Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Verifico, com surpresa, talvez mágoa, não sei, que as notícias e comentários de órgãos de comunicação católicos portugueses se referem à recente visita do papa Francisco ao Iraque enaltecendo sobretudo a coragem, a resposta ao desafio dos riscos, a "loucura" que apelidam de profética, etc., sem se lembrarem de que aquela peregrinação foi a de um homem de fé, que nos trouxe a contemplação essencial desta virtude teologal e das outras duas: esperança e amor. O espírito cristão parece, assim, quase ausente do nosso sentimento da aventura quotidiana... ou será que preferimos, a uma visão íntima, mística, da vida e da história, a emoção proporcionada por feitos humanos, à nossa medida?
Por outro lado, surpreendeu-me também um boletim do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, órgão da Conferência Episcopal Portuguesa, em que se destacava um suplemento do Jornal de Notícias sobre o cardeal José Tolentino Mendonça, um dos fundadores do tal boletim, seu diretor durante anos e que tem sido, em tempos recentes, assunto de artigos bastante encomiásticos, pelo mesmo publicados.
Na verdade, de Tolentino ou outra pessoa qualquer um de nós pensará, por bem, o que lhe parecer, e o Jornal de Notícias está no seu direito de publicar o que melhor entender. Os eventuais leitores, por seu lado, farão sobre o que lerem um juízo conforme ao exercício do espírito crítico de cada um. Pessoalmente, é-me indiferente que Maria João Avillez escreva que aquele clérigo é a única pessoa que consegue trazer o sagrado para perto dela, ou que "o investigador" Luís Mah o considere único e veja nele o próximo papa. Já me escandaliza que um boletim do episcopado que ele fundou e dirigiu reúna todo esse material numa espécie de panfleto propagandístico, com um título que retoma o dito da jornalista Avillez: «Ninguém como ele nos traz o sagrado para tão próximo de nós».
Aliás, também me parece assaz incorreta a afirmação da mesma jornalista, ali reproduzida: «O Papa Francisco sabia bem o que fazia quando foi pescar este padre ainda jovem no nosso mar português». Cheira-me a tentativa de ligar umbilicalmente à figura extraordinária do papa atual o perfil de José Tolentino. Sabemos que a carreira vaticana do atual cardeal português se iniciou ainda no pontificado de Bento XVI, embora já sob o patrocínio do cardeal Gianfranco Ravasi, padrinho de um dos mais conhecidos grupos de pressão da Cúria Romana. Foi em 2011 que foi nomeado, pelo papa Ratzinger, consultor do Conselho Pontifício para a Cultura, presidido pelo cardeal italiano.
Sabes bem, minha Princesa de mim, quanto me repugna falar dos outros, precisamente pelas mesmas razões que me levam a aborrecer (no sentido antigo, etimológico, de ter horror a) as campanhas malévolas ad hominem ou as mitoconstrutoras pro homine, umas e outras claramente fulanistas. As pessoas podem discutir gostos e ideias, não têm, nem devem, discutir-se umas às outras enquanto tais. E é por isso que te recito agora um poema de frei José Augusto Mourão, o.p., que foi professor de semiótica de José Tolentino que, aliás escreveu o prefácio ao seu livro de poesia reunida (O Nome e a Forma, Pedra Angular, 2009), donde os versos seguintes são retirados, com os meus votos de que Tolentino consiga vir ainda a partilhar da respiração mística que anima o sopro poético daquele seu falecido mestre:
introito
não somos a fonte nem o rio mas a sede, o desejo do permanecer e do louvor corre em nós como o rio e a fonte nunca passaremos do átrio o santo dos santos sobre que se detêm os nossos pés é a vida misteriosa de Deus
a hora é para suspirar, para louvar, para pedir a água eu irrigava o Templo e no batismo nos introduziu no mistério de sermos hoje o templo do Espírito
II
Nós somos o corpo que o Amor reúne nós procuramos todos um colo onde repousar dos trabalhos e dos dias, do desamor e das trevas que também nos assaltam e nos tolhem
nós procuramos a paz e o perdão sem disfarces nem armas
que a misericórdia de Deus nos cubra neste momento de graça e de perdão
Creio mesmo, Princesa de mim, que estes versos do frei José Augusto, já falecido, são todos os dias repetidos pelo papa Francisco e por todos aqueles que, sem ambições nem narcisismos, vão procurando achegar-se a essa presença do amor misericordioso, bem maior do que algo a que se possa chamar sagrado, pois é o próprio Deus em comunhão connosco.
“Uma Beleza que nos Pertence” de José Tolentino Mendonça acaba de ser publicado na Quetzal (2019). Trata-se de uma coleção de aforismos e citações sobre o sentido da vida, a beleza das coisas e a presença de Deus.
TEMAS NECESSÁRIOS «A alegria é uma revelação da vida profunda. É abrir uma porta, um caminho, um corredor para a passagem do espírito. Nesse sentido, a alegria que é a íntima condição de um cristão, é também um estilo a assumir. Somos chamados a viver na alegria. (…) Um elemento que caracteriza a alegria é o facto dela não nos pertencer. Ela atravessa-nos simplesmente e irrompe quando aceitamos construir a existência como prática de hospitalidade. Estremecemos pela leveza da alegria em nós. Em vez de crescermos na severidade, na intransigência, na indiferença, no sarcasmo, na maledicência, no lamento, caminharemos suavemente no sentido contrário. Cresçamos na simplicidade, na gratidão, no despojamento e na confiança. A alegria tem a ver com uma essencialidade que só na pobreza espiritual se pode acolher». Assim, se exprime o nosso autor, no início de uma longa lista de reflexões extremamente pertinentes. É a exigência de lidarmos com a imperfeição que nos obriga a refletir e como afirma o Papa Francisco: «É necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. (…) Nas grandes cidades, pode observar-se uma trama em que grupos de pessoas compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos, em territórios culturais, em cidades invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas culturais, mas exercem muitas vezes práticas de segregação e violência».
A IMPORTÂNCIA DA CULTURA Há dias, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça afirmou no Seminário do Instituto Camões sobre Cooperação e Língua, na Fundação Calouste Gulbenkian, que a “cultura é um recurso essencial para a construção da paz. Nos momentos de escassez e de crise financeira ou de sentido, como é a que o nosso mundo de hoje vive, é nesses momentos que a cultura deve ser vista como bússolas e motor de desenvolvimento. Todos vivemos na e da cultura”. A palavra cultura, como a consideramos hoje, é relativamente recente, e surge na cultura alemã, como “kultur”, para significar a capacidade criadora e necessidade de protegermos e salvaguardarmos o património que herdamos das gerações anteriores a nós. Na tradição grega e na reflexão romana, encontramos duas outras palavras que preenchem o mesmo entendimento: “paideia” e “humanitas”. Em ambos os casos, referimo-nos, no entanto, mais às ideias de educação, memória, herança e criação. O tempo presente e a compreensão da pessoa humana com centro da sociedade e da economia obrigam a valorizar a cultura. E o orador recorreu, para desenvolver o tema, aos contributos do Papa Francisco, na Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” (2013) e na encíclica “Laudato Si’” (2015), para dar expressão à importância da cultura, como fator de liberdade, de dignidade humana e de enriquecimento individual, indispensável para a concretização de uma cultura de paz.
DEFENDER A MEMÓRIA A língua é um poderoso veículo de comunicação, devendo ser um elemento crucial de criação cultural, de diálogo e de intercâmbio nos domínios educativo e científico. E o certo é que nos tempos atuais nos deparamos não apenas com os efeitos da crise ditada pela destruição do meio ambiente, pelo aquecimento global, mas também pelas ameaças de destruição do património histórico. Como afirma o Papa na referida Encíclica: «A par do património natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura dum lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo». O Papa Francisco pede, pois, que se preste atenção às culturas locais, mais diretamente, “quando se analisam questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como constituída pelos monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente» (LS, 143). Deste modo, o Cardeal diretor do Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, pôs a tónica na valorização da história, da cultura e da arquitetura dos lugares, com salvaguarda da sua identidade, encarada como “beleza que nos pertence”, aberta e capaz de se enriquecer no diálogo entre pessoas e culturas.
A CIDADANIA ECOLÓGICA A perspetiva ecológica exige, pois, a consideração das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo. Património cultural é material e imaterial, são monumentos e tradições, mas também a relação com a natureza e a preservação da paisagem – do mesmo modo que a inovação digital e a integração da criação contemporânea. E a lembrança do que o Papa Francisco afirmou na Exortação Pastoral de 2013 merece assim referência especial. A nossa relação com a cultura obriga à necessidade da compreensão da gratuitidade, da partilha, em lugar de uma cega atitude consumista, esquecida da justiça e da solidariedade. «A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas» (EG, 223). E importa ainda lembrar que «a cidade dá origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo, as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não forem adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas» (EG,74). Eis como só uma cultura respeitadora da liberdade e da responsabilidade, da memória e do conhecimento poderá encontrar caminhos de autonomia, emancipação, dignidade e paz.
Ela, como ninguém, ensinou-me a importância de exercitar a gratidão. Ela, como ninguém, mostrou-me que é o facto de esperarmos um destino comum que nos faz cúmplices e irmãos na aventura do caminho.» Filipe Condado
José Tolentino de Mendonça e Filipe Condado atentos ao parto da alma de Etty Hillesum, porque se vive sempre e primeiro por dentro; porque a reconciliação é o pré parto que expele qualquer ódio que mine o entendimento da vida espiritual, porque se o desejo desta for identificado e abraçado pela única porta que nos conduz a nós e aos outros: então saberemos que nos referimos ao amor; então julgo que sei um pouco do itinerário deste livro.
Emocionou-me profundamente a leitura deste livro: os excertos do diário de Etty, as fotografias e as palavras de Filipe Condado, as palavras de Tolentino.
Este livro propõe um horizonte que não se esgota através do humano, mas por aí encontra a sua expressão/mediação de chegar lá onde e aonde se trabalha espiritualmente a vida, sobretudo para nela confrontarmos os pontos dolorosos, quantas vezes vividos na nossa família (não se escolhe lugar onde se nasce, nem pai nem mãe, nem outros pontos de partida) que nos condicionaram o sonho de muitos modos, e até nos fizeram sentir abandonados, ou, como diz Etty ao falar de casa
É tragicómico, não sei que tipo de casa é esta, mas aqui uma pessoa não progride.
Esta substância aniquiladora, da qual se apercebe Etty insinua-se sólida na sua vida e ela receia que prisioneira, perpetue aquela mistura de barbarismo e cultura, espécie de qualquer coisa que era, sem nunca ter sido, e, no entanto fora.
Talvez a partir daqui, por um caminho ou outro, comecemos um começo sem fugirmos de nós, e escutando-nos, até que nessa escuta caiba a nossa vulnerabilidade, a nossa necessidade de aperfeiçoamento a cada hora, a fim de expelirmos a tal
Tralha humana e matagal manhoso
que temos em nós, se não passarmos também da cabeça para o coração como diz Spier a Etty.
E tudo isto com a ajuda do silêncio.
Só o silêncio nos aproxima a pergunta: quantas pessoas existem em cada um de nós? Creio que pergunta semelhante aproximou Etty Hillesum a um caminho com Deus; um caminho, o tal caminho muito encostadinho ao seu íntimo, tão encostadinho que lhe confiava um calor de xaile de mãe, um calor que a apaziguava consigo mesma.
A partir desta conciliação, interpretei, abre-se sempre uma vastidão apta há muito! A tanto! que até o que nos ensina a ocupar-nos dos outros é o mesmo que se ocupou da nossa mão e nos disse de algum modo que
Existe algo de «Deus» na Nona de Beethoven.
Surge-me uma Etty Hillesum que se não quer perder em constantes campos de batalha; uma Etty que deixa o umbigo para espreitar um tantinho de eternidade, outro tantinho dentro dela que é a intuição de encontrar uma sabedoria que a faça pessoa, e não um conhecimento que lhe aporte poder.
E este livro também se pode ler abrindo-se em qualquer página. E este livro também se lê só vendo os desenhos; e este livro é uma preciosidade contra o medo e não o simplifica, antes o sossega: eis a tranquilidade.
Quando uma pessoa leva uma vida interior, talvez nem haja tanta diferença entre estar fora ou dentro dos muros de um campo.
O campo de concentração: o trabalho do espírito a enfrentá-lo de dentro para fora.
Lembrei-me que se torturam barbaramente os elefantes para lhes retirarem o espírito, isto é, para os subjugar e humilhar pela dor, faze-los ceder, desaparecer de si. Mas como fazer sumir no ar as humilhações no campo de concentração? E Etty escreveu
Esta manhã desfrutei do vasto céu (..). Diria eu que Etty nos propõe o céu total, mesmo que visto por uma brecha minúscula.
E chega outra proposta de pensamento: será que o maior roubo que nos é feito, é feito por nós próprios? Se assim for é necessário o despojamento material e de aparência, para melhor vivermos uma vida em cada dia, uma vida na posteridade, e dentro dela, acolhe-se então, simplesmente, a morte.
Etty deixou de estar revoltada, mas resignada nunca! Foi capaz, sim, de tirar energia do sofrimento e como escreveu
A partir de agora vou extrair o essencial de tudo com o meu espírito e guardá-lo para tempos de vacas magras.
Se Deus não me ajudar mais, nesse caso hei-de eu ajudar a Deus.
Saberemos todos os caminhos que em nós se abrem ao entendimento da condição humana? Da sua índole? Saberemos nós perdoar-nos para que possamos perdoar os outros?
Saltam-me os poemas à memória, e todos eles sabem que à beira do morrer se descobre a paz da vida, e na mochila que connosco há-de partir em frutos e cereais vocacionados ao indizível sossego, digo, que mesmo que expressão alguma de desgosto humano não me seja alheia, que o absoluto possa conter em si o bem e o mal
Uma pessoa deve ser a sua própria pátria
e estar preparada para todos os inícios, acrescento, mesmo que eu não saiba como, mesmo que esteja eu num descampado de mim, saiba a minha mão por ela, que a estendo para ti.