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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

CARTA DE OLIVEIRA DA FIGUEIRA
14 de fevereiro de 2019

 

Meu Caro Amigo Agostinho de Morais

 

Espero muito que esta carta o encontre bem. Acredite sinceramente que tive uma enorme alegria em poder ter conversado consigo na maravilhosa capital da Sildávia.  Antes de mais, venho desculpar-me por me ter desvanecido depois de nos termos encontrado em Klow. Já me conhece há tempo suficiente para saber que não gosto de estar muito tempo quieto. Assim aconteceu, de novo, e se é verdade que a Sildávia é um país pacato, para um comerciante conhecido como este seu amigo, todo o cuidado é pouco para garantir o necessário recato e a prevenção relativamente a oportunistas e invejosos. À medida que a minha idade avança, mais consciência tenho de que tudo será vão, se não estivermos bem despertos, como se tivéssemos mil olhos. Assim eu faço. Aliás, se eu tivesse um brasão de armas, escolheria a imagem de uma mosca, com os olhos multifacetados para tudo ver. Infelizmente, o meu falecido progenitor preferiu adotar como símbolo de sua casa de comércio uma barata, que era o inseto que mais o atormentava no armazém da mercearia onde ganhava a vida. E adotou-o como uma espécie de exorcismo perene, através do qual se libertava de quem se entretinha a deliciar-se com as batatas que guardava na cave da casa. E havia que dar cabo desse terrível bicharoco com determinação. Para mim, porém, a mosca é o melhor inseto, não para voar à minha volta, com zumbido perturbador, mas para exercitar o olhar penetrante capaz de tudo abarcar. E certamente que o meu mui amigo notou que praticamente não há moscas em Klow… Esse é o resultado da minha última vitória como Conselheiro Especial da Corte. Consegui vender ao Reino da Sildávia um aparelho que é o “Último Grito” da mais moderna tecnologia. Trata-se de um abanico gigante para afastar todo o tipo de insetos. E a verdade é que há resultados positivos, para gáudio de todos. Sei até de um relatório circunstanciado da responsabilidade do Ministério das Iniciativas Insólitas, que me encheu de orgulho. Aí se diz que há uma cadência regular e um movimento uniforme que permite uma eficácia extraordinária do grande abanico. Agora, já estou em bom recato, sem inoportunidades, a pensar em novos negócios… Como sabe, vendo tudo que vem à mão. E o certo é ninguém deixa de comprar… Ainda gostaria de lhe dizer que certamente não se apercebeu de que uma pequena ruela próximo do palácio real leva o nome de Tintin e um pouco adiante, nas traseiras desse grande monumento, está a Alameda de Oliveira da Figueira, o mais original e imponente de todos os arruamentos da cidade. Aí há uma pequena estátua que representa alguém que a minha modéstia não  deixa designar –  no ofício de prestidigitador, carregado de artefactos. E na base desse monumento insigne, estão os versos imortais do poeta Alexandre O’Neill, celebrizados por minha saudosa amiga Amália Rodrigues e por Adriana Calcanhotto:

 

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.
Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.
Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.
Assim devera eu ser
se não fora não querer.

 

Eis o que se me oferece… Aceite, querido amigo Agostinho os melhores votos de amizade do seu, sempre

Oliveira da Figueira.

 

Agostinho de Morais

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

DE PARTIDA…
29 de janeiro de 2019

 

 

«Escrevo a minha última carta de Klow, antes de partir de regresso ao meu lar lusitano. Como disse, encontrei a Sildávia como sempre – amena e simpática. E a Bordúria continua cheia de medos e desconfianças. Depois dos sinais apaziguadores em 1989, regressaram velhos fantasmas e designadamente o grande fantasma de Plekszy-Gladz, que eu julgaria totalmente banido. Mas não, voltam subtis e ambíguas referências a essa tremenda personagem, em nome de um estranho nacionalismo. É, afinal, a projeção do que hoje vivemos no velho continente.

 

Falta memória das guerras civis – e, em lugar de uma ligação entre o debate de ideias e a aceitação regulada dos conflitos, deparamo-nos com a ilusão de que tudo se pode resolver com um qualquer chefe omnipresente e omnisciente – como quis ser esse Plekszy-Gladz de má memória. O seu bigode até chegou a servir de símbolo de marca de automóvel e de decoração… É verdade que ainda não chegamos a tanto, mas a bigodaça volta não volta aparece. Entretanto o meu amigo Oliveira da Figueira desvaneceu-se. Partiu de Klow sem me dizer para onde iria.

 

Sei que os seus negócios vão indo razoavelmente, mas sobretudo o seu espírito aventureiro está mais vivo que nunca…  Entretanto, fui matando saudades entre velhos amigos e ofereceram-me uma pequena imagem de Tintin com dois sildavos no tempo em que ele chegou aqui pela primeira vez, ainda ninguém sabia a história e a existência deste país, que continua a ser uma referência histórica e romanesca. Nada vos disse sobre a política. É uma pequena democracia multipartidária, com um governo de coligação com moderados de várias cores. Continua a ser uma monarquia constitucional quase republicana, com a divisa “Eih Bennek, eih blavek” – Aqui estou aqui vou ficar, centrada na velha lenda da rosa com espinhos e do cuidado necessário para não nos picarmos nela. Com uma Europa e um mundo em convulsão, os jornais, as rádios e as televisões dão-nos a notícias costumeiras…

 

Por mim parto com saudades. Até à vista caros amigos da Sildávia.

 

Agostinho de Morais

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

CONTINUAÇÃO DE UMA CARTA QUE RECEBEMOS DE KLOW…
22 de janeiro de 2019

 


Prosseguimos a missiva que recebemos do nosso colaborador e amigo Agostinho de Morais, que ainda se encontra na cidade de Klow, capital da Sildávia.

 

«Continuo a deambular por esta cidade tão acolhedora. Ontem mesmo voltei a estar com o meu amigo Oliveira da Figueira, numa amena conversa. Lembrámo-nos que a sua primeira aparição nestas aventuras aconteceu em 1932, como personagem de «Os Charutos do Faraó», num episódio em que Tintin é atirado ao Mar Vermelho, por engano, num sarcófago egípcio. Salvo «in extremis», o nosso herói encontrou-o na embarcação que milagrosamente o recolheu. Oliveira da Figueira diz: «se puder ajudá-lo, posso fornecer-lhe a preços competitivos qualquer artigo de que necessite». Começou então por um conjunto flamante de gravatas, às riscas, às bolas ou com figuras exóticas. Seguiu-se um lote de magníficos sabres, com lâminas de Toledo, mil outras bijuterias e muitos brindes: um despertador, escova de dentes etc… Tintin saiu carregado de inutilidades, com um balde, um regador, uma gaiola com papagaio, uns esquis, tacos de golfe, uma casota e uma coleira de cão, além de um despertador. E ingenuamente confessa: «Ainda bem que não me deixei levar pela conversa dele. A tipos como este acabamos sempre por comprar uma série de coisas inúteis»… Já na costa árabe, Oliveira da Figueira demonstrará a sua inefável arte de convencer. Chamam-lhe «o-branco-que-vende-tudo»… E ele reconhece-se orgulhoso: «Então que tal? Chama-se a isto eficiência! E o melhor é que os meus clientes voltarão». De facto, voltam, mas quem aparece a protestar (sem razão, é certo) parece ter ingerido um naco de sabão, que lhe produz mal-estar pelas bolas de sabão que o atormentam. Daí a maldição: «Antes da Lua Nova, o meu Senhor, o Xeque Patrash Pacha, ter-te-á castigado»… Encontramos mais tarde Figueira no «País do Ouro Negro», obra iniciada em 1939, interrompida pela guerra e recomeçada em 1948. Aí, ajuda Tintin a encontrar os segredos do Dr. Müller, descobrindo um subterfúgio.

 

Mascarado de sobrinho do comerciante, sob o nome de Álvaro, com um aspeto bizarro, levemente atrasado, quase invisual é supostamente vítima de uma estória que o português vai contando sem parar para distrair quantos visavam impedir o acesso aos segredos do vilão. É extraordinária a capacidade efabulatória de Oliveira da Figueira. Inventa que o sobrinho é filho de um criador de caracóis, vítima de uma trama terrível que envolve uma mulher rica que morre de desgosto aos noventa e sete anos e a influência de duas imortais palavras, ditas em português, «Oh! Oh!», cujo sentido, alcance e influência nunca chegamos a conhecer… Depois, em «Carvão no Porão» («Coke en Stock», publicado no «Cavaleiro Andante», em 1959 e 1960, sob o título «Mercadores de Ébano»), Tintin e o seu amigo, Capitão Haddock, pedem apoio e hospitalidade em Wadesdah. Lembro-me, aos sábados de manhã, da expectativa que tínhamos antes de ler a continuação das peripécias. Oliveira da Figueira recebe surpreendido e assustado a visita noturna, com a cidade em estado de sítio, cheia de cartazes a pedir a captura de Tintin. «Que faz aqui, desgraçado? Não sabe que tem a cabeça a prémio?». Há agitação e um conflito entre a Arabair e o Emir…

 

Tintin diz que precisa absolutamente de ajudar o Emir e Oliveira da Figueira informa que ele teve de fugir para casa de Patrash Pacha. Tintin e Haddock treinam desesperadamente o equilíbrio das bilhas à cabeça, para que possam não dar nas vistas, mascarados de mulheres árabes, cobertas com burkas. O resultado do treino é desastroso. Os estragos são enormes e os cacos enchem o armazém do comerciante arruinado, que se vê na obrigação de dizer às clientes que as bilhas estão esgotadas. No momento da verdade, tudo parece salvo, mas eis que uma mulher árabe descobre a barba hirsuta do capitão e foge escandalizada. O desastre anuncia-se, mas no final tudo se arranja graças ao apoio providencial de Oliveira da Figueira. Recordámos gostosamente estes episódios. E verifiquei que o meu querido Oliveira da Figueira continua igual a si mesmo. Não sei que idade tem. Continua a cuidar-se. Nenhuma das suas qualidades se encontra adormecida. E fala, fala, fala… Comunicou-me, porém, que partirá para um lugar que não me quis revelar qual para dirigir os seus negócios… E hoje fico-me por aqui. Continuarei a informar-vos sobre o que encontrei neste país adorável…

 

Agostinho de Morais  

CADA ROCA COM SEU FUSO...

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NOS NOVENTA ANOS DE TINTIN, CRÓNICA DE KLOW
Episódio especial, 11 de janeiro de 2019

 

«Na sequência de “Tu Cá Tu Lá Com o Património”, iniciámos uma nova série para 2019, da autoria do nosso amigo Agostinho de Morais.

São crónicas amenas deste “gentleman farmer”, afilhado de Frei Agostinho da Cruz, de idade incerta, mas com uns bons anos de vida e de experiência. É um jardineiro nas horas vagas, cuida do seu MGA com mil cuidados e vive obcecado com o Brexit, com pavor que as peças para o seu vetusto automóvel se tornem incomportáveis de preço. É um anglófilo inveterado, cônsul honorário da Sildávia, detetive nas horas vagas, colecionador de borboletas exóticas, especialista em autores como Chesterton e Evelyn Waugh, e de Histórias aos Quadradinhos, pratica xadrez e bridge, e cultiva a teoria dos jogos. Em tempos escreveu três complexos opúsculos com misteriosos títulos “Para o Estudo do Paradoxo de Zenão – Aquiles e a Tartaruga” , “História da Sildávia até à Atualidade” e “ As Misteriosas descobertas do Father Brown”… São páginas de puro humor, história e matemática. É um conhecedor de temas históricos e linguísticos, e lê textos antigos em sânscrito, grego e latim. Quanto ao mais, é o que resultar das suas crónicas, a não perder!».

 

 

 

Eis o telegrama que acabamos de receber da cidade de Klow:

 

«Escrevo no dia 10 de janeiro de 2019, exatamente noventa anos depois da primeira publicação das aventuras de Tintin, no “Petit Vingtième”. Faço-o da cidade de Klow, capital da Sildávia, país adorável dos Balcãs. Aqui passaram-se momentos fundamentais na vida do herói de Hergé., que gosto sempre de lembrar.  Vim passar uns dias de férias a este país, em homenagem a todos os cultores das histórias de quadradinhos. Bianca Castafiore definiu a Sildávia como “um país encantador, para quem gosta de velharias”. A Sildávia nasceu em 1127 quando o chefe tribal Hvegui expulsou turcos e adotou o nome Muskar. A Bordúria, o país arquirrival, ocupou a Sildávia em 1195, mas em 1275 a independência foi reconquistada. O rei Otokar IV tornou-se monarca em 1360 quando o barão Staszrvitch reclamou o trono e o atacou com uma espada, mas Otokar derrubou-o com seu cetro – então tornado símbolo nacional. Eis a razão do célebre título “O Cetro de Otokar” E, desde então, o rei da Sildávia deve trazer consigo o cetro e mostrá-lo ao povo no Dia de São Vladimir, sem o que perderá a sua legitimidade. Aquele que tiver o cetro será o novo rei. Sabemos bem que isso é assim pela leitura da obra de Hergé.. Em 1939 a Sildávia ficou sob o risco de uma invasão de sua vizinha Bordúria como parte de um plano para expulsar Otokar XII. Tintin desenvolveu uma estratégia para neutralizar a situação. Assim, de modo pacífico, Otokar XII viu-se regressado à plenitude poderes no seu pequeno reino, graças ao jovem e destemido Tintin, algo como um monarca constitucional de seu país. Ordenou a seus ministros e generais que se fizessem as mudanças necessárias para evitar um golpe e uma nova invasão. E assim se iniciou um longo paríodo de paz. Podem crer que é com sentida emoção que aqui me acho. O tempo está soalheiro, mas o frio é bastante… E para minha surpresa, aqui me encontrei quando ia a chegar ao Hotel Astória – Klow, onde estou hospedado, a figura mais bizarra que imaginar se possa, e que aqui veio, como eu, para celebrar os 90 anos de Tintin – bela e vetusta idade – falo-vos da figura rotunda de Oliveira da Figueira, o português mais célebre do mundo. Contou-me, aliás, que é sócio deste Hotel, que nos acolhe. A Bordúria regressou à instabilidade, que parecia afastada. Mas a Sildávia vive momentos de paz e moderada prosperidade, é por isso um bom lugar para prosperar, descansar e comemorar o glorioso aniversário de Tintin… Oliveira da Figueira está velho, mas feliz… Continuarei a escrever-vos desta terra tão acolhedora. Hoje apenas vos escrevo, porém,  para homenagear o herói, prometendo voltar ao relato de viagem nesta terra de História rica e vicissitudes diversas….»

 

Agostinho de Morais