Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quem se habituou a ler o “Verdadeiro Almanaque do Borda d’Água” sabe que o ano de 2025 se inicia sob os auspícios do planeta Júpiter, normalmente associado ironicamente ao humor, à verdade, à sabedoria e à confiança. E lá para o fim de janeiro, teremos o Ano Novo chinês, sob a evocação da Serpente. Contudo, defrontamo-nos com muitas dúvidas e a incertezas. Estamos perante a mesma perplexidade descrita por Stefan Zweig, no seu inesquecível e perturbador O Mundo de Ontem – Recordações de um Europeu (1942). “Tudo na nossa democracia austríaca quase milenar parecia construído para durar sempre, sendo o próprio Estado o garante supremo dessa estabilidade. (…) O sentimento de segurança era o tesouro mais desejado por milhões de pessoas o ideal da vida comum”. Todavia, com a eclosão da Primeira Grande Guerra, em 1914, subitamente, tudo se precipitou, sem que os analistas supostamente mais conhecedores pudessem prever. Nem as relações familiares entre os monarcas e imperadores, nem a ilusão de que a solidariedade proletária impediria um confronto bélico puderam impedir a cegueira bárbara, de ferro e fogo, insuspeitada nos meios sofisticados.
Hermann Broch descreveu lucidamente, no início dos anos 30, a evolução desse tempo, de um modo que nos impressiona, em Os Sonâmbulos. Tudo começa em 1888, em plena Belle Époque, depois da guerra franco-prussiana, em torno da personagem romântica de Joachim von Pasenow, das suas dúvidas e hesitações em tudo na vida; continuando, em 1903, com August Esch, um livreiro luxemburguês que se move nas margens do Reno, mas que se sente inseguro num mundo de anarquia e decadência, que desrespeita os valores tradicionais nos negócios e nos amores; e termina no ano de 1918, quando a guerra devastadora fez os seus efeitos, num ambiente de desordem e de vazio de valores. Wilhelm Huguenau, comerciante de vinhos alsaciano, simboliza um estranho realismo que é o ponto zero dos valores, o egoísmo sem qualquer forma de remorso. As três histórias ligam-se num pesadelo e num sonambulismo absurdos, dominados por um vazio de valores éticos, pela tragédia da guerra, pelo salve-se quem puder, pela derrota alemã e por uma tentação totalitária que profeticamente se anuncia. Usando a mesma ideia, o historiador Cristopher Clark em Os Sonâmbulos – Como a Europa entrou em Guerra em 1914 (Relógio d’Água) vem dizer-nos que foi a cegueira de muitos governantes que determinou um conjunto de decisões desastrosas que culminaram numa guerra de violência inaudita, que teve como consequência a queda de quatro impérios e a abertura de um período de ressentimento e de terror que duraria até 1945. Ao relermos tais obras apercebemo-nos de que tudo pode acontecer, perante a acumulação de erros evitáveis. E hoje o adensar das nuvens negras em tudo se assemelha a esses outros tempos. Acumulam-se ódios, perde-se a memória dos valores éticos e dos compromissos necessários. Miguel Monjardino tem razão em falar de um vazio histórico e de uma cegueira imediatista. E em lugar da partilha de responsabilidades cívicas inventam-se tótemes ou falsas tábuas de salvação. A tentação das vitórias imediatas e a vertigem das novas conquistas territoriais escondem a acumulação de fatores que destroem a confiança e a força mediadora das instituições.
Sou leitor fiel do «Borda d’Água», publicação antiga que vai no número 95, neste novo ano bissexto de 2024, um precioso auxiliar para quem, seguindo o sábio conselho de Voltaire, se ocupa do cultivo do seu jardim. Falo de jardim em sentido próprio e metafórico, uma vez que o jardineiro é o melhor símbolo da cultura como realidade viva, na expressão de Zygmunt Bauman sobre as limitações da atual “modernidade líquida”. É sempre bom recordarmos que em janeiro se faz a lavoura das terras e a preparação das culturas de inverno, que em fevereiro as terras devem ser lavradas para a sementeira da Primavera ou que em março se prepara o milho e a batata de regadio e, se não há geada, já se pode pensar na semeadura do trigo, da aveia, do centeio e da cevada. E em tudo isto é importante seguir com cuidado as fases da lua…. Eis como devemos ser menos desatentos relativamente à vida da natureza…
Em cada número desta publicação benfazeja há sempre um “Juízo do Ano”, que cada um interpretará à sua maneira. Nestes dias de preparação do novo ano e de organização da agenda, comecei por registar as sábias palavras de Lídia Jorge no “Público”. “Tenho consciência da fragilidade absoluta dos regimes democráticos”. Esta consciência obriga-nos a uma atenção redobrada. A democracia é um sistema de valores, obriga à ética do serviço e da responsabilidade, e pressupõe o integral respeito dos direitos humanos, na sua complexidade. Se quiséssemos uma sociedade perfeita, ela poderia ser totalitária. Procuramos a dignidade de seres humanos livres e iguais. Longe das boas intenções, de que o inferno está cheio, devemos cuidar da cidadania inclusiva, da igualdade e da diferença e do bem comum, que não se confundem com uma terra de ninguém, em que à conta do relativismo dos valores podemos chegar ao desrespeito do pluralismo. Como disse Isaiah Berlin, “Tudo é o que é: liberdade é liberdade”. E o tempo que vivemos esquece muitas vezes os espaços de cada um, como lugares de respeito mútuo… Fala-se de democracias iliberais, como se estas não fossem grotescas contradições e impõem-se leituras unilaterais que são, de facto, excludentes, porque os extremos se tocam. A liberdade e a democracia são como as flores frágeis. Que o digam os jardineiros, porque todos os cuidados são poucos.
Há dias deixou-nos Jacques Delors. Conheci-o antes de se tornar um mito. Foi a sua militância cristã e cívica que acompanhei desde os anos setenta. Conversámos pessoalmente na passagem dos anos noventa para 2000. Falámos então sobre a atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier, sobre a Educação de qualidade para todos no século XXI (a necessidade exigente de aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser) e sobre as questões candentes da democracia e da construção europeia, que muito o preocupavam, como o alargamento, o défice democrático da União, a subsidiariedade, a representação dos cidadãos e o recuo na coesão económica e social. Em outubro de 2000, celebrámos na UNESCO em Paris, com Paul Ricoeur e Guy Coq, os cinquenta anos da morte de Mounier. É marcante o seu exemplo e o conjunto de avanços que conseguiu na União Europeia como: a consagração da Coesão Económica e Social, a criação do programa Erasmus de mobilidade de estudantes, o Tratado de Maastricht, a adoção do Euro como moeda europeia. Tratou-se de cumprir: “a concorrência que estimula, a cooperação que reforça e a solidariedade que une”. Nas Semanas Sociais de Braga, em 2006, Delors disse que “alguns querem impor erradamente a tese segundo a qual o social seria um travão ao crescimento e à competitividade.” A economia ao serviço da pessoa humana é “crucial”. Por isso, não podemos “aceitar que apenas os mecanismos do mercado determinem ao mesmo tempo o útil e o justo” – ou seja, a economia de mercado não pode tornar-se sociedade de mercado. No juízo do ano, fica a memória de um compromisso cívico democrático, sério e determinado.
No começo do ano, na velha tradição do Borda d’Água faz-se o juízo do ano.
I. Começo pela tremenda Pandemia Covid-19. Sinto que há condições esperançosas para 2021. A existência de vacina não resolve ainda o problema, mas permite aumentar as condições de imunidade. Portanto, olhando a bola de cristal, vejo que a segunda metade do ano vai permitir termos condições favoráveis para o mundo recomeçar a girar sem grandes solavancos. No entanto, há sete questões fundamentais, a não esquecer: (i) Não devemos baixar a guarda – a prevenção continua a ser a grande solução ao nosso alcance; (ii) a máscara é antipática, mas tem de ser usada devidamente – sem o nariz de fora e sem ficar pela barbela; (iii) A lavagem das mãos é essencial, e deve ser repetida amiúde; (iv) a distância social tem de se fazer; (v) o arejamento dos lugares onde estamos é preciso; (vi) nunca devemos facilitar, temos de estar sempre de pé atrás; (vii) procurar usar os meios que nos permitam comunicar uns com os outros… As condições são cumulativas, umas não devem esquecer as outras. E mesmo depois da vacinação, vamos ter de manter durante um período largo estas cautelas, uma vez que o vírus vai sofrer mutações e ainda vamos ter um tempo largo de jogos do gato e do rato ou da cabra-cega… E não esqueço o bom exemplo de Ignaz Semmelweis (1818-1865), o médico húngaro do século XIX, que percebeu como combater uma misteriosa febre pós-parto que estava a matar muitas mulheres numa enfermaria. A culpa era dos seus colegas que não lavavam as mãos. Foi, porém, incompreendido e acabou ostracizado num manicómio. Só depois de morto viu a sua posição reconhecida, quando Louis Pasteur formulou a demonstração científica sobre o efeito das bactérias na génese das doenças. Hoje, não há qualquer dúvida. O que importa é entender que as formas preventivas são aliadas da saúde.
II. Quem me conhece, sabe a minha tristeza por causa do Brexit. De facto, as dificuldades finais nesta negociação indesejável deveram-se à circunstância de haver britânicos que continuam a achar que o Império da Rainha Vitória ainda existe. Há muito que caiu e quando se negoceiam as pescas, por exemplo, não há outro remédio se não aceitar a globalização e a interdependência. Basta ler a Carta das Nações Unidas para o entender. Ninguém pode reivindicar a exclusividade da propriedade numa parcela do mar ou do globo terrestre. Leiam-se as opiniões sensatas e veja-se como não é possível esquecer que o grande mercado comercial do Reino Unido ainda é a Europa, que os mercados financeiros e os respetivos serviços não irão manter-se fieis a Londres, se as condições concorrenciais se degradarem, ou que os Estados Unidos não desejam ser uma colónia britânica… Agora, resta-nos esperar para ver as consequências efetivas de uma decisão tão absurda e imponderada… Continuarei anglófilo. Mas nada posso fazer. E espero que Mr. John Bull não se deixe dominar pela tentação da cegueira. Não sei francamente que se passará. Mas a incerteza será a regra, sobretudo se olharmos para a evolução da pandemia a somar à pressão interna das opiniões públicas, quando estas perceberem que o mundo de hoje é muito diferente do que existia no fim da Segunda Guerra… Releiam-se as palavras de Churchill em Zurique e perceba-se como o conceito de soberania partilhada é condição de paz e de sustentabilidade geoestratégica… Para já, quando tiver de fazer a revisão meu MG, vai ser uma carga de trabalhos… A ver vamos…
III. Uma última e boa notícia… Está marcado para 21 de outubro o lançamento mundial do próximo álbum das aventuras de Astérix. Nesse dia, serão postos à venda cinco milhões de livros da nova aventura, com publicação simultânea em Portugal e em vários países. Em ano de novo álbum, os autores Didier Conrad e Jean-Yves Ferri, os sucessores de Goscinny e Uderzo, revelam algumas pistas. Há uma protagonista feminina que vai complicar as vidas de Astérix e de Obélix, e que estará à guarda de centuriões romanos. Daí o pedido de "três voluntários para guardar a prisioneira" - que deve ser bastante simpática, pois toda a guarnição levanta a mão e se voluntaria. Há uma prancha inédita é muito mais explícita. Como diz Jean-Yves Ferri, estão lá várias pistas e afirma: "Antes de começar a trabalhar neste álbum, tinha pensado fazer viajar os nossos eternos irredutíveis até esta região que..." Não diz mais nada, afinal é tradição que as 48 páginas do álbum só sejam conhecidas exatamente no dia de lançamento. Aliás é normal haver uma alternância entre as aventuras passadas na aldeia e fora dela. Quanto ao desenhador Didier Conrad, que vive nos Estados Unidos, este acrescentou um desafio: " Ora reparem bem nos pormenores. Observem o desenho à esquerda e pensem um bocadinho!" Mas há várias informações nesta prancha que podem ajudar. A de que o druida Panoramix precisa de deixar a aldeia gaulesa e se ausentar. Ele acorda de um sonho e grita. Explica que "um velho amigo meu está a pedir a minha ajuda! Está a tentar contactar-me!. Deve ser grave. Ele não é do género de me importunar sem razão!" Se Obélix acha que Panoramix apenas está a inventar uma desculpa para não continuar o jogo, Astérix fica em dúvida sobre a importância do apelo do amigo. No entanto o druida garante que terão de viajar. Não sem antes preparar a poção mágica para se protegerem, e aí sim: "Partimos o quanto antes!" E a última pista é "a viagem é muito longa!". Este é o 39.º álbum das aventuras de Astérix, o quinto com assinatura desta dupla após Astérix entre os Pictos, em 2013, O Papiro de César em 2015, Astérix e a Transitálica em 2017 e A Filha de Vercingétorix em 2019. O novo álbum já está na fase final de conceção e, 60 anos após o aparecimento desta série de banda desenhada, regressa com um novo título depois de ter batido vários recordes no mundo editorial: 385 milhões de álbuns vendidos em 111 línguas e dialetos - em Portugal sai também em língua mirandesa. Temos assim um aliciante para o Novo Ano…