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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SOMBRAS NUMA FOTOGRAFIA


   Em cima: Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira. Em baixo: António Pedro, Alexandre O’Neill e João Moniz Pereira


Na vida de Alexandre O’Neill há uma fotografia tirada em maio de 1948 no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, que simboliza um tempo em que coincidiam fatores contraditórios, mas plenos de sentido. A ditadura persistia, apesar dos ventos que sopravam na Europa e no mundo. Mário Cesariny, José-Augusto França, Marcelino Vespeira, António Pedro, O’Neill e João Moniz Pereira constituem o grupo. Alexandre faz-se representar provocatoriamente com um osso a sair da manga direita do casaco, como marca de controvérsia. O momento é, no entanto, fugaz. Maurice Nadeau escrevera a Histoire du Surrealisme no fim da Guerra. O’Neill, Cesariny, António Domingues e Moniz Pereira formaram, entusiasmados, o Grupo Surrealista de Lisboa, mais de vinte anos depois do manifesto de André Breton de 1924. Havia que aproveitar a oportunidade para trilhar caminhos novos.  A Ampola Miraculosa, um romance-colagem, marca o contributo de Alexandre O’Neill para o movimento, preocupado com a reconstrução das palavras, enquanto Cesariny tratava do domínio das representações. Mas Cesariny e Moniz Pereira abandonam o grupo e o poeta de No Reino da Dinamarca encontra uma vocação própria (“Impossível tomar o íngreme caminho / da aventura mental”). Continuará, no entanto, atento a tudo de essencial que se fazia e escrevia.


A sua fábrica poética apresenta-se como inesgotável. Cada neologismo representa um modo de fazer da ironia uma denúncia da vidinha pobre e desprezível. “Às duas por três nascemos, / às duas por três morremos. / E a vida? Não a vivemos” (Poemas com endereço, 1962). Não se tratava apenas de ver a superfície, havia que ir ao fundo. “Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós.” (Feira Cabisbaixa, 1965). E por mais que se cite, ficamos sempre a pensar. É uma marca indelével. Como não procurar os símbolos muito nossos? O exemplo de Belarmino tornava-se um modo de nos entendermos melhor – “pugilista e poeta, campeões com jeito / e amadores da má vida”. Estava-se, afinal, num país relativo: “País purista a prosear bonito, / a versejar tão chique e tão púdico, / enquanto a língua portuguesa se vai rindo, / galhofeira, comigo. (…) / País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano. (…) / A santa Paciência, país, a tua padroeira, / já perde a paciência à nossa cabeceira” (id.). Portugal está sempre presente na sua reflexão, sem ilusões e sedento de ironia. Vinham à lembrança os encontros com Pascoaes no Café Central de Amarante. Longe das influências que lhe quiseram apontar, o poeta sempre deixou dito que mais do que Nicolau Tolentino ou do que o Abade de Jazente (hipotéticas sombras) havia que cuidar da realidade concreta e das suas particularidades. “Talento? / Tolentino? / Tolos.” O excesso e o divertimento eram necessários. E António Carlos Cortês tem razão quando salienta “que a originalidade de O’Neill passa pela pesquisa sobre um idioma que o poeta desconstrói e redescobre” – do amor ao humor, na melhor tradição do nosso lirismo. “Quanto a esse Tolentino, esse faceto, / devo dizer que nada lhe roubei / mas que podia ser seu neto” (id). Afinal, ao pesquisar a língua, do que se tratou sempre foi de tentar descobrir quem somos. 


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  

De 5 a 11 de dezembro de 2022


No centenário de José-Augusto França recordamos os passos fundamentais da sua vida como referência fundamental da cultura portuguesa.


HOMENAGEM DA UNESCO
Quando a então Diretora-Geral da UNESCO, Irina Bokova, homenageou José-Augusto França, em 2012, na passagem dos seus noventa anos, sublinhou o que representou um reconhecimento internacional da maior justiça. Disse então: “Grande historiador, crítico de arte e escritor prolífico, os trabalhos de J.-A. F. alargaram consideravelmente o nosso olhar sobre os séculos XIX e XX, em particular sobre a criação artística em Portugal e na Europa. Especialista mundialmente reconhecido na arte portuguesa, autor de um livro fundamental sobre o Romantismo em Portugal, o Professor França teve um papel esclarecedor sobre as origens da nossa própria modernidade, explorando algumas das mais importantes fases da história da civilização europeia. A sua obra é testemunho de uma infinita curiosidade pela cultura sob todas as suas formas: arte, literatura, teatro, cinema, alargando as fronteiras de qualquer destas disciplinas. A sua paixão e o seu empenho ressoam no coração das atividades da UNESCO, mostrando de maneira brilhante a importância da cultura para a compreensão da sociedade em geral”. O percurso e a obra de José-Augusto França merecem uma análise circunstanciada, nos diversos campos em que desenvolveu atividade. Quando hoje relemos “Une Ville des Lumières: la Lisbonne de Pombal” compreendemos a importância do que ocorreu na sequência da catástrofe de 1755, na profunda renovação do urbanismo, nos alvores da chamada idade contemporânea. Como nos casos de S. Petersburgo e de Washington, D.C., na reconstrução global da cidade de Lisboa deparamo-nos com a antecipação de um tempo no qual emergiu uma nova conceção e organização das sociedades. Os três casos são, assim, considerados internacionalmente como modelares e o caso da capital portuguesa assume um especial significado por se tratar de uma sociedade destruída, que foi referida por Voltaire e Kant, e para a qual houve capacidade para começar de novo.


A RECONSTRUÇÃO DE LISBOA
O processo de planeamento e reedificação de Lisboa foi estudado criteriosamente pelo historiador, que afirmou: “A sua criação tornou-se possível graças a uma legislação que soube ligar o facto urbanístico ao facto político, dentro duma visão global onde se verificam perspetivas sociais e económicas, tanto como culturais e ecológicas. Entender a cidade como um todo foi a razão de ser do fenómeno sócio-cultural pombalino, num processo de prática coletiva ligado ao passado tanto quanto ao futuro, à tradição tanto quanto à modernidade, necessários ambos para a definição de um discurso ideológico coerente. Dentro dele, o interesse público era devidamente sublinhado, novo valor que uma nova classe encarnava, com uma nova função. Tal função expressou-se na ‘Praça do Comércio’, na sua monumentalidade tanto como no seu nome, ambos adequados ao papel simbólico, senão mítico exercido no quadro duma sociedade reformada por via iluminista”. A compreensão da obra complexa de Pombal aliou-a José-Augusto França ao estudo do que se seguiu a esse segundo terramoto, que foi a edificação de uma nova cidade. Como ficaria demonstrado no extenso estudo sobre o Romantismo, o estudioso procurou olhar a realidade social, económica e cultural de Portugal em termos complexos e dinâmicos – procurando olhar a modernização a partir das raízes pré-existentes, articulando a tradição e as resistências conservadoras às forças e intenções modernizadoras, bem como aos seus resultados. E a Lisboa pombalina nasceu dos esforços conjugados de três gerações diferentes e de três perspetivas geracionais, representadas por Manuel da Maia, um velho general com mais de oitenta anos, que procurou “acordar” o antigo e o moderno; por Carlos Mardel, vindo de fora, para quem o barroco “ganhara desinências de elegância cosmopolita” mais moderna, e por Eugénio dos Santos, falecido jovem, esgotado de trabalho, para quem era necessária uma cultura nova adequada às circunstâncias. Maia representou a transição de dois séculos, Mardel, o fim do primeiro quartel de setecentos e Eugénio dos Santos, os meados racionais do século.


Se virmos bem, o percurso de vida de J.-A- França foi feito sempre com larga intervenção no campo da cultura, designadamente no período surrealista, na Galeria de Março e em “Unicórnio” e seguintes, representando na escrita e na historiografia a capacidade de ligar o pensamento e a ação. A análise pioneira do Romantismo, considerado com um longo período corresponde a essa ambivalência criativa. Afinal, o caminho português obrigaria a entender a História, desde os prolegómenos iluministas de Pombal, da relevância das guerras peninsulares até às origens do liberalismo, da Revolução de 1820 à vitória liberal de 1834, início do processo romântico português, a culminar em 1880, “no momento em que se caracteriza uma viragem da sociedade portuguesa, e onde sobretudo esta sociedade toma consciência dos seus próprios valores – e da sua própria falência”. E as datas charneira são 1835, 1850, 1865 e 1880. E é neste ponto que o historiador passa do reconhecimento da importância do naturalismo oitocentista, com os seus avanços e recuos, para o seu esgotamento e para a génese do modernismo do século XX. E não por acaso Rafael Bordalo Pinheiro surge como referência especial, na transição, ao caricaturar o romantismo que decai e se transforma. E são 1915 e “Orpheu” que emergem no novo século XX com intensa energia – na heteronímia de Fernando Pessoa, ao lado de Amadeo de Souza-Cardozo, “o Português à Força” e de Almada Negreiros, “o Português sem Mestre”.


UM AUTOR MULTIFACETADO
A obra rica e multifacetada de escritor leva-nos ao romance, de que é um exemplo “A Bela Angevina” (2005), baseado numa estada de Eça de Queiroz no Hotel du Cheval Blanc, em Angers, onde poderia ter encontrado uma jovem, cuja fotografia conhecemos. Tê-la amado e sido amado por ela, cerca de 1880? J.-A. França cria esse encontro, com base em documentação conhecida e também imaginada, numa história atraente que passa por Paris, Bristol, Lisboa e sobretudo por Angers, onde Eça teria escrito o “Mandarim”, enquanto ia andando às voltas com “Os Maias”. A biografia do historiador de Arte é significativa – professor da Universidade Nova de Lisboa, presidente do Centro Nacional de Cultura (1974-76), do Instituto de Língua e Cultura Portuguesa (1976-79), diretor da revista Colóquio – Artes (1971-76), diretor do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian de Paris (1983-89), membro do Comité do Património Mundial (UNESCO) (2001-2005), presidente do Conselho Literário do Grémio Literário, sócio emérito das Academias das Ciências e Nacional de Belas-Artes (a que presidiu em 1976-79), presidente de honra da AICA – Association Internationale des Critiques d’Art. Em qualquer destas funções teve sempre um papel fundamental. Ao recordarmos as ações que desenvolveu é impressionante o que nos legou como chave essencial dos tempos que atravessou e soube sempre interpretar de modo inexcedível. Não é possível conhecer a história da Arte portuguesa dos dois últimos séculos sem estudar o que o mestre nos deixou, com o rigor e a sabedoria que são dignos da melhor memória, num permanente diálogo entre o autor e o crítico, como na luta entre Jacob e o anjo, capa do seu derradeiro livro.     

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

De 11 a 17 de outubro de 2021


A publicação “Unicórnio” a “Pentacórnio” (1951-1956) dirigida por José-Augusto França constituiu um marco importante na renovação do panorama cultural português num tempo de provação e ausência de liberdade de imprensa.

 

UMA LEMBRANÇA INESQUECÍVEL
Jamais esquecerei a tarde em que, na Biblioteca Municipal de Tomar, no Bibliotecando, em maio de 2016, José-Augusto França e Eduardo Lourenço se encontraram para debater “Os Outros e Nós”. Com o método desafiante habitual (lembremo-nos do ensaio de Unicórnio), o ensaísta de “A Nau de Ícaro” referiu aos seus ouvintes: “A Europa nunca existiu, nem sei se alguma vez existirá como ator dela mesma”. Afinal, os países que habitam este espaço comum sempre estiveram a braços com “uma espécie de guerra civil permanente, desde os Romanos, até hoje praticamente”, na medida em que cada uma das nações com maior poder, foi à vez, tentando dominar as outras para hegemonizar o continente… As ideias foram-se desfiando e chegado o ponto de J.-A. França falar usou o tom irónico, que lhe era habitual, afirmando que “nós somos sempre os outros. É algo reversível e reflexo. Contudo sendo sempre os outros nós, temos de ter muito cuidado com os outros, naturalmente, e esse cuidado nós não temos tido”. Em nome desse cuidado, lembrou que o Grémio Literário, a cujo Conselho Literário então presidia, foi a única instituição que assinalou e debateu a conquista de Lisboa pelos mouros em 713, lembrando que “a língua portuguesa é a única falada na Europa que usa todos os dias uma palavra ‘o oxalá’ (se Deus quiser), ou seja nós estamos a falar árabe sem dar por isso, e vivemos muito bem e muito pacificamente. Em suma, nós somos sempre os outros”. O diálogo que se estabeleceu nessa tarde, prolongou-se na viagem que fizemos juntos entre Tomar e Lisboa. Foi animada a conversa, entre a perplexidade pela intolerância na cena internacional e a lembrança de episódios passados, entre enganos e genuínos encontros inesperados, a ilustrar o difícil tema que nos levou de Almada Negreiros, “Português sem Mestre” até Mário de Sá-Carneiro e a Bernardo Soares, já que identidade e alteridade são palavras que alternam e coexistem sempre…


TROCA LIVRE DE IDEIAS
Quando tive a notícia de que José-Augusto França partira, veio-me à memória essa tarde inesquecível e irrepetível – a lembrança do prazer verdadeiro em conversar, como troca livre de ideias. Por isso o encontro continuará a acontecer na nossa mente. E estou também a ver uma pequena corrida surpreendente e lépida do jovial professor a atravessar Avenida Infante Santo, apesar dos 93 anos…  José-Augusto França foi um pedagogo, homem do Renascimento, acima de tudo. A sua obra é fundamental e indispensável – e sê-lo-á por muito tempo. Contudo, ao acompanharmos a sua vida muito fecunda, encontramos uma complementaridade evidente entre o académico, o ficcionista, o cidadão e o protagonista do seu tempo. Pessoalmente, muito ganhei sempre com o seu convívio e a sua amizade. E testemunhei, enquanto teve saúde, o evidente entusiamo de viver, de pensar, de abrir pistas de ação e reflexão. Sentimos intimamente o pioneirismo do Centro Nacional de Cultura, que França salvou depois de 1974, como Presidente, graças ao Mestrado de História da Arte e ao projeto delineado com Fraústo da Silva – que permitiu uma nova Fénix Renascida com Helena Vaz da Silva. Do mesmo modo, devotou ao Grémio Literário um especial apreço, solidariamente com as suas grandes referências históricas. E sentimos intensamente a destruição da última casa de Garrett – que era um exemplo puramente romântico, escolhido com muito amor pelo genial poeta. A fotografia que dele fez Fernando Lemos é uma referência marcante de uma série de qualidade internacional. É um justo reconhecimento de quem compreendeu, como poucos, o sentido da modernidade. Leia-se o texto sobre Unicórnio, etc. “Unicórnio nasceu na ‘Brasileira do Chiado’, onde muitas outras coisas nasceram ou se geraram, desde meados dos anos 10. Nos seus anos 50, foi já em fim de época, nas transformações de então da cidade, do Chiado. Em 1960 já nada lá podia nascer. Fora o Orpheu, fora o Nome de Guerra e os quadros de 1926, fora a Variante de 41, de António Pedro, fora o Grupo Surrealista de 1949, já em terceira geração da modernidade pátria que então terminava. Os novos quadros de 1971, com um grande balcão de pastelaria no café encolhido, foi já um post scriptum sem recuperação possível e ainda menos o Pessoa-à-Porta, em anos 70 ou 88, de outra cidade ou não cidade. (…). Na ‘Brasileira’, então, veio a ideia do Unicórnio, por efeito do convívio com os amigos surrealistas, quando ainda, nas mesas do café, se convivia, lendo o Diário de Lisboa, engraxando os sapatos, pagando a bica com gorjeta de dois tostões para acertar a conta, e aguardando horas do elétrico para casa. Era em 1951”. Tornava-se necessário contornar a censura (“num país não-legal”, com “um capitão pequenino, reformado, de óculos”) e por isso a série intitulou-se antologia, com edição de autor, sem periodicidade e com título mutante, “como era mister, para iludir a continuidade”. Durou até 1956, até Pentacórnio. Os colaboradores mais assíduos foram, além de J.-A. F., Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Eduardo Lourenço e Fernando de Azevedo, em todos os números, Delfim Santos, António Pedro e Fernando Lemos em quatro, e Vespeira em três. António Sérgio escreveria no último número “Em torno do Problema da Importância dos Escritores na Sociedade Portuguesa”. O projeto terminaria com a decisão pacífica de finalizar a “empresa”, com reconhecimento de que a revista falhara. Não concordou José Régio, numa polémica bem curiosa. “Ao contrário do que é costume a posição crítica era do autor da obra e a defesa dela cabia ao seu crítico, que nela, uma vez ou outra, colaborara também, simpaticamente – não exatamente do mesmo lado de uma ideia da cultura portuguesa, mas no mesmo sítio dela”.


UM PORTUGAL ABSOLUTAMENTE MODERNO? 
Poderia ser Portugal “absolutamente moderno”, na fórmula de Rimbaud? Ao menos, mereceria sê-lo. A série Unicórnio foi uma tentativa que, na apreciação do principal promotor não teve sucesso. Depois da tentativa surrealista de finais de 1940 ou da publicação do romance Natureza Morta (1949), na procura da superação do presencismo e do neorrealismo, José-Augusto França avançou nos anos cinquenta pelos caminhos de um terceiro modernismo, apesar de tudo há cinco números, que hoje merecem leitura circunstanciada, mas a paciência esgota-se. “Se o próprio relógio não satisfaz a necessidade do tempo europeu que alguém sinta, consulte-se outra máquina e vá-se à Europa consultá-la”. É o caminho que seguirá, como bolseiro do Estado francês em 1959, a trabalhar como o historiador consagrado Pierre Francastel, doutorando-se em História com a tese “Une Ville des Lumières: la Lisbonne de Pombal” (1962) e em Letras com a tese “Le Romantisme au Portugal” (1969). O ativista abriu caminho ao exemplar pedagogo. Não é possível compreender a arte e a cultura em Portugal, em diálogo com o mundo, no Pombalismo e nos séculos XIX e XX sem conhecer e estudar a obra de José-Augusto França. Lembre-se, na Fundação Calouste Gulbenkian, que tanto lhe deve, a direção exemplar da Colóquio – Artes (1971-1997), bem como da Delegação em França da instituição (1983-89). Num trabalho persistente e único de estudo e partilha, segundo uma visão larga da cultura portuguesa, para além das fronteiras físicas, buscando Portugal fora de Portugal, como Ulisses em demanda da sua Ítaca, José-Augusto França contribuiu decisivamente para a democracia como fator de modernidade. Disso não haja dúvidas.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

REFERÊNCIA A JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA


A morte muito recente de José-Augusto França justificará esta referência aos principais momentos da sua dramaturgia, sem embargo de desenvolvimentos que posteriormente por certo se farão: pois com efeito, a vastidão, variedade mas sobretudo a qualidade da sua obra implica uma posterior e mais vasta pesquisa, sendo certo que sobretudo marcou, e muito, como figura de intelectualidade e criatividade no que respeita à literatura e à cultura portuguesa.


E importa desde já referir que a bibliografia que a cultura portuguesa lhe deve marcará qualquer tipo de abordagem. Impõe-se pois uma pesquisa mais vasta, designadamente mesmo no que respeita à criação dramatúrgica em si mesma considerada.


Seja pois permitido um artigo sobre a dramaturgia criada, neste caso, e para já, a partir do que escrevi acerca da sua primeira peça, “Azazel”, pois concilia de forma notabilíssima o surrealismo com uma raiz clássica que marcou a vasta obra de José Augusto França: menos lembrado como dramaturgo, ainda assim encontramos na sua vasta criação literária um sentido de qualidade/modernidade que como tal deve ser também lembrado. E que justificará outras abordagens que certamente faremos acerca da criatividade literária e artística de José-Augusto França.


E precisamente: nesta primeira e breve abordagem, cito o que escrevi sobre a conciliação estilística alcançada em “Azazel”, peça que concilia de forma notabilíssima o surrealismo com a vocação cénica inerente e exigente.


Vejamos então o que escrevi na “História do Teatro Português”.


“Azazel”, datada de 1956, serve de matriz ou valor referencial entre a surrealismo e a tradição clássica inerente a toda a evolução do teatro em si mesmo considerado. Tal como já tive ensejo de referir, a peça em si mesma mergulha no mito que serve de referência à conciliação/atualidade da cosmologia e no mito inerente à própria inovação surrealista. 


O “bode expiatório” coloca-nos perante um conflito de culpa e responsabilidade em termos próximos de certo existencialismo e numa toada dramática que faz lembrar, em certa medida, os valores correspondentes – liberdade, vinculação, responsabilização – que suportam o ciclo tebano. Com todas as   diferenças e sem a determinação que se confunde com o destino.


E acrescento aí que há algo de clássico na própria construção da peça: a personagem Maria tem algo de Antígona, mas também de Isménia numa simbiose intelectualmente densa e interessante…


Voltarei certamente ao tema, evocando estudos, abordagens e citações de José-Augusto França em referências feitas a propósito de temas e autores diversos, designadamente citados por mim na “História do Teatro Português”. E isto porque muito o citei e com os estudos e livros dele muito beneficiei!...


DUARTE IVO CRUZ

A VIDA DOS LIVROS

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De 15 a 21 de Junho de 2015

«Diálogo entre o Autor e o Crítico» (Editorial Presença, 2015) de José-Augusto França é uma boa surpresa. E Hélder Macedo é claríssimo no reconhecimento: «Este “Autor” que é também “Crítico” encarrega-se de facultar aos leitores as necessárias informações sobre a sua obra literária e, consequentemente, sobre si próprio.

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JACOB E O ANJO

A ilustração da capa é significativa, Jacob luta com o Anjo, na interpretação de Delacroix na igreja de Saint-Sulpice de Paris. E, lendo o diálogo que o livro contém, descobrimos em Israel, o vencedor do anjo, o Autor e na misteriosa figura alada o Crítico. Acontece que neste livro os dois antagonistas são uma e a mesma pessoa, que usa a lucidez (citando de quando em vez os críticos que falaram ou escreveram, como Ernesto Rodrigues tantos outros) para nos revelar uma vocação romanesca, assente numa serena erudição, natural, agradável e sempre pedagógica… E que bom seria se outros escritores também o tivessem feito. Porque raras vezes terá havido um escritor que tão detalhadamente se revele como ele». É verdade. Mas estamos diante de um especialíssimo Autor, que tem experiência bastante para se colocar nos dois pratos da balança – uma vez que fez ofício de vida a realizar a crítica, como historiador de arte de primeira água, tendo-se assumido como ficcionista em continuidade e coerência com o uso do bisturi analítico. De facto, vem a propósito, como faz o prefaciador, H. Macedo, lembrar Paul Valéry quando este diz que «um escritor clássico é um criador que contém em si um crítico que participa na sua criação». E em J.-A. França isso é por demais verdadeiro, porque sempre as duas qualidades de encontram em abundância na personalidade criadora do autor. E, assim, o melhor e mais original do que escreve em ficção não cabe nas coordenadas clássicas. Por exemplo, «A Bela Angevina» (2005) e «A Guerra e a Paz» (2009) tratam do que foi e sobretudo do que poderia ter sido. E o autor assume essa sua veia de procurar ir além do real, fiel a uma coerência que recorda as suas preocupações originais de alguém atento ao movimento e às inquietações existenciais.

 

OBRA CRIATIVA DE CULTURA PARTILHADA
Como ainda afirma o prefaciador: «num tempo de banalidades pseudoculturais esta é uma obra de criativa cultura partilhada como um valor comum e permanente. Oxalá todos deem por isso». E entende-se muito bem a epígrafe que o autor escolhe, do Padre António Vieira: «O livro sendo o mesmo para todos, uns percebem dele muito, outros pouco, outros nada; cada qual conforme a sua capacidade»… E não se pense que se trata de uma obra com chave acessível a muito poucos. Não. Mesmo que se não conheçam as obras de que o Autor fala, em diálogo com o Crítico, podemos usufruir uma reflexão muito útil sobre o ato criador, sobre como se constrói o mundo romanesco, contando com diversas matérias-primas, a começar na vida vivida e a continuar no legado que recebemos dos clássicos. Que é a criação senão contante recriação? E sente-se a importância do entretenimento na função criadora. Sim, a palavra entretenimento é pertinente nesta «grande tapeçaria de invocação tolstoiana», na expressão de Eduardo Lourenço, que refere a tentativa de um «retrato de uma longa vida enredada em labirintos e fantasmas e numa paixão pela mitologia cultural de um século de fascínios e horrores». Se houve neutralidade colaborante e não houve invasão, na segunda grande guerra, em Portugal, o certo é que tudo aquilo (que o romance documenta) poderia ter existido… E tal permite perceber o que aconteceu e não aconteceu depois… «Tudo é real, meu caro (diz o Autor), ou ficção, que tanto faz, na ilusão, em suma, de toda a literatura que se pratica! E os nomes das pessoas só, afinal, têm valor onomástico, nos sítios em que se encontrarem ou os ponham…».

Mas temos de ir atrás, até «Natureza Morta» (1949). Aí com Júlia, singular personagem feminina, o autor «experimenta (…) a expressão do moderno sentimento de angústia em interdependência com uma realidade quotidiana» (que Tomás Ribas notou muito cedo), numa espécie de «superação simultânea dos postulados estéticos do presencismo e do neo-realismo» (como verificou Miguel Real), quando também se poderia falar de influência das análises intimistas oriundas da «Presença», como fez o autor de «O Labirinto da Saudade»… «Mina e as Consequências» (2011) irá retomar o tema da mulher com especial cuidado e realce.

UM MUNDO ROMANESCO
E vêm-nos à memória as outras nossas heroínas do romance – a Luísa do Basílio, a Morgadinha dos Canaviais, a Margarida Dulmo de «Mau Tempo no Canal». Mas Maria Eduarda é talvez a única heroína do romance nacional, depois da «Menina e Moça» de Bernardim… Sendo marcante, Mina Van Ghel de J.-A. França, Urbano Tavares Rodrigues identifica-a com a aristocracia do Sentir e Eduardo Lourenço com uma beleza triunfante e natural. É o feminino singular. Por outro lado, há ainda o caso de «Azazel», experiência teatral (1956) – a fazer lembrar o «bouc emissaire» de René Girard -, de que Maria Helena Vieira da Silva gostou, ao contrário de Sena e Casais Monteiro, mas que José Blanc de Portugal melhor compreendeu («o comermos os nossos pecados convinha à sua profunda consciência católica – tanto quanto à minha, digamos, “existencial”»)… Muitos outros exemplos poderíamos dar. Percebemos, por exemplo, que em «A Bela Angevina» há a ilustração de que o romance entrecruza sempre a realidade e a imaginação. Aí se conforma, de facto, o nascimento de «Os Maias» (Ernesto Rodrigues dixit). E se Faulkner dizia que o romance por excelência era «Anna Karenina», J.-A. França não tem dúvidas em acrescentar, no caso português, que é de «Os Maias» que devemos falar. A encruzilhada aí está, gerando-se a complexidade e o carisma de Maria Eduarda. Campos Matos fala de processo de gestação da personagem. E assim Tolstoi está bem presente nos romances do Autor, onde porventura a sua força criadora melhor se manifesta. E se Eça é, naturalmente, referencial e histórico, Almada Negreiros (amigo do Autor) é protagonista contemporâneo de «José e os Outros» (2006), «um romance individual» ou «um romance social “dos anos vinte”, “janela sobre Lisboa” da época, como foi escrito, «ficção das (des)ilusões modernistas de 1920»… O livro quase passou despercebido, mas merece atenção primordial – respondendo o Autor que a razão de ser dele é uma justificação à Almada: 1 mais 1 =1, que poucos compreenderam. Fernando Pessoa não é subalternizado, o que se passa é que o fulcro está na teatralidade e na singularidade de Almada Negreiros, mestre da «Invenção do Dia Claro», que o Autor conheceu e de quem foi amigo (depois de uma célebre conferência no Centro Nacional de Cultura, pouco depois da fundação deste em 45). «Almada propõe-nos a clareza do “teleon”, o número perfeito dos Antigos, e em aforismos o exprime…Assim é o mito!». Em suma, dirá o Autor: «as personagens que encontrei ou com que me encontrei, mesmo que sejam “históricas” como Eça ou Almada, é a verdade delas que conta»…


Guilherme d'Oliveira Martins