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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA


Título original: Sorry we missed you, de Ken Loach

 

De olhos vazos e exaustos Rick e a mulher enfrentam dias cruéis sabendo que vivem uma vida a caminho do fuzilamento definitivo seu, e da sua família.

 

Após a crise financeira de 2008 o incêndio da não vida permanece-lhes no dia-a-dia como uma mandíbula que os morde sobretudo quando já só as lágrimas e o desespero lhes resta.

 

A consciência do que o mundo lhes dá para lutarem, parece-lhes agora mais perfurante da alma, da justiça e do amor que afinal acreditaram um dia poderem vir a viver serenamente, mesmo que à custa de se encontrarem permanentemente numa luta à beira do inferno.

 

A excelência deste filme de Ken Loach deixa-nos numa combustão interior por aquilo que afinal nunca deixámos florescer, nem antes nem depois da crise de 2008: o direito à vida digna.

 

Qualquer tipo de violência tornou-se culto desenjaulado sob os nossos olhos, os da dita compaixão possível, mas afinal da indiferença e da distância face ao sofrimento.

 

José Mário Branco tão corajosamente cantava que veio de longe de muito longe e muito passou para aqui chegar, e afinal sabia que nunca encontraria o que sonhara para o aqui e pelo qual tanto lutara. Tal como todos os elementos do programa “Governo Sombra”, a minha gratidão ao José Mário Branco é imensa por todo o prumo com que viveu a vida, não obstante, nunca me ter sentido ideologicamente par, mas sim, comoventemente, sua admiradora.

 

A verdade é que este filme me fez recordar o quanto a luta de Mário Branco foi também para que se habitasse um dia um mundo que fosse início de uma harmonia. Ricky e a mulher, descrentes afinal desta esperança de harmonia, amavam-se e amavam os filhos, e, na qualidade de cuidadora a mulher de Ricky, ainda conseguia encontrar no sofrimento alheio, a possibilidade desse sofrimento a compreender e a mimar, enquanto ele lhe penteava os cabelos e as lágrimas lhe permitiam descansar os minutos horríveis dos dias de trabalho que suportava. Ficava ela grata ao trabalho desesperante que fazia, não apenas pela possibilidade de o desempenhar bem, mas porque esse trabalho a compensava do pior que nela era a ebulição de suportar raiva e ternura, tentando sempre que esta última fosse a vencedora.

 

A cada dia restavam as cinzas do dia anterior e arrancar a partir daí para outra e mais outra cratera de dor era o injustíssimo destino a aceitar.

 

E tudo é verdade neste filme. A proposta das sociedades de hoje é para que cada um se despeça de uma parte de si e a mecanize irrecuperavelmente até que perder o seu todo seja o desígnio único.

 

As políticas oxidadas candidatam-se ao voto na fúria do poder, e, enquanto este, e a privação, ditam quem é quem, uma teia de sangue oculto acossa e esquece que até os corações se tornaram temíveis, e íntegro, mas desfeito, Ricky, a mulher e os filhos já só cartilagem e não osso, podem perder ainda o telhado tenebroso que os cobre.

 

É então esta a última morada que se oferece. 

 

Teresa Bracinha Vieira

I DANIEL BLAKE, Digo: NÓS DANIEL BLAKE

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Afinal depois da usurpação do viver em dignidade, depois do oxigénio em que se movimenta plenamente a violência, a máquina corrompida, robotizada, automática, insensível, que atua em nome de uma igualdade de tratamento entre os homens, depois de tudo ser nivelado ao subsolo, local de uniformizações abjectas, implacáveis, resta o Estado, essa conquista de duração mais vasta do que a existência efémera do homem.

 

Se restassem dúvidas, neste filme de Ken Loach é claro o remeter da individualidade sempre para mais tarde. Há que permitir que o Estado tenha também a função de permutador entre projetos e mortalidade: algo sem origem nem fim. A verdade é que a denúncia é ineficaz ao nível do que se permite à sua força, e entende-se mesmo que ela se deve encaixar nos moldes pré-estabelecidos, nos próprios formulários e demais burocracia, sendo proibida nos c.v. caso explicite alguma objetividade subjetiva, e, pouco muito pouco é moralmente duvidoso.

 

O último recurso reside num grito não escutado nunca pois as celebrações dos heróis destes tempos fazem-se em hora sem tráfego humano ou outro. A autoridade de quem pode é uma tradição que torna cega qualquer legitima soberania.

 

A ancianidade do saber, do sentir, do compreender, do lutar e do sofrer é progressivamente eliminada ou reduzida a um mínimo que nunca coloque em causa a insanidade do mando. O laço horizontal da justiça fracionou-se e a experiência da pátria de si mesmo e da terra a que se pertence, foi quebrando o compromisso com a vida digna.

 

Se existisse um filme a ver este e outros natais, seguramente que se deveria repetir esta lucida perturbação “I Daniel Blake” ou não existisse o nós, o nós que constrói as prateleiras para os livros, com a fome a apertar o estômago e a dizer que só se a origem do sonho fugir sempre para trás não haverá esperança, ou se entre um começo datado e o amor-próprio encontrado, apenas a morte se tornar discípula de uma estranha dimensão que mora na rua da ausência no país da indiferença.

 

E nós, nós andamos de um lado para o outro ou a nossa sombra anda dum lado para o outro? Como pode um homem esperar que tudo aconteça antes de ter tempo? E então se ainda não fizemos o máximo para toda esta realidade mudar, digo, nós somos, eu sou é.

 

À altura da nossa alma, afinal uma couraça é ritualmente regada.

 

 

  

Teresa Bracinha Vieira

25.12.17