescer’”… E assim, à medida que a obra de foi afirmando, todos estes elementos convergiram e se complementaram…