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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

  


XC - APENAS UM NOBEL DE LITERATURA EM PORTUGUÊS   


Criado há mais de cem anos (1901), o prémio Nobel de Literatura só foi atribuído a um escritor de língua portuguesa, ao português José Saramago, em 1998.


O Brasil, país independente há 200 anos, não foi, até hoje, contemplado, o mesmo sucedendo com escritores africanos (ou timorenses) de países de língua oficial portuguesa.   


O que contrasta com 33 prémios de escritores de língua inglesa (entre os quais 12 do Estados Unidos, 11 do Reino Unido, 4 da Irlanda, 2 da Austrália e 1 do Canadá), 16 de autores em língua francesa, 14 em alemão (2 da Áustria), 12 em espanhol (2 do Chile, 1 da Colômbia, Guatemala, México e Perú, além dos de Espanha), 7 em sueco, 6 em italiano e russo, 2 em dinamarquês e norueguês, 2 em grego e japonês.   


Sendo o nosso idioma transcontinental, transoceânico, cultural, pluricultural, pluricêntrico, de exportação, internacional e global, o mais falado do hemisfério sul, o terceiro do ocidente, quinto na internet, quinto ou sexto a nível mundial, com mais falantes que o francês, alemão, italiano, russo e japonês, é legítimo perguntar se será pela inexistência de autores potencialmente nobelizáveis que escrevem em português, sendo a resposta negativa.   


A possibilidade de premiar a terceira língua do ocidente e uma das mundialmente mais faladas, foi abordada várias vezes antes de ser galardoado Saramago. Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles, António Lobo Antunes, também constaram da lista. Consta que Torga teria sido premiado, se não já falecido, apesar da quase ausência de livros seus traduzidos para sueco, sendo levantada a hipótese de subsidiar a sua obra, suprindo tal défice.   


O que nos interpela para indagar do porquê de apenas um autor e escritor em língua portuguesa ter sido premiado, num universo de quase 300 milhões de falantes.


Para além da carência de escritores lusófonos traduzidos para sueco (principal língua escandinava, sendo a Suécia patrocinadora da entrega do Nobel de Literatura), também é indispensável, nos dias de hoje, a tradução no idioma global por excelência, ou seja, o inglês, deficiências atempadamente supridas por Saramago. 


Quanto à visão eurocêntrica do mundo, subjacente à entrega do prémio, justificativa da falha de escritores lusófonos premiados, nomeadamente brasileiros, não se intui ser decisiva, dado que da lista dos nobelizados há um número significativo de todo o continente americano, que inclui o Canadá, Estados Unidos e toda a América Latina, continuadores e descendentes da Velha Europa, sem esquecer a Austrália e países como o Japão, segundo um critério estratégico do chamado Ocidente.


Por que não, por exemplo, subsidiar, se necessário, a tradução para inglês e sueco, entre outros idiomas, de autores laureados com o prémio Camões, da mesma natureza ou prestígio?


O que nos questiona sobre uma estratégia para a cultura, tendo como ideal, a este nível,  uma parceria com os países de língua portuguesa, em que instituições como o Instituto Camões, Fundação Biblioteca Nacional do Brasil, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, incluindo entes privados como a Fundação Gulbenkian, tenham uma voz ativa, com um empenho de todas as partes, sem complexos ideológicos e políticos, em prol de um reconhecimento mais adequado, proporcional e razoável, até agora injustamente não alcançado.  


16.12.22
Joaquim M. M. Patrício

A VIDA DOS LIVROS

  

De 21 a 27 de novembro de 2022


Ao lermos os Cadernos de Lanzarote IV de José Saramago encontramos a lista dos autores que, segundo o próprio, mais o influenciaram.


A LISTA DE INFLUÊNCIAS
“A minha lista, com a respetiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque como escrevi em O Ano da Morte de Ricardo Reis, todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão porque demonstrou que não era preciso ser-se génio para escrever um livro genial, Húmus; Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é coleóptero; Eça de Queirós, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luís Borges, porque inventou a literatura virtual; Gogol, porque contemplou a vida humana e a achou triste”. Ao lermos esta genealogia cultural, compreendemos a obra e o percurso de José Saramago, mas também o sentido do caminho que seguiu. Camões permite entender a gesta portuguesa, nos seus claros e escuros. O épico e o lírico retratam não apenas o desafio da demanda da Índia, mas igualmente a procura do eu e do nós e a distância entre o sonho e a realidade como no Memorial do Convento, onde a sociedade é retratada, a propósito de uma descomunal construção, só possível graças ao ouro do Brasil e à coexistência entre a riqueza e a miséria. E ao lermos Que Farei com Este Livro? podemos compreender, co Camões, a nossa panóplia de paradoxos. Portugal e os portugueses mostram-se contraditórios entre si, capazes de cultivar a ilusão, mas também de se empenharem na obra que não se fica pelas intenções. Já Vieira cria na sua oratória uma realidade em que a construção do futuro corresponde à razão temperada pela fé, num extraordinário encantamento da palavra. “É o verbo vieirino que vai ressoando no meu cérebro enquanto escrevo” – di-lo-á Saramago em entrevista ao “Correio do Minho” em 1983. E completa o raciocínio: “Pegamos nos sermões do Padre António Vieira e, para além do preciosismo e do concetismo do gozo por vezes um pouco obscurecedor do sentido, verificamos que há, em tudo o que escreveu, uma língua cheia de sabor e ritmo, como se isto não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco”. E ouvimos Vieira no Sermão de Santo António aos peixes de 1654 no seu ritmo oral, que afeiçoa o uso da palavra escrita: “Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer!". É essa ligação entre os movimentos da sociedade que se torna presente na escrita amadurecida de Saramago. E não seria o Quinto Império o horizonte da sociedade humana reconciliada, com cidadãos da mesma pátria conscientes do respeito mútuo, para não se comerem uns aos outros, facto que tanto preocupa o romancista? Por outro lado, em Cervantes podemos encontrar a raiz de um teatro fantástico, pleno de prodígios, como nos momentos em que Blimunda vê dentro de cada corpo ou quando uma “jangada de pedra” se desprende, como para um mundo de moinhos de vento. Mas não é apenas D. Quixote que se manifesta, mas também Alonso Quijano, ao cair em si, procurando libertar-se, no fim da vida de uma loucura de mil sonhos. Sem Cervantes, a Península seria uma casa sem telhado? Sim, porque com o cavaleiro da triste figura passamos da fantasmagoria dos romances de cavalaria para a tomada de consciência de uma vontade que decorre da coragem de encarar a realidade tal com ela é. E a cultura ibérica manifesta-se como complementaridade entre a loucura e o bom senso, entre o continente e o mar, como condomínio entre a dureza e a abertura, entre a expressão trágica, o lirismo e o picaresco. Já em Montaigne é a singularidade que se manifesta, pondo-se a tónica na capacidade de ser cético e de se perguntar sistematicamente sobre quem somos, o que sabemos e o que fazemos. E em termos literários, no caminho do escritor, o romance torna-se meio privilegiado de expressão, como diálogo com a vida e como exigência de reflexão adequada ao movimento e à compreensão da existência humana.


REGRESSO AO “CÂNDIDO”
Já a memória de Voltaire, que tão ligado esteve, pela reflexão, aos acontecimentos portugueses do grande terramoto, corresponderia a uma exigência que deveria funcionar como fator de renascimento e de regeneração, como apelo de Cândido ao espírito de denúncia social, sem esquecer a ironia e a corajosa defesa da tolerância. Raúl Brandão representa a força da representação dos dramas humanos e a influência da grande literatura russa, favorecendo a definição dos conflitos tal como se manifestam e a tensão que resulta da complexidade de fatores que determinam a evolução humana. Como fica patente em O Ano da Morte, mas também no gradual conhecimento que se vai tendo da riqueza da obra de Pessoa, designadamente através da revelação do conteúdo da célebre “Arca”, em especial do “Livro do Desassossego”, a riqueza de conjunto da genialidade pessoana torna-se um fator de enriquecimento da criação de Saramago. Franz Kafka permite a compreensão do absurdo e do horror que se manifestam no mundo – enquanto Eça de Queirós se torna, desde muito cedo, mestre da ironia e da crítica, com as suas personagens marcantes, o que constitui uma presença constante nas referências do romancista, apesar da diversidade nos temas e no seu tratamento. Quanto a José Luís Borges é o culto do paradoxo e da complexa convergência plural de fatores no mundo da vida que se torna marcante. A realidade social tende a ser explicada por algo mais do que a análise da realidade social. Por fim, Gogol procura entender uma humanidade dominada pela indiferença e pela incompreensão. Dir-se-ia que assim seria possível superar uma sociedade sonâmbula, difícil de perceber, que obriga a recorrer a diversos pontos de vista, de modo a perceber-se o efeito da evolução do tempo e das mentalidades. E assim chegamos ao ponto em que Saramago se prepara para escrever o Ensaio sobre a Cegueira, que corresponde a uma reflexão que se encontra delineada em Cadernos de Lanzarote II: “Pensei na História e via-a cheia de homenzinhos minúsculos como formigas, uns que não cabem nas portas que fizeram, outros que arrancaram às pedreiras o mármore com que Miguel Ângelo fez o seu David, outros que a esta hora estão contemplando a estátua e dizem ‘Talvez ainda não tenhamos começado a crescer’”… E assim, à medida que a obra de foi afirmando, todos estes elementos convergiram e se complementaram…      


Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  

De 7 a 13 de novembro de 2022


“A Viagem do Elefante” (2008) de José Saramago constitui um relato metafórico sobre a essência das viagens.


A VIAGEM COMO METÁFORA 
A metáfora da viagem está bem presente na obra de José Saramago. Quando percorremos Portugal de lés-a-lés, entendemos que o movimento é uma necessidade de entender as pessoas e de compreender a cultura, como sementeira permanente. “A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. (…) O fim da viagem é apenas o começo de outra”. Lembramo-nos bem como José Saramago termina a Viagem em Portugal. Se Portugal tem muito para mostrar, e se uma viagem é sempre uma procura de nós mesmos, tal corresponde à ideia de peregrinação, fiel à sua etimologia de “per agros”, compreendendo-se o fascínio de imaginar uma viagem entre Lisboa e Viena de Áustria, no longínquo ano de 1551. Tudo começou em Salzburgo, por ocasião de uma conferência para alunos de Língua e Cultura Portuguesa, num jantar num restaurante chamado “O Elefante”, que invocava o elefante indiano oferecido por D. João III a seu primo o arquiduque Maximiliano da Áustria, genro dos imperadores Carlos V e Isabel de Portugal, irmã do rei português. O romance representa uma metáfora da vida humana, com um longo percurso e um final inglório – uma morte, um ano depois da chegada do magnífico animal, tendo este sido esfolado, acabando as patas dianteiras transformadas em recipientes para guardar bengalas e guarda-chuvas…


SALOMÃO AJUDA A COMPREENDER 
O famoso elefante Salomão tornar-se-ia Solimão, como o célebre sultão otomano, e Saramago explica-nos que, “como deveríamos saber, a representação mais exata, mais precisa, da alma humana é o labirinto”. E tudo é possível. No romance, a viagem europeia foi apenas o epílogo de um longo cativeiro e de um interminável caminho. Desde Goa, seis meses acorrentado no tabuado do convés de um galeão. Chegado a Lisboa, seria sujeito a uma longa exposição num cercado em Belém, durante dois anos, para gáudio da curiosidade dos visitantes. E nesta triste aventura, explica-se como a vida é governada por imprevisíveis caprichos. D. João III não quis ficar atrás de seu pai na organização de uma embaixada exótica. E o nome do cornaca, Subhro, que significa “branco”, não é mais que uma ironia, tendo em consideração a sua origem e a sua tez. E esses caprichos partilhados entre o Rei de Portugal e o Arquiduque de Habsburgo traduzem-se numa espécie de metamorfose, na qual o cornaca deixa de se considerar indiano, passando a Subhro-Fritz, nunca mais regressando a Lisboa, sem que se saiba exatamente porquê, e o elefante, em nome da sua magnificência, passa a ostentar ricas roupagens que o tornam momentaneamente uma curiosidade ambulante – levando às costas talvez a mais rica gualdrapa do mundo…


Na viagem ficam demonstrados a divisão e o decaimento da Europa. E o romancista escolhe propositadamente o intervalo civilizacional que é o Renascimento para mostrar a desorientação política e de valores. À metáfora do labirinto, junta-se a alegoria de uma Europa de princípios religiosos decadentes. Francisco I de França, Carlos V da Áustria, I de Espanha, ou o Papa Leão X, o cardeal João Lourenço de Médicis, protagonizam um tempo de profundas dúvidas, em pleno Concílio de Trento, na sequência da crise das indulgências. A Europa medieval tinha deixado um vazio, que deu lugar ao complexo pano de fundo deste romance, permitindo ao autor usar alegorias e metáforas que prendem o leitor e equacionam questões fundamentais bem conhecidas dos leitores de Saramago. Assim, a desorientação descrita na caminhada de Salomão e a condução do cornaca constituem o retrato de uma Europa em convulsão.


UMA BIOGRAFIA DE SETE VIDAS 
Miguel Real e Filomena Oliveira procedem em As 7 Vidas de José Saramago (Companhia das Letras, 2022) a uma análise circunstanciada e de qualidade da biografia do escritor, no ano em que se assinalam os cem anos do seu nascimento. “Para o escritor, o sentido da vida por si criado é indubitavelmente, a literatura, enquanto construção de um caminho de salvação. Sem a literatura – tradução e criação autoral – Saramago teria sido outro homem e a sua vida teria sido a de outro homem. Que homem teria sido esse? Desconhecemos e consideramos supérfluo aventar hipóteses que nem de perto se realizaram”. Para cada uma das suas obras ou dos momentos da vida, poderemos pensar num cenário alternativo, que não aconteceu. A personalidade do autor já consagrado teria permitido outro desenvolvimento, o de tradutor, jornalista, editor….


É a literatura, porém, que marca o percurso, como labirinto e metáfora. E quando José Saramago fala de Aquilino Ribeiro ou mesmo de Raul Brandão, reconhecendo a sua influência, salienta a capacidade de compreenderem a literatura como o melhor modo de assumirem o mundo e a existência. Há assim uma ligação íntima entre literatura e exigência ética. E as sete vidas de José Saramago correspondem a uma procura permanente, à viagem realizada sempre com duas dimensões; a interior e a exterior. Que sete vidas? A primeira, da Azinhaga ao desejo de uma imaginária Josephville, cidade de José (1922-1938) - o diálogo entre as origens difíceis e a aspiração utópica, libertadora relativamente à cidade fechada. Depois, na segunda vida é o escritor que falha, mas que procura a conquista da primeira muralha da mítica Josephville, perseguindo a credibilidade social (1939-1953). A terceira vida leva-nos do Inferno ao Purgatório, do tentativo escritor ao editor, enquanto raiz ainda longínqua de uma escrita madura (1954-1971). Feito crítico, o autor começa a conhecer as manhas da “corporação” literária, mas não deseja submeter-se. A quarta vida, é a de Saramago cronista e editorialista (1968-1976), libertado dos choques e equívocos entre editor e autores. E quase tudo muda. Nas crónicas, em Deste Mundo e do Outro, encontramos o confronto aberto entre a cidade real e Josephville, como cidade ambicionada. Aqui está o essencial, anunciando o romancista que viria a seguir. O interesse e os elogios de Rodrigues Miguéis merecem atenção. É a quinta vida, a de Saramago escritor, que finalmente aparece. A ficção surge como iluminadora da História. Levantado do Chão põe na escrita o drama e o sangue de um país que tinha de se libertar do fatalismo da fome. E germina o realismo mágico do Memorial do Convento, enquanto “realismo de portas abertas”, com um narrador originalíssimo, surgindo na calha o poeta que com Camões Saramago mais admira – Ricardo Reis. Josephville é, deste modo, conquistada e chega a sexta vida – a da consagração internacional (1990-1997). E o Ensaio sobre a Cegueira constitui “a reflexão de um escritor e cidadão adulto, maduro, humanista, mas cético sobre o valor da Humanidade, concluindo ser necessário um sobressalto ético para despertar e desviar o Homem e a história de um evidente caminho para o abismo”. E chegamos à sétima vida – o Prémio Nobel em 1998 e a demonstração de que, afinal, a Cidade de José, Josephville, é o mundo inteiro, lugar de liberdade e deveres fundamentais. E é tempo de seguir viagem com Salomão até Viena…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

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   De 31 de outubro a 6 de novembro de 2022

 

No centenário de José Saramago recordamos a sua viagem ao Porto em “Viagem a Portugal”.

 

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HONRAR O NOME DO PORTO

Para José Saramago na “Viagem a Portugal”, o “Porto, para verdadeiramente honrar o nome que tem é, primeiro que tudo, este largo regaço aberto para o rio, mas que só do rio se vê, ou então, por estreitas bocas fechadas por muretes, pode o viajante debruçar-se para o ar livre, e ter a ilusão de que todo Porto é Ribeira. A encosta cobre-se de casas, as casas desenham ruas e, como todo o chão é granito sobre granito, cuida o viajante que está percorrendo veredas de montanha”. Adivinham-se antepassados pescadores das mulheres que passam, e lembram-se ainda calafates, carpinteiros de barcos, tecelões de panos de velas, cordoeiros e, naturalmente, canastreiros. Daqui houve nome Portugal. A história antiga é de uma cidade-estado, a única portuguesa, fazendo parceria com Gaia e Vila Nova. A história está cheia de vicissitudes, desde a presúria de Vímara Peres à intervenção da Armada heroica dos gascões. Foi D. Teresa quem concedeu ao bispo D. Hugo o couto da cidade em 1111, o que permitiria uma durável autonomia. D. Fernando chamou-lhe Paraíso e o mestre de Avis teve o apoio dos seus povos e mesteres para a sua causa. Aqui se casaria D. João com D. Filipa de Lencastre e nasceria o Infante D. Henrique. E diz a lenda que o sacrifício imposto pela preparação da armada de Ceuta, deixou apenas as “tripas”, depois tornadas acepipe, para alimentação dos portuenses… E não se esquece a designação de Cidade Invicta, outorgada por D. Maria da Glória, a rainha que o povo adotou, a lembrar a heroica resistência no Cerco do Porto (1832-33), depois da chegada dos Bravos do Mindelo e da hospitalidade cidadã – a lembrar o que Garrett dizia: nós os do Porto podemos trocar os bb pelos vv, mas nunca a liberdade pela tirania… E D. Pedro não esqueceria esse povo extraordinário, oferecendo à população do Porto o seu coração, que a igreja da Lapa alberga. 

 

PARTINDO DA SÉ.

«O viajante está no largo da Sé, olhando a cidade. É manhã cedo. Veio aqui para escolher caminho, decidir um itinerário. A Sé ainda está fechada, o paço episcopal parece ausente. Do rio vem uma aragem fria. O viajante deitou contas ao tempo e aos passos traçou mentalmente um arco de círculo, cujo centro é este terreiro, e achou que quanto queria ver do Porto estava delimitado por ele. Não tem, em geral, assim tantas preocupações de rigor. E provavelmente virá a infringir esta primeira regra. No fundo, aceita os princípios básicos que mandam dar atenção ao antigo e pitoresco e desprezar o moderno e banal. Viajar desta maneira por cidades e outros lugares acaba por ser uma disciplina tão conservadora como visitar museus: segue-se por este corredor, dá-se a volta a esta sala, para-se diante desta vitrina ou deste quadro durante um tempo que a observadores pareça suficiente e comprovativo das bases culturais do visitante, e continua-se, corredor, sala, vitrinas, vitrina, sala, corredor… (…) Por estar fiando estes pensares é que decidiu começar a sua volta descendo as Escadas das Verdades, aquelas que por trás do paço episcopal vão descendo, em quebra-costas para o rio. São altos os degraus, maus de descer, piores ainda de subir. Que razões terão sido a deste batismo, não sabe o viajante, tão curioso de nomes e das origens deles (…). Por estas encostas andam subindo e descendo gentes desde os tempos do conde Vímara Peres (…). Aqui em baixo é a Ribeira. O viajante passa sob o arco da Travessa dos Canastreiros, boa sombra para Verão, mas agora gélida passagem, e durante meia manhã andará por este Bairro do Barredo, a ver se aprende de vez o que são ruas húmidas e viscosas, cheiros de fossa, entradas negras de casas» …

 

TEATRO GRANÍTICO

O viajante deixa-se deslumbrar pela cidade acantonada no teatro granítico de socalcos a partir da Ribeira. Calcorreia as calçadas de granito e homenageia os artistas, no museu que leva o nome de Soares dos Reis, no Palácio das Carrancas. A “Virgem do Leite” de frei Carlos é talvez “a obra mais importante que se guarda aqui”, mas o coração do viajante tem um lugar especial para Henrique Pousão e Marques de Oliveira. E, de regresso à Sé, entra nos Clérigos e considera que a cidade não reconhece devidamente a importância de Nasoni. Se Fernão de Magalhães é eternizado por uma ampla avenida, Nasoni e a sua injustamente pequeníssima rua “riscou no papel viagens não menos aventurosas: o rosto em que uma cidade se reconhece a si própria”. E na Sé, mais do que a robustez e o orgulho militar, merece glorificação a galilé de Nasoni que tão bem integrada aparece no conjunto. E é Nasoni o herói, sem dúvida, desta visita: “este italiano, criado e educado entre mestres de outro falar e entender”, que “veio aqui escutar que língua se falava no Norte português e depois passou-a à pedra”. “O interior da igreja avulta pela grandeza das pilastras, pelo voo das abóbadas apontadas”. E saindo da Sé o viajante olha os telhados do Barredo e descobre a fonte do pelicano, temendo, porém, pela sua conservação e perenidade… “Quando o viajante estiver de partida, tornará a ir à Fonte do Pelicano, olhará aquelas iradas mulheres que presas à pedra se desafiam, saberá que há ali um segredo que ninguém lhe saberá explicar, e é isso que leva do Porto, um duro mistério de ruas sombrias e casas cor de terra, tão fascinante tudo isto como ao anoitecer as luzes que se vão acendendo nas encostas, cidade junta com um rio que se chama Doiro”…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  

De 16 a 22 de maio de 2022.


“Saramago – Os Seus Nomes – Um Álbum Biográfico” edição de Alejandro Garcia Schnetzer e Ricardo Viel (Porto Editora, 2022) reconstitui no ano do centenário o percurso do romancista, a partir das referências fundamentais.


DÁ VONTADE DE PERGUNTAR: PORQUÊ? 
“Da história de Portugal sempre nos dá vontade de perguntar: porquê? Da cultura portuguesa: para quê? De Portugal, ele próprio, para quando? Ou: até quando? Se estas interrogações não são gratuitas, se, pelo contrário, exprimem, como creio, um sentimento de perplexidade nacional, então os nossos problemas são muito sérios”. Na obra de Saramago não há indiferença perante qualquer destes temas. Para todas as interrogações o escritor procura pistas. E assim a sua obra corresponde a um percurso cultural e humano que merece, na sua complexidade, atenção, sobretudo pela diversidade criadora que pressupõe um constante enriquecimento da cultura, da literatura e da língua. Quando o escritor salienta que Almeida Garrett em “Viagens na Minha Terra” e Almada Negreiros em “Nome de Guerra” constituem casos especiais na inovação e renovação da língua portuguesa, que enriqueceram o que encontramos nas várias culturas e línguas que, a partir do português, se difundiram e difundem no mundo global, permite-nos ler a sua obra multifacetada à luz de uma preocupação emancipadora, em ligação à língua e à sociedade como realidades vivas. Saramago chega mesmo no “Ano da Morte” a lamentar que Alberto Caeiro não tenha vivido o suficiente para conhecer o contributo extraordinário de Almada Negreiros. Aliás, a “Viagem a Portugal” é um modo atual e necessário de ver o País, a partir da realidade das gentes concretas, do país profundo, na senda de Garrett e de Raul Proença. E na obra de Saramago está também um complemento, com naturalidade e originalidade, da obra do romancista, de “Levantado do Chão”, de “Memorial do Convento” ou de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.  E se a sombra de Garrett e de Almada está bem presente, o certo é que há uma evolução, que permite compreender Portugal como realidade em confronto permanente entre o presente e o passado. 


LIBERTAÇÃO DA LITERATURA
E assim a literatura liberta-se. Como? Colocando-se do lado da vida e assumindo a incerteza histórica, mais do que qualquer cânon ou receita. O sucesso da obra de José Saramago não se deve, assim, a uma predisposição previsível, mas a uma exigente procura de algo que possa mobilizar o leitor, não pelo que seria esperável, mas como demanda e descoberta da própria humanidade de um povo heterogéneo, mas com raízes unificadoras. Nesse ponto encontramos a cultura, como Cícero lhe chamou “humanitas”, como algo que define a essência da vida. Assim a libertação da literatura não é separação da realidade, mas compreensão do ato criador, que não pode ceder à repetição ou à previsibilidade, porque a vida se contrapõe a essa ideia. Lembre-se o que Saramago diz de “Levantado do Chão”. “Era uma questão que eu tinha que resolver e que tinha que ver com a minha própria vida, com o lugar onde nasci, eu não nasci no Alentejo, mutatis mutandis, a história é a mesma. Assim como se eu tivesse que agarrar aquela gente, que foram os meus avós, os meus pais, os meus tios, essa gente toda, analfabetos e ignorantes, e tivesse que escrever um livro”.  E nesse “agarrar” da gente”, encontramos uma dupla aceção: compreender a realidade descrita e mobilizar os leitores para acompanharem a narrativa, como uma relação biunívoca. Também a criança que ouve uma história vive as peripécias da mesma e sente-se ao mesmo tempo como protagonista e destinatária.  É o tecido humano que importa, ou seja, o movimento que mobiliza a um tempo a atenção e a iniciativa. Há, pois, na obra de Saramago, uma persistente procura da heterogeneidade da existência: pensamento e ação, vontade e inércia. E assim a obra vai sofrendo alterações no texto e no contexto, na tónica e na temática. “Mafra é um pouco como as nossas pirâmides do Egito. Andaram a trabalhar nas suas obras 400 mil pessoas. Como é que uma massa de gente construiu uma massa como esta?”. A emancipação humana liga-se à emancipação da cultura. E se Almada Negreiros e Fernando Pessoa acompanham a viagem terminal de Ricardo Reis, é o Padre António Vieira, e os ecos do pregador barroco, que acompanham Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, apesar da distância temporal. E a capacidade de adivinhar e de ver por dentro é, no fundo, a invocação da tarefa do escritor de poder ver para além de todas as aparências. E a dureza da existência e da exploração humana, ao longo de milénios, encontra na exigência do sonho o caminho para encontrar novos modos de nos compreendermos.


UM CAMINHO COMPLEXO
E José Saramago, o neorrealista dos começos, evolui naturalmente no sentido do recurso a elementos que abrangem a realidade e o mistério, além do encontro com a vontade de emancipação, como se queira entendê-la. A escolha de Ricardo Reis, em “O Ano da Morte” é, assim, justificada “por ele ser o contrário de mim”; “escolhi-o por isso, para falar dele e para falar de mim. São dialéticas contrárias”, diz o autor. A ficção obriga, de facto, a que a realidade seja desconstruída, para melhor ser descrita nas suas contradições. E Marcenda e Lídia constituem um permanente confronto. A dúvida sobre a escolha fica em suspenso. E não podemos esquecer a muito inesperada aparição de um “humano” cão das lágrimas em “Ensaio sobre a Cegueira”, símbolo de fidelidade e de compreensão, ou de Salomão, o elefante. Os símbolos são fundamentais explicações. “Não é impossível que, ao menos uma vez, apareça um elefante, e que esse elefante traga sobre os ombros um cornaca chamado subhro, nome que significa branco, palavra esta totalmente desajustada em relação à figura que, à vista do rei de Portugal e do seu secretário de estado se apresentou no cercado de belém”. Há, pois, uma preocupação do escritor na procura de uma melhor compreensão da realidade que o cerca, quer através da interrogação das raízes próprias, quer em referências humanas ou históricas, numa dupla abordagem da emancipação, como exigência pessoal e responsabilidade da humanidade, literária e cultural. “No fundo, a coisa é muito simples: eu posso criticar Portugal, mas há uma pergunta. E quem seria eu se não tivesse nascido neste lugar do mundo?” E na interrogação essencial sobre quem somos, como portugueses, Saramago pergunta: “Como explicar esta dormência, que é também ‘inquietude’, sem cair em destrutivos negativismos? Como evitar que a ‘antiga e gloriosa história’ continue a servir de derradeira e estéril compensação de todas as nossas frustrações?” Longe do conformismo, o que encontramos é uma constante insistência na exigência de recusar o fatalismo. “Como resistir à tentação falaz de sobrevalorizar o que há anos se acreditou ser “uma certa renovação cultural”, fazendo dela um álibi ou uma cortina de fumo. Ou chegámos já tão baixo, que, depois de termos desistido de explicar-nos, nem nos damos ao trabalho de justificar-nos”. A recusa de destrutivos negativismos, de uma antiga e gloriosa história ou de uma estéril compensação das nossas frustrações significará a confirmação do que Eduardo Lourenço designa como a aceitação de quem somos - imperfeitos, nem melhores nem piores do que os outros, postos perante as responsabilidades de corresponder aos desafios presentes e não a ilusões mirificas. Mais do que cair em sonhos providenciais, trata-se de entender que o velho Alexandre Herculano considerava ser o querer a verdadeira explicação da nossa existência coletiva. Na epígrafe de “O Ano da Morte”, está uma citação do próprio Ricardo Reis: “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”. É o confronto que anima o romancista, porque há uma contradição entre a vontade de agir e necessidade de seguir os acontecimentos. Mas Fernando Pessoa está noutra dimensão, do sonho e da indiferença. A ideia de emancipação é mista – emancipando-nos, desejamos libertar-nos do que nos limita e constrange, e participar de um anseio comum, a que não podemos ser indiferentes. Tal como Blimunda, ansiamos por compreender para além das aparências, ver com outros olhos. O espetáculo do mundo faz-nos embrenhar-nos em mil enigmas, sabendo que não podemos desvendá-los como desejaríamos. Apenas podemos demandar novas perguntas. “Exatamente, meu caro Reis, vida e morte é tudo um, Você já disse hoje três coisas diferentes, que não há morte, que há morte, agora diz-me que morte e vida são o mesmo, Não tinha outra maneira de resolver a contradição que as duas primeiras afirmações representavam, e dizendo isto Fernando Pessoa teve um sorriso sábio, é o mínimo que deste sorriso se poderia dizer, se tivermos em conta a gravidade e a importância do diálogo”. Ver melhor significa, no fundo, recusar a tentação de uma racionalidade sem contradições. 

 
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

BREVE EVOCAÇÃO DO TEATRO DE JOSÉ SARAMAGO


Aqui fazemos uma breve referência à (também breve) obra dramática de José Saramago, nascido em 1922 e falecido em 2010, o que de certo modo torna cronologicamente oportuna esta citação. A ela certamente voltaremos, mas parece oportuno esta primeira referência, independentemente, note-se, do que eu lhe dedico como análise na “História do Teatro Português”, que aqui tenho citado. E justamente, a primeira referência que aqui faço será exatamente a evocação desse conjunto de peças, na altura da publicação da História acima citada.

E justamente: aqui evoco o que na época escrevi, tendo em vista uma análise, admite-se que incompleta mas sempre válida (na minha opinião), acerca da dramaturgia de Saramago, tal como deve ser citada.

Como referi,  efetivamente Saramago, depois da adaptação, com Costa Ferreira, de um conto seu (“Fim de Paciência”) escreveu, a partir de 1970,  peças que trazem para  cena o temários dominantes do autor: “A Noite” (1979), visão realista da noite de 25 de abril de 1974 numa redação de jornal, “Que Farei com Este Livro”  (1980) onde o protagonista, mais do que Camões é “Os Lusíadas” e alegorias heterodoxa e azedas, “A Segunda Vida de Francisco de Assis”  e “In Nomine Dei”, ambas reflexo das angústias do autor. E acrescento agora “Don Giovanni ou O Dissoluto Absurdo” datada esta publicação de 2005.

E ainda acrescento que estas duas últimas serviram de base à ópera “Blimunda” de Azio Corghi.

Entretanto, importa fazer algumas citações de comentários críticos.

Assim, Luis Francisco Rebello, em “100 Anos de Tetro Português”, considera “A Noite” como “texto essencialmente dialético no seu aparente naturalismo e de uma invulgar eficácia teatral” . Especifica: “Obra de um realismo exemplar, a sua rigorosa estrutura, a perfeita definição dos carateres e a confrontação ideológica entre eles, a segurança do diálogo, revelaram um autêntico dramaturgo que a peça seguinte, um drama histórico tendo como protagonista o autor dos Lusíadas a que chamou «Que Farei com Este Livro» (1980) plenamente confirmou»…

E mais haverá nesta linha de criação: a ela voltaremos num temário que documenta a ligação por vezes inesperada entre o teatro e o romance!

DUARTE IVO CRUZ  

MAIS OUTRA CARTA A JOSÉ SARAMAGO

 

Meu Caro José:


...e o padre Francisco Gonçalves, como lhe competia, respondeu, Todo o saber está em Deus, Assim é, respondeu o Voador, mas o saber de Deus é como um rio de água que vai correndo para o mar, é Deus a fonte, os homens o oceano, não valia a pena ter criado tanto universo se não fosse para ser assim, e a nós parece-nos impossível poder alguém dormir depois de ter dito ou  ouvido dizer coisas destas.


   
Ao escrever estas poucas linhas, mais do que as suas personagens, estaria o próprio autor inquieto. Você mesmo o confessa, meu caro José, ter-lhe-á sido difícil conciliar o sono depois de as ter pensado e redigido... A mente humana é muito sensível, por isso gosto de dizer que a expressão pensossinto me parece mais realista e acertada, e ainda mais conforme à inquietação que nos percorre e, por vezes, nos faz tremer, mesmo quando não tememos. Da ignorância diremos que é noite do espírito, escuridão, não temos medo necessariamente do que ela esconde, receamos, sim, a nossa própria incapacidade de desenhar as coisas e de, tão temerariamente quanto possível, as nomearmos. Noutro passo do seu Memorial, o José Saramago também se interroga sobre o significado de só Deus, o Sem Nome, saber o nome de tudo e todos, deixando-nos a nós, humanos, o labirinto que vamos semeando de invenções. Não ficou escrito assim, nem por esta ordem, mas assim veio habitar o meu pensarsentir.


   Aliás, a resposta do padre Francisco Gonçalves acima transcrita resulta de interpelação feita pelo padre Bartolomeu Lourenço, como significativamente o José conta no Memorial : Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal, padre Francisco Gonçalves, isto dissera o padre Bartolomeu Lourenço antes de recolher ao seu quarto...


   
Tenho para comigo que a nossa humana inquietação brota duma qualquer mista consciência de perplexidade (ou, talvez, humilhação revolta) e de curiosidade (pertinaz, teimosa, ousada) - e, ao pensá-la assim, estou sentindo outra iluminação, um encanto novo no conto genético da tentação do fruto proibido da árvore do conhecimento. Será esse o paradoxo da condição humana, ou descoberta da nossa contingência na própria ânsia do cumprimento de uma promessa inicial e fundadora da nossa própria humanidade? Terão Adão e Eva errado por desejarem conhecer a verdade? Tal desejo não seria, afinal, já parte própria deles mesmo? Ou serão os erros cometidos condição necessária do conhecimento do bem e do mal?


   
No Memorial, eis o que diz padre Bartolomeu a Domenico Scarlatti: ... é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente que conhecer os erros. E praticá-los, não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro...


... Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta.


 
Ou talvez fosse só Pilatos cético, pois Jesus, Deus que era, não só se manteve calado durante todo o processo, como quiçá entendia que não chegara a hora de revelar um vislumbre sequer da verdade ontológica que só a Deus pertence... A cada um de nós cabe a tarefa de procurar a verdade possível de encontrar, e só o amor posto nesse trabalho nos trará o perdão que o ter-se amado consegue. E bem diz, meu caro Saramago: Procura cada qual, por seu próprio caminho, a graça,  seja ela o que for, uma simples paisagem com algum céu por cima, uma hora do dia ou da noite, duas árvores, três se forem as de Rembrandt, um murmúrio, sem sabermos se com isto se fecha o caminho ou finalmente se abre, e para onde, para outra paisagem, ou hora, ou árvore, ou murmúrio, veja-se este padre que anda a tirar de si um Deus e a pôr outro, mal sabendo que proveito haverá na troca, e, se proveito houver, quem dele finalmente aproveitará, veja-se este músico que outra música que esta não saberia compor, que não estará vivo daqui a cem anos, para ouvir a primeira sinfonia do homem, erradamente chamada Nona...


   
Ao Deus sem nome - e talvez por isso mesmo - deram os humanos muitos nomes. Ao Deus desconhecido inventaram histórias e preceitos, de forma a torná-lo por vários gostos reconhecível. Mas há um - cujo nome está acima de qualquer nome - que nos envia o seu Primogénito a ensinar-nos o Santo Nome: PAI. E nós assim dizemos: Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu nome... Veja bem, meu caro José Saramago, como, por este caminho, me vou despindo de orfandade, e pensossinto que religiosa ou religioso é todo o ser humano que, dia a dia, sai de si para ir em busca do Pai...


Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 25.04.21 neste blogue.

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:   


   Amigo meu referiu-me hoje uma frase lida, salvo erro, na revista Marianne. Tal dito recordava que, muito depois de Descartes ter afirmado Cogito, ergo sum, agora - pelo menos aparentemente - temos mais tendência a acreditar em Sou visto, logo existo. 


  
É hoje prática corrente e universal, que políticos e outras figuras públicas multipliquem périplos e aparições para "ganharem maior visibilidade", pois se julga que à aparência corresponde essencialmente o reconhecimento... Donde resulta ser a política, por exemplo, cada vez mais uma disciplina do "marketing".


   Ocorreu-me entretanto, por inopinada inspiração, um passo da narrativa de Max Gallo, historiador francês, intitulada La Chute de l´Empire Romain (XO Éditions, Paris 2014), que passo a traduzir:


   No primeiro de janeiro de 417, o imperador Honório decide partilhar, pela segunda vez, o cargo de cônsul com o general Constâncio e, ao remeter-lhe as insígnias dessa função - e a de patrício, que coloca Constâncio em pé de igualdade com a família imperial - torna Galla Placídia noiva do general.


   Galla Placídia deixa o imperador Honório pegar-lhe na mão e pô-la na de Constâncio. 
 


   Assim, ela própria quis que Honório surgisse como mestre de obra daquela união.


   Aprendera, durante os seis anos que fora obrigada viver no meio dos bárbaros godos, que de modo algum são as aparências que contam, mas sim o que elas escondem.


  
E era ela filha do imperador Teodósio o Grande, o tal que dividiu o império romano em dois, deixando um a cada um dos filhos: o império do ocidente ficou para Honório, a quem sucederia o sobrinho Plácido Valentiniano (419-455), filho de Galla Placídia e do general Constâncio e, por desígnio de sua mãe, último imperador de Roma. Um parágrafo desta narrativa de Max Gallo vai resumir as núpcias de Galla e Constâncio de modo muito especial:  


   Na Primavera do ano de 417, celebram-se as bodas. O general Constâncio pavoneia-se, o imperador Honório triunfa. Galla Placídia está de mármore.


  
E agora me ocorre um comentário mais íntimo, que fui buscar ao Memorial do Convento, do Saramago:


   ...mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo, o soldado a quem perguntou um dia, Que nome é o seu, ou nem sequer a esse vê, apenas a este homem que desce, sujo, canoso e maneta, Sete-Sóis de alcunha, se a merece tanta canseira, mas é um constante sol para esta mulher, não por sempre brilhar, mas por existir tanto, escondido de nuvens, tapado de eclipses, mas vivo, Santo Deus, e abre-lhe os braços, quem, abre-os ele a ela, abre-os ela a ele, ambos, são o escândalo da vila de Mafra, agarrarem-se assim um ao outro na praça pública, e com idade de sobra, talvez seja porque nunca tiveram filhos, talvez porque se vejam mais novos do que são, pobres cegos, ou porventura serão estes os únicos seres humanos que como são se vêem, é esse o modo mais difícil de ver, agora que eles estão juntos até os nossos olhos foram capazes de perceber que se tornaram belos. 


   Fecho os meus olhos, Princesa de mim, vou dormir, talvez sonhar à sombra de um sorriso que agora me ilumina e humaniza. O vero, o bom, o belo, o essencial é, consoladoramente, invisível à vista. 

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

E OUTRA AINDA A JOSÉ SARAMAGO


Meu Caro José Saramago:


   ...meu pai mal pode andar, acho que  lhe estão a nascer raízes nos pés, ou é o coração à procura de terra para descansar... diz Baltasar Sete Sóis, no Memorial do Convento,  quando, sob o efeito da saudade do desaparecido padre Bartolomeu e duns púcaros de vinho a mais, a sua mente oscila entre o aparente disparate de tal pensamento - que, todavia lhe inspira, a si, meu caro Saramago, essa frase que imagina a morte tão humana e tão bonita - e a confusão que as ideias sobre Deus geram em cabeças fragilizadas. Cito: ...Deus não tem a mão esquerda porque é à sua direita que senta os seus eleitos, e uma vez que os condenados vão para o inferno, à esquerda de Deus não vem a ficar ninguém, ora, se não fica lá ninguém, para que quereria Deus a mão esquerda, se a mão esquerda não serve, quer dizer que não existe, a minha mão serve porque não existe, é só a diferença, Talvez à esquerda de Deus esteja outro deus, talvez Deus esteja sentado à direita doutro deus, talvez Deus seja só um eleito doutro deus, talvez sejamos todos deuses sentados, donde é que estas coisas me vêm à cabeça é que eu não sei, disse Manuel Milho, e Baltasar rematou, Então sou eu o último da fila, à minha esquerda é que não se pode sentar ninguém, comigo acaba-se o mundo, donde vêm tais coisas à cabeça destes rústicos, analfabetos todos, menos João Anes, que tem algumas letras, é que nós não sabemos.


   
Venho saboreando a sua frase, tão humana e tão bonita: meu pai mal pode andar, acho que lhe estão a nascer raízes nos pés, ou é o coração à procura de terra para descansar.  Tantas vezes eu mesmo propriamente me sinto assim... tantas quantas me surpreendo a pensarsentir que um homem é árvore, nascida para crescer, dar sombra e fruto, e morrer de pé, num abraço ao chão que lhe sustentou a vida. Depois do abate, poderão queimar-me para dar calor e luz ainda, sem pretensões, apenas porque, para tal, possa ter algum préstimo. Nada me pertenceu ou pertence, só eu pertenci e pertencerei sempre a esse devir de que Deus é dono, e a que chamamos vida por vir, universo inteiro. 


   Nem aos filhos de Zebedeu Jesus garantiu lugares de privilégio no Reino do Pai, nem Baltasar sabe se, sentado no último lugar da fila, será ele o primeiro a cair pela esquerda, ou quando o mundo for acabar. Da mão esquerda de Deus, da sua utilidade e desígnios, tanto nada sabem os sábios humanos (incluindo os que se enaltecem de títulos sacerdotais) como João Anes ou qualquer dos seus analfabetos companheiros etilizados. Por mim, apenas ouso tentar adivinhar que, com mão esquerda ou sem ela, Deus terá decidido que o seu segredo só pode ser guardado no coração de cada humano de boa vontade.


    E ainda arrisco dizer que o José Saramago não discordará totalmente de mim, sobretudo se lhe ocorrer que, por me encontrar ainda do lado de cá da contemplação do mistério da vida e da morte, nesta idade e condição, também poderei sentir-me como quando era menino pequenino e carente de tudo, impotente ansiando por que uma inefável ternura tenha misericórdia de mim.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

MAIS OUTRA CARTA A JOSÉ SARAMAGO


Meu Caro José:


...e o padre Francisco Gonçalves, como lhe competia, respondeu, Todo o saber está em Deus, Assim é, respondeu o Voador, mas o saber de Deus é como um rio de água que vai correndo para o mar, é Deus a fonte, os homens o oceano, não valia a pena ter criado tanto universo se não fosse para ser assim, e a nós parece-nos impossível poder alguém dormir depois de ter dito ou  ouvido dizer coisas destas.


   
Ao escrever estas poucas linhas, mais do que as suas personagens, estaria o próprio autor inquieto. Você mesmo o confessa, meu caro José, ter-lhe-á sido difícil conciliar o sono depois de as ter pensado e redigido... A mente humana é muito sensível, por isso gosto de dizer que a expressão pensossinto me parece mais realista e acertada, e ainda mais conforme à inquietação que nos percorre e, por vezes, nos faz tremer, mesmo quando não tememos. Da ignorância diremos que é noite do espírito, escuridão, não temos medo necessariamente do que ela esconde, receamos, sim, a nossa própria incapacidade de desenhar as coisas e de, tão temerariamente quanto possível, as nomearmos. Noutro passo do seu Memorial, o José Saramago também se interroga sobre o significado de só Deus, o Sem Nome, saber o nome de tudo e todos, deixando-nos a nós, humanos, o labirinto que vamos semeando de invenções. Não ficou escrito assim, nem por esta ordem, mas assim veio habitar o meu pensarsentir.


   Aliás, a resposta do padre Francisco Gonçalves acima transcrita resulta de interpelação feita pelo padre Bartolomeu Lourenço, como significativamente o José conta no Memorial : Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal, padre Francisco Gonçalves, isto dissera o padre Bartolomeu Lourenço antes de recolher ao seu quarto...


   
Tenho para comigo que a nossa humana inquietação brota duma qualquer mista consciência de perplexidade (ou, talvez, humilhação revolta) e de curiosidade (pertinaz, teimosa, ousada) - e, ao pensá-la assim, estou sentindo outra iluminação, um encanto novo no conto genético da tentação do fruto proibido da árvore do conhecimento. Será esse o paradoxo da condição humana, ou descoberta da nossa contingência na própria ânsia do cumprimento de uma promessa inicial e fundadora da nossa própria humanidade? Terão Adão e Eva errado por desejarem conhecer a verdade? Tal desejo não seria, afinal, já parte própria deles mesmo? Ou serão os erros cometidos condição necessária do conhecimento do bem e do mal?


   
No Memorial, eis o que diz padre Bartolomeu a Domenico Scarlatti: ... é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente que conhecer os erros. E praticá-los, não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro...


... Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta.


 
Ou talvez fosse só Pilatos cético, pois Jesus, Deus que era, não só se manteve calado durante todo o processo, como quiçá entendia que não chegara a hora de revelar um vislumbre sequer da verdade ontológica que só a Deus pertence... A cada um de nós cabe a tarefa de procurar a verdade possível de encontrar, e só o amor posto nesse trabalho nos trará o perdão que o ter-se amado consegue. E bem diz, meu caro Saramago: Procura cada qual, por seu próprio caminho, a graça,  seja ela o que for, uma simples paisagem com algum céu por cima, uma hora do dia ou da noite, duas árvores, três se forem as de Rembrandt, um murmúrio, sem sabermos se com isto se fecha o caminho ou finalmente se abre, e para onde, para outra paisagem, ou hora, ou árvore, ou murmúrio, veja-se este padre que anda a tirar de si um Deus e a pôr outro, mal sabendo que proveito haverá na troca, e, se proveito houver, quem dele finalmente aproveitará, veja-se este músico que outra música que esta não saberia compor, que não estará vivo daqui a cem anos, para ouvir a primeira sinfonia do homem, erradamente chamada Nona...


   
Ao Deus sem nome - e talvez por isso mesmo - deram os humanos muitos nomes. Ao Deus desconhecido inventaram histórias e preceitos, de forma a torná-lo por vários gostos reconhecível. Mas há um - cujo nome está acima de qualquer nome - que nos envia o seu Primogénito a ensinar-nos o Santo Nome: PAI. E nós assim dizemos: Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu nome... Veja bem, meu caro José Saramago, como, por este caminho, me vou despindo de orfandade, e pensossinto que religiosa ou religioso é todo o ser humano que, dia a dia, sai de si para ir em busca do Pai...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira