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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

  


   Minha Princesa de mim:

 

   Em carta anterior à minha última, já te falava de condicionantes que dificultam maior liberdade de interpretação do Corão e mais dinamismo progressista do Islão. Tal questão é também abordada por Michel Onfray:

 

   Tudo começa com um problema que deu lugar, na filosofia muçulmana, a abundantes debates: foi o Corão criado (tese mutazilita) ou é ele incriado (tese axarita)? Tudo decorre da resposta que se der a esta pergunta. Se o Corão foi criado, foi-o por homens que, mesmo inspirados por Deus, podiam ter-se enganado, porque é humano errar. Se não foi, é diretamente palavra de Deus; consequentemente, é verdade absoluta, e cada vírgula é vontade de Deus...  ...O mutazilismo permite tornar a razão em instrumento de leitura do Corão, porque faz dele um livro escrito pelos homens e podemos lê-lo com os mesmos olhos com que lemos Homero, enquanto o axarismo faz da fé o a priori necessário a qualquer leitura: devemos acreditar, ponto, parágrafo.

  
   E Onfray, conhecedor de correntes contemporâneas do pensamento islâmico, sabe como as muitas contradições detetadas entre passos do Corão - que não se explicam mutuamente, mas antes se excluem - têm justificado a orientação mais racional das escolas muçulmanas herdeiras do mutazilismo (que nasceu em Bassorá, no século VIII). E, em favor dela, cita também este trecho da sura III do Corão: «Há um só Deus, o Poderoso, o Sábio! É Ele que sobre ti faz descer o Livro. Neste encontramos versículos claros - a Mãe do Livro - e outros figurativos. Aqueles cujo coração se inclina para o erro agarram-se ao que é dito em figuras, pois procuram a discórdia e são ávidos de interpretações. Mas só Deus conhece a interpretação do Livro. Os que estão enraizados na Ciência dizem: "Nós cremos nele! Tudo vem do nosso Senhor!", mas apenas os homens dotados de inteligência dele se lembram.»

 

   Pessoalmente, pelo conhecimento que vou tendo de escritos de pensadores islâmicos do nosso tempo, creio que se vão afirmando - à margem e contra o fanatismo de muitos imãs e o terrorismo de alguns movimentos, e também governos, islamistas - correntes e escolas teológicas e sociais que se comprometem com a modernidade do islão e lhe descobrem uma versão universalista que já não assenta em qualquer império.

 

   Nesse sentido, também se impõe uma limpeza do nosso olhar para o mundo. E eu, que não subscrevo, nem a nomenclatura das civilizações que Huntington propõe, nem quaisquer teorias de conspirações ou da fatalidade de conflitos - mas antes e sempre insisto na procura e partilha de pontes e pontos de encontro - recorro aqui a um texto desse professor da Universidade de Harvard:

 

   O Ocidente é a única civilização que teve um impacto importante e por vezes devastador sobre todas as outras. A relação entre o poderio e a cultura do Ocidente e o poderio e culturas das outras civilizações é também uma das chaves do mundo civilizacional. Na medida em que aumenta o poderio das outras civilizações, a atração que apresenta a cultura ocidental esbate-se, e os não-Ocidentais ganham confiança nas suas culturas indígenas e vão-se implicando mais nelas. O problema central das relações entre o ocidente e o resto do mundo é por conseguinte a discordância entre os esforços do Ocidente - em particular da América - para promover uma cultura ocidental universal e a sua declinante capacidade para fazê-lo.

   A queda do comunismo exacerbou esse fenómeno, reforçando no Ocidente a ideia de que a sua ideologia democrata liberal teria triunfado globalmente e seria portanto universalmente válida. O Ocidente, particularmente os Estados Unidos, que sempre foi uma nação missionária, pensa que os não-Ocidentais deveriam adotar os valores ocidentais, a democracia, o livre-câmbio, a separação dos poderes, os direitos do homem, o individualismo, o Estado de direito, e conformarem as suas instituições a estes valores. Há minorias que abraçam estes valores e os defendem, no seio de outras civilizações, mas a atitude dominante, nas culturas não-ocidentais, antes vai do ceticismo à rejeição. O que parece universalismo aos olhos do Ocidente, parece imperialismo alhures.

 

   Estamos aqui em acordo. Mas isto que se disse não pode ser justificação para conflitos. Simplificando, direi que, tal como a cristandade europeia gerou iluminismo e laicidade, os ideais "ocidentais" de liberdade, igualdade, fraternidade, não impostos, mas simplesmente propostos, se poderão acasalar em sociedades e culturas que, como tudo no mundo, e nas nossa vidas, vão mudando, tomando sempre novas qualidades. Ou melhor: como diz, ao João Semana (Nicolau Breyner)médico agnóstico da série da TV com o seu mesmo nome, o padre reitor António (João d´Ávila), na hora em que ambos, gastos pela vida, morrem na igreja da vila que Júlio Dinis inventou para As Pupilas do Senhor Reitor: Os homens não valem pelo que pensam, mas pelo que amam...

 

   Mas, da "civilização ocidental", o que recentemente mais contagiou o mundo, outras culturas, foi o gosto do dinheiro, o culto das finanças, o prazer do consumo. A tal ponto que no dia-a-dia das vidas humanas já menos se apercebem fatores culturais de identidades e diferenças, mas cada vez mais motivos normalizadores de comportamentos económicos. Nesse sentido, à parte pormenores aparentes que os distinguem, o chinês médio, o carioca, o "yankee", o "alfacinha", têm condutas cada vez mais semelhantes, com as suas TV, os seus frigoríficos, automóveis, computadores e "net". Os mesmos desportos os entusiasmam e enchem estádios, e ei-los que escutam as mesmas músicas, da clássica à "pop", passando pela "world", etc... O contacto generalizado faz-se hoje sem filtros, quem disponha de um computador pessoal tem acesso à omnipresença, sem outro controlo além do seu próprio. Que cultura ou culturas se vão tecendo e como nos envolverão é algo talvez ainda do foro da ficção. Tudo sempre foi mudando - todo o mundo é composto de mudança - mas hoje muda depressa e muito imprevisivelmente. Até se fala de trans-humanismo (neologismo inventado em 1957 pelo biólogo Julien Huxley, irmão de Aldous, o autor do Brave New World) e pós humanismo, este querendo já significar o advento de uma nova espécie humana, de vidas longas e quiçá eternas, de uma nova inteligência (artificial?) liberta da gravidade dos nossos corpos biológicos, algo como a noosfera de que falava Teilhard de Chardin...

 

   Meu Deus, meu Deus, onde eu já vou, Princesa, a solidão põe-me a divagar, quando falo comigo mesmo torno-me perdido vagabundo, vou por onde não sei, nem ouço o que grito, mas apenas ecos vários do que já pensei ou me disseram. Paro aqui, espero por próxima carta, talvez acerte.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira