CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Haverá outros, mas eu só conheço dois Hasedera no Japão, ambos na ilha central de Honshu, um na área de Kamakura, outro na de Nara. Ao primeiro se liga, na minha memória, a lembrança de uma visita, em companhia de um jovem casal japonês, muito amigo, que ali guardava o espírito de um filho perdido num desmancho. Na verdade, logo à entrada do recinto, deparei com um jardim acolhedor, donde partia um caminho de pedras até ao templo, ladeado de centenas de jizobosatsu esculpidos em pedra. Junto destes budas, santos ou espíritos protetores de viajantes e crianças, os pais de nados mortos ou de crianças falecidas em tenra idade colocaram vistosos cataventos. Este templo budista é famoso por dois dos seus pavilhões, o de Amida ou Buda da Terra Pura, da vida renascida, e o da Kannon ou Buda da Misericórdia, amiúde representado em corpo de mulher, muito raramente com um menino nos braços. Aqui, a estátua de Kannon, que data de 721, é a maior escultura em madeira do Japão. Em tempos idos, falei-te do templo de Biyodo-in, em Uji, Kyoto, magnífico edifício do século XI, com o pavilhão de Amida no centro e duas alas, uma de cada lado, lembrando as asas de uma fénix quando pousa. Símbolo de renascimento, mais surpreendente ainda quando, atentos, esperamos que, in tempore oportuno, um raio de sol entre pela vigia do pavilhão central e faça brilhar o rosto de oiro do Buda Amida, o da Terra Pura Prometida. Símbolo de iluminação. Já a Kannon, qualquer Kannon, me recorda sempre os cristãos clandestinos, os kakure kirishitan, que tinham imagens dela em suas casas, frequentemente com um menino nos braços e uma cruz gravada no pé ou nas costas, disfarçadamente, para que a inquisição shogunal nelas não reconhecesse Nossa Senhora dos cristãos, Mãe de Misericórdia...
O Hasedera em que cantou o Coro Gregoriano de Lisboa, dirigido pela saudosa maestrina Engª Maria Helena Pires de Matos situa-se numa zona montanhosa, perto de Nara. É templo e mosteiro habitado por monges budistas da ordem Shingon. [É mais comum, muita gente o faz, e eu próprio o fiz, referirmo-nos a esta e outras escolas ou tradições budistas, nas línguas ocidentais, como seitas. Mas seita é palavra equívoca, a que facilmente se cola um sentido depreciativo ou pejorativo. Decidi, portanto, designá-las doravante por tradições, escolas, ou ordens, como o faço relativamente às comunidades ou instituições religiosas que, no cristianismo se chamam ordens ou congregações]. Creio, Princesa de mim, que já te contei essa aventura. Passou-se em 2005, depois do terrível terramoto de Kobe. No ano anterior, eu tivera contactos com monges Shingon, que formaram um coro que veio a Lisboa, capital europeia da cultura em 2004, cantar no Coliseu e, face a face com o Coro Gregoriano de Lisboa, na igreja de São Roque. A televisão japonesa (NHK) produziu então e transmitiu um filme de hora e meia sobre o evento e falando de Portugal como destino de viagem para japoneses. A produtora do belíssimo documentário era profissional reconhecida no Japão, a senhora Hiroko Suda, de quem me tornei amigo. Logo a seguir ao desastre de Kobe, ocorreu-me contactá-la e sugerir-lhe que, além dos donativos de bens alimentares e outros, que exportadores portugueses se prontificaram a fazer, poderíamos levar ao Japão o nosso Coro Gregoriano, para que trouxesse às vítimas e aos japoneses em geral um canto fraterno de solidariedade e paz. Conseguidos os necessários patrocínios privados, assim aconteceu. Em Kobe mesmo, celebraram os dois coros, o cristão e o budista, um ofício de meditação e oração numa igreja católica, localizada na área mais devastada pelo tremor de terra e completamente destruída, mas imediatamente reconstruída em cartão reciclado... Acorreu multidão de gente, ninguém ali era estrangeiro. E repetimos o encontro no templo de Hasedera, lá no alto, com ambos os cantos monásticos ecoando por montes e vales... Foi bonito e calou fundo no coração de todos. A senhora Suda, por seu lado, conseguiu ampla cobertura televisiva dos eventos, e ainda a transmissão direta de dois concertos do Coro Gregoriano em Tokyo: um numa famosa sala de concertos, outro na catedral de Santa Maria, onde estiveram mais de três mil pessoas...
Este segundo Hasedera, mosteiro fundado em 686, pouco depois da introdução do budismo no Japão, pertenceu à ordem Hosso até 1588, altura em que passou para a nova congregação Shingon. É famoso por ser o Templo das Flores, e é a oitava paragem dos trinta e três destinos consagrados da peregrinação aos santuários de Kannon no Kansai. As flores ali mais admiradas são as peónias, esplendorosas em abril/maio. E no seu pavilhão central é evidentemente Kannon que se se venera. Permite-me, Princesa de mim, que acrescente ao que acima te disse sobre os bosatsu (tradução japonesa do sânscrito bodhisattva, nome dado aos santos que não querem aceder ainda à plena libertação ou divindade de budas integrais, se assim me posso exprimir, por esperarem levar outros seres humanos a essa plenitude: chamar-lhes-íamos santos, no sentido de nossos intercessores...) que, de todos eles, no Japão, os mais populares são, precisamente a Kannon, principal auxiliadora do Buda Amida, que vela pelos humanos e os ajuda a ascender à Terra Pura; e os jirobosatsu, protetores das crianças (e dos nado mortos) que, tal como Kannon, também acompanham as mulheres durante a gravidez e o parto...
Nem imaginarias, Princesa, o porquê da minha lembrança de Hasedera ao começar a escrever-te esta carta. Veio-me da leitura de dois livros (IV e XXII) do Genjimonogatari que contam a seguinte história: jovem ainda, Genji conhecera Yugao, linda e delicada, que morava numa casa rodeada de uma paliçada coberta de flores conhecidas por belas da noite. A jovem dama, vendo o príncipe no jardim vizinho, oferece-lhe um leque branco e perfumado, para nele depor as flores que colhesse. Tocado pela gentileza do gesto, Genji tudo fará para rever a desconhecida, e acabará por tornar-se seu amante. Mas, para a proteger da maldição do espírito ciumento de outra das suas namoradas, levá-la-á um dia para longínquo mosteiro, onde a deixará e ela virá a morrer, dando todavia antes à luz uma menina, filha do seu protetor, o Ministro do Interior. Essa criança será a Tamakazura, de que já te falei e que, embora mais tarde recolhida por Genji, não era sua filha, como muitos pensavam. Mesmo este príncipe apenas soube dela anos mais tarde, através de Ukon, ama de Yugao (Bela da Noite), que depois da morte desta entrara ao seu serviço. Ukon irá em peregrinação à Kannon de Hasedera, e lá encontrará o casal que criara Tamakazura (Precioso Enfeite), e esta menina com eles, já linda moça, que ela levará consigo para o palácio de Genji. São diversos e muito antigos e dispersos pelo mundo os milagres de uma Mãe de Misericórdia.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira