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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Sobre a questão da forma.

 

'A forma é a expressão exterior do conteúdo interior', Wassily Kandinsky, 1912

 

No texto de Kandinsky 'Sobre a questão da forma.', lê-se que o impulso interior conduz o espírito criador e permite-lhe chegar à forma. O essencial, na questão da forma, é saber se ela nasceu ou não de uma necessidade interior.

 

Kandinsky afirma que o inevitável acontece quando chega a sua hora. Não é, porém explicável esse momento. Para Kandinsky tudo depende de um conjunto de condições necessárias ao amadurecimento do impulso interior. Esse impulso ou intuição recebe o poder de criar, no espírito humano, um novo valor. 

 

'A necessidade cria a forma', diz Kandinsky. O artista usa a forma para ir ao encontro do seu espírito. A experiência individual afeta a transcrição desse conceito mental novo - porque a forma tem o selo da personalidade do criador. O absoluto pode estar na forma e a forma está ligada ao tempo. É certo que há o espírito do tempo e os movimentos, mas o fundamental está no valor acrescentado que o artista pode trazer. Por isso o espírito criador tem a capacidade de ligar o espaço, o tempo e as suas condições concretas à sua experiência de vida. Kandinsky fala de um valor espiritual em busca de constante materialização: 'O véu que envolve o espírito na matéria é frequentemente tão espesso que, em geral, poucos homens são capazes de notar.'

 

'Apenas subsistem as criações artísticas autênticas, aquelas que possuem uma alma (conteúdo) no seu corpo (forma).', Kandinsky

 

Na obra de arte não há código ou programa exterior. É uma realidade vivida e cheia de vida. No valor novo, que nasce de uma grande liberdade, ouve-se a voz do espírito. Uma força própria manifesta-se sempre na obra de arte.

 

'Mais vale tomar a morte pela vida do que a vida pela morte, mesmo que tal ocorra uma única vez. Nada poderá crescer a não ser num solo solto. O homem livre trabalha para se enriquecer com tudo aquilo que existe e para deixar agir sobre si a vida de cada coisa - ainda que seja a de um fósforo meio consumido. Apenas a liberdade nos permite acolher o futuro.', W. Kandinsky 

 

Ana Ruepp

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

IV - O ABSTRACIONISMO EM KANDINSKY

 

1. A expressão arte abstrata descreve pinturas ou esculturas que não têm qualquer relação com a natureza, em que a obra de arte usa uma linguagem puramente abstrata, procurando o dinamismo e o ritmo através da cor, numa proeza de imaginação onde não se reconhece qualquer coisa do mundo físico, material e visível que conhecemos. É misteriosa e subversiva, invertendo a nossa mente racional formatada para acreditar que pinturas e esculturas têm de contar uma história, representando-a e tornando-a compreensível.

 

São arte abstrata as obras plásticas em que não há figuração, nem representação do espaço e do mundo real que percecionamos, de objetos ou de paisagens, de seres humanos ou animais, de luz ou perspetiva, detendo-se apenas numa visão das trajetórias, dos ritmos, de modo a que as matérias se valorizem por si mesmas, os fundos se oponham às formas, as técnicas se sobreponham ao desenho e à cor, criando uma teia geométrica plana não representativa, mas sim impositiva de elementos de ordem e de simbolização do espaço.

 

Embora a abstração remonte aos tempos pré-históricos em que o ser humano fez pinturas rupestres ligadas à magia, surgiu e desenvolveu-se essencialmente como vanguarda artística no século XX, em oposição à exaltação figurativa do Renascimento e do naturalismo.

 

2. Todavia, a primeira obra não figurativa consciente parece ser de Kandinsky O russo Wassily Kandinsky, após uma fase expressionista em que foi membro do movimento alemão Blaue Reiter (Cavaleiro Azul), juntamente com F. Marc, R. Delaunay, A. Macke, G. Munter, Paul Klee, entre outros, orientou-se para o abstracionismo e tornou-se um dos expoentes da arte abstrata. Ao defender a autonomia da obra de arte em relação ao seu criador, estabelece relações entre a música e a pintura, porque a música, quando não cantada ou acompanhada de palavras, é uma arte totalmente abstrata, chegando a comparar as cores a instrumentos musicais, em que o azul atuaria numa tela como uma flauta numa sinfonia, o verde como um violino, o branco como o silêncio, numa paisagem visual que permitisse ao observador ouvir o som interior da cor, só ouvido quando um quadro não continha um significado convencional que distraísse o observador-ouvinte.

 

No decurso da sua investigação escreve o livro Do Espiritual na Arte, surgindo a primeira fase da sua obra abstrata, conhecida por cromática, daí datando a sua Primeira aguarela abstrata (1910), em que usa a cor pura, omitindo o figurativo, com uma profunda ligação e influência da música.  

 

Já Wagner tinha compreendido as potencialidades de comunhão entre a música e a arte em geral, ambicionando uma obra de arte total, influenciado por Schopenhauer, para quem o único modo de nos libertarmos dos nossos desejos básicos, monótonos e insaciáveis, eram as artes, possibilitando-nos transcendência, fuga, alívio e compensação espiritual. Opina que a  arte que melhor o proporciona é a música, devido à sua abstração, em que as notas são ouvidas e não vistas, libertando a nossa mente e imaginação do aprisionamento da nossa vontade e da nossa razão.

 

Mas seria o compositor austríaco Schoenberg, de que (Kandinsky) foi amigo, que o emocionou, encorajou e influenciou a avançar, surgindo em 1911 Pintura com um Círculo, tida como a primeira obra de arte de Kandinsky totalmente abstrata. Pretendia que a tela fosse similar a uma partitura musical, o mais sonora possível, mas completamente abstrata, liberta da representação e proveniente do instinto. Uma fuga à representação na pintura que se aproximasse e fosse alma gémea com o universo da música. Compreensível que, na sua maioria, as obras de Kandinsky se intitulem Composição, Improvisação, Impressão, lembrando a numeração de trechos musicais. O que pretendia, por exemplo, nas suas telas com o prefixo Improvisação era criar uma paisagem visual que permitisse ao usufruidor ouvir o som interior da cor. Já Composição VII é tida como um apogeu da sua carreira, criando uma pintura passível de ser comparada com uma sinfonia.  

 

Esta subjetividade espiritual de Kandinsky tinha as cores e as formas puras como meios significantes da expressão pictórica, através dos quais se expressava o ritmo. A cor era a tecla, que pelo som musical exercia uma influência direta na alma, sendo esta um piano de muitas cordas.

 

A segunda fase, do abstracionismo ou geometrismo lírico, é a busca de uma linguagem universal a partir da matemática, por contraste com a arte geométrica de Malevitch, coincidindo com a sua atividade como professor da Bauhaus.

 

3. Podemos concluir que para W. Kandinsky a vida espiritual era mais importante que a material, colocando o seu critério de valores essenciais fora do universo físico, numa subjetividade transposta para um abstracionismo espiritual, lírico, poético, mental,  imaginário, bíblico, religioso e transcendente.  

 

Além de Kandinsky, também Frantisek Kupka, Robert Delaunay e Klee passaram por uma fase abstrata, avançando para ela através da música, fazendo da cor e da música a sua arte, sem esquecer a influência das teorias de Einstein, Freud e Bergson.

 

Como pintor de permanente experimentação e de várias influências, também Amadeo de Souza-Cardoso aderiu, entre nós, numa fase posterior, ao abstracionismo, por impressiva influência de Delaunay.    

 

18.04.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício