Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Graça Morais e Lídia Jorge têm pontos de encontro. Há um diálogo entre as obras de ambas, que nos permite entender como a cultura portuguesa contemporânea, para ser adequadamente compreendida, necessita de uma procura das raízes e dos seus desenvolvimentos.
UMA IDENTIDADE PRÓPRIA A obra de Graça Morais tem uma identidade própria, em que violência e ternura se encontram, na expressão de Fernando de Azevedo. Não podemos compreender a sua pintura sem entender o sentido do caminho trilhado e a ligação às raízes. Assim se compreende que “As Escolhidas” fossem “trabalhadoras de uma classe que viveu mal, todas elas falam de uma infância em que passaram fome e andaram descalças. Havia o domínio do masculino sobre o feminino”. Graça Morais é uma artista comprometida. O clima duro e adverso transmontano está vivo na sua pesquisa, através da representação das pessoas concretas que são protagonistas da sua obra. E a sua mãe, forte e corajosa, é quem lhe transmite a determinação e a agudeza do olhar. Como disse Jeanette Zwingenberger: “a paleta de Graça é a da terra e a da luz. Nos seus desenhos a sépia e a tinta-da-china, regista com um traço a força vital da natureza: a eclosão de uma romã, um ramo de oliveira, cerejas, o voo de um inseto ou a agitação febril de um cão. A série da perdiz, seu animal totémico, traduz o ciclo da maturação, do voo, e mais tarde da decomposição”. E o imaginário da infância está bem presente, correspondendo o bestiário a uma verdadeira metáfora da vida. Os gafanhotos evocam tanto as mulheres lutadoras como “anjos de asas translúcidas”, ainda na expressão de Zwingenberger. E são os mitos da natureza e da vida que encontramos nos temas que a artista escolhe. Como diria Octavio Paz e também Eduardo Lourenço: “vemos numa coisa outra coisa”. E a ideia de metamorfose torna-se essencial para entendermos a originalidade da obra. Segundo Fernando Pernes, “os frutos aludem caprichosamente à fecundidade dos ventres maternais”. E, na palavra de Nuno Júdice, há “uma descoberta de passados secretos, revelando que nada morre”. As raízes populares, que Graça Morais vai recordando, esclarecem-nos sobre essa continuidade. Os caretos representam a interrogação dos mitos e a força da relação múltipla no seio da natureza, entre vencedores e vencidos. Por isso, a pintora faz a natureza dialogar em si mesma trazendo à luz do dia a diversidade da vida. E nessa demanda encontramos as referências fundamentais que a influenciam: Miguel Ângelo, Goya, Van Gogh, Picasso e Bacon. Mas a poesia e o romance também a atraem – Torga, Sophia, Saramago, Nuno Júdice, Agustina, Maria Velho da Costa, Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, além da omnipresença de Ovídio nas “Metamorfoses” ou de Dante na “Comédia”. E o teatro, de Shakespeare a Jean Genet está igualmente evidente. Há, deste modo, uma permanente procura da identidade da artista, através da interrogação sobre a existência e a busca do universo.
CONTRA O MEDO, A DETERMINAÇÃO O medo, a violência, a incerteza, as dúvidas misturam-se com a determinação e a luta. A série “A Caminho do Medo”, apresentada na exposição “Tudo o que eu Quero”, na Gulbenkian e depois em Tours, revelam-se proféticas. Tendo sido concebida em 2011, durante a crise económica, a austeridade e a emergência da chegada dos refugiados, anuncia já a pandemia e a guerra, numa sucessão de momentos dramáticos, representados por uma estranha máscara cirúrgica, apanágio do confinamento que viria depois. E os tempos que aqui se configuram (crise, drama dos refugiados, pandemia e guerra da Ucrânia) definem a incerteza e o medo, que continuam a pôr a humanidade de sobreaviso. A liberdade e a dignidade tornam-se, deste modo, fatores capazes de contrariar o puro ceticismo, seguindo os passos determinados das mulheres, e em especial de sua mãe, trazidas à ribalta na sua produção artística. Como Helena de Freitas lembra: num diário na aldeia, a artista “corporiza a perdiz, o animal que na cadeia da sobrevivência é o animal caçado, que na representação simbólica evoca o feminino na sua duplicidade de luxúria e morte”. “As minhas personagens (lembra a artista) são sempre vítimas, mas que resistem”. E temos assim um inequívoco sinal de esperança, que a dinâmica constante e interminável das metamorfoses nos dá. O mundo transforma-se e aperfeiçoa-se. Se há um paralelo digno de nota entre duas mulheres artistas na cultura portuguesa contemporânea, é o encontro entre Graça Morais e Lídia Jorge. Ambas representam, de modo diferente, uma ligação íntima e insofismável às raízes. E se Trás-os-Montes e o Algarve são distantes, o certo é que têm proximidades maiores do que pode parecer à primeira vista. Portugal é, afinal, o continente em miniatura, que está cheio de tensões e complementaridades que a pintura de Graça Morais e a literatura de Lídia Jorge revelam de um modo exemplar. Tradição e modernidade são chamadas a conciliar-se, num caminho emancipador. E as mães de ambas são símbolos que as aproximam, como intérpretes e mediadoras, cuja influência se projeta nas respetivas obras. Se nos ativermos, aliás, a Misericórdia (D. Quixote, 2022) podemos entender em que medida há uma especial ligação às raízes, à presença e à ausência, à continuidade e à interrogação a respeito do choque entre esperança e desespero. E Lídia Jorge sente uma angústia semelhante à de Graça Morais: “Há trinta anos, nós tínhamos um programa para sair da ruralidade da escola. Aconteceu que, entretanto, o mundo tecnológico veio contrariar esse projeto. E está provado que os países que têm menos tradição letrada e cultural incorporam acriticamente a informação, tendo uma noção de vanguarda – porque é muito fácil uma pessoa quase analfabeta manejar com muita facilidade todos os gadgets – e transitaram de uma cultura iletrada para uma cultura tecnológica, sem passagem pelo filtro civilizante. Foi o caso da sociedade portuguesa, que não tinha suficientes hábitos de leitura, de crítica, de liberdade ou de ousadia da expressão do pensamento para o evitar” (entrevista, revista “Ler”, Inverno de 2022). Lídia Jorge vê aqui o perigo de uma nova barbárie, que pode resultar da recusa da coragem de assumir as diferenças e os riscos, sem a tentação do complexo por não se ser o melhor e o mais avançado, esquecendo que importa cuidar do nosso jardim, sem pretendermos ser melhores ou piores, mas tão só nós mesmos, abertos à compreensão dos outros e dum caminho de verdadeiro diálogo de culturas, baseado no melhor conhecimento mútuo.
UM DIÁLOGO PORTUGUÊS O diálogo na sociedade portuguesa passa por esta tensão, representada nos dois polos sobre que Graça Morais e Lídia Jorge procuram refletir, o respeito das raízes e a recusa do fatalismo do atraso, num sentido de emancipação, capaz de entender os riscos do medo e da uniformização, da indiferença e do esquecimento. O compromisso deve ser com a humanidade e a dignidade do ser. As personagens que são vítimas resistem e o sinal de esperança baseia-se na ideia da metamorfose, num mundo que se transforma e aperfeiçoa. Eis o ponto em que Graça e Lídia se aproximam.
há uma vida quase desconhecida, mas veemente, que se passa num lar da terceira idade, no qual a mãe de Lídia
irá viver os seus últimos tempos de vida.
Num ambiente concentracionário a escritora consegue atingir a esperança pelo mistério que a todos envolve,
afinal,
que a todos amarra,
num tempo de muitos tempos de pessoas em fim de vida
e de outras
quando tudo é experiência da condição humana.
E de tudo nos despedimos antes de entrar para estes locais-casas-do-adeus-final.
Antes,
há despedidas das nuvens e da lua que permanecem; dos bules de chá e dos caminhos para casa; das glicínias, do guarda-fato das peças amadas, das fotografias, e demais realidades que o livro recorda como de imprescindível despedida.
E é preciso não esquecer que este adeus é de um nunca mais ver pelo mesmo ângulo
e é de algum modo,
a memória surpreendente com a qual Dona Alberti enfrenta a nova residência-lar, acautelando que
Morrer é isso mesmo, é a verdade e a mentira já serem coisas iguais,
e isso ela não permitirá, nem que tenha de abrir todas as gavetas de uma cómoda imaginária até encontrar dois ouvidos:
o dela e o dos outros.
Até que consiga dar luta à charrete, cadeira de rodas das tangentes e secantes, empurrada por quem se não vê, mas que pode visar a alma
se nada se souber dos dias belos.
Um livro duro, realista até nos conflitos entre os residentes
quando nem se aproximando a morte se esbatem as classes sociais.
Quando até as formigas são suspeitas,
e as crianças acendem balões de cheiros de maçã assada com memórias de canela.
E cheia de fulgor:
Deixa-me da mão, ó noite. Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu.
A filha de Dona Alberti
é escritora,
e diz à mãe que escreve sobre o cão da História
e admite
com um saber fulgurante de quem engravida,
que voltou a não descobrir
aquilo que queria,
e que por essa razão precisará de escrever outro livro.
Pelos livros de papel, por quem oferece livros em vez de vazios e violências,
para que se não deixem os homens ao abandono, e se lhe escutem e interpretem as falas, e se lhes faça companhia,
Lídia Jorge. A compreensão reside na continuada interpretação.
Acedo à amizade que partilho com Lídia numa substancial eternidade do dito e do que fica por dizer, quando sabemos de cor como disseminamos silêncios viventes, troianos, pontuais, numa arte de hermenêutica de ilimitada abordagem.
Em 1981 quando li O Dia dos Prodígios percecionei o quanto a Lídia poderia fazer dos livros sobre os livros; o quanto esta magnifica escritora poderia vir a ser considerada como aquela que age nas palavras num todo significante raramente encontrado.
E aguardei.
Aguardei para ler outro e outro livro da Lídia Jorge, num contexto de paz entre o significado e a compreensão. Numa circunstância de corpo-receção, de ouvido cumulativo à mão cheia de mundo, pois que a obra não era, nem nunca fora, nem é efémera ou vulgar.
Sim Lídia, hoje entendo a promessa que fazemos à felicidade e a outros núcleos de histórias íntimas, e tudo de tal forma força que, de facto, só é menor a violência exterior das mulheres na forma de exercer o poder, tal como afirmas na entrevista de maio deste ano à revista Ler. Todavia, atamos realmente as relações de um jeito muito perverso, remetendo, quantas vezes, para o lado masculino, o vencer a todo o preço.
Querida Lídia, eu também digo muitas vezes o quanto somos muito próximos nos comportamentos de outros que julgamos não assumir e o quanto somos muito distantes daqueles que não vendem a alma por um punhado de palavras.
Acresce mesmo dizer, e a propósito da minha leitura do teu livro A Noite das Mulheres Cantoras, que me falta a tolerância à ganga ética dos tristes que de si se enamoram e cegam, numa mão cheia de incongruências.
Afinal como não sabermos andar cinco centímetros acima do chão?
Acima do chão para amar, suspender, espantar, seduzir, ouvir, rever, herdar, inovar, pintar, recusar, numa experiência pessoal que é processo de mosaico?
A Ilíada e a Odisseia têm-me acompanhado toda a vida. Fausto é para mim uma questão de fúria e até Nadime Gordimer me prova o quanto é cerco a história de cada um dos seus livros. Contudo, queridíssima Amiga Lídia Jorge, bem sei que sabes que a filologia é um somatório de amor e logos, mas sem amálgama alguma, é sim, a escultura da palavra, a figuração explicativa de significados que de modo tão exclusivo sabes concretizar.
Maestrina ao longo da tua obra exprimes o sentido fonte como um espelho que olha para outro espelho, trocando luz. Assim O Cais das Merendas; assim e numa variedade responsiva o Combateremos a Sombra, livro de encontro e colisão entre a consciência e a forma significante, livro só teu enquanto escritora.
Deixa que diga ainda o quanto O Belo Adormecido englobando os contos do desejo, ou de um desejo, tem a morosidade bastante à revelação da natureza do ser enquanto pessoas afinadas ou não pela música que nos possui. Ingrediente da própria intriga do ser? Não o interpretei assim, mas antes um ser sobre as nossas paixões, nunca demasiadamente enigmáticas, e, no entanto, plenas de concatenações de antenas estritamente privadas e que, por vezes, até escapam ao nosso entendimento.
Diria que aqui e além o teu romance, O Grande Gatão é uma história tão plena das aventuras pelas noites de luar quanto o é, de muitas formas, o empenho da mulher insubmissa que reside pelo livro A Maçon.
Registei e registo que nos Invernos em que se digladiou para a libertação, uma mulher, face a um marido que a queria na dimensão do bico do seu lápis, vem a ter ela personagem no teu livro O Marido e Outros Contos.
Toda esta escrita, tua escrita, querida Lídia é de uma extraordinária limpidez e inquietação seminal.
Repetirei que tem a escrita de Lídia Jorge o privilégio de exigir a sua leitura de lápis na mão, e o privilégio de gerar réplica no leitor. Fazê-lo pensar também como a mãe das Musas.
No meu interpretar, a obra de Lídia Jorge é uma experiência que modifica a consciência.
É amiúde uma escrita inesperada e no campo estético, poderosa, possuidora de voz, humor, desígnios, aflições, consolos e tão aguarela de Cézanne que a paisagem das nossas perceções tem a frescura das tempestades após a calmaria.
A maturidade desta escrita implica que a compreensão resida na continuada interpretação, e nos alerte sempre que afinal o regresso a casa, só é regresso a uma casa como a vida.
O júri do Prémio da Feira Internacional do Livro de Guadalajara distinguiu a carreira literária de Lídia Jorge, realçando a sua “originalidade e subtileza de estilo”, a independência da sua obra e a “imensa humanidade” da escritora portuguesa.
RARA QUALIDADE
No calor algarvio, rodeado de livros acolhedores, preparava-me para voltar a escrever sobre a importância da leitura, como fator essencial de cultura, quando recebi a bela notícia de que em Guadalajara foi reconhecido o valor da obra de Lídia Jorge e o seu “nível literário” de rara qualidade, cuja novelística “retrata a forma como os indivíduos enfrentam os grandes acontecimentos da História”. Lídia Jorge é assim apontada pelo prestigiado júri internacional como “uma das principais autoras de língua portuguesa, por uma obra não só novelística mas também poética, ensaística e teatral”. Deste modo, o júri realça um especial sentido humanista, “na forma de se aproximar tanto dos temas tratados na sua obra – adolescência, descolonização, lugar da mulher, emigração, agentes da História -, assim como na apresentação das personagens que a protagonizam”. Cícero designava, por isso, de “humanitas” o que hoje chamamos cultura. Como Lídia Jorge salientou, num ensaio marcante: “Fiz o meu contrato sentimental com os livros que se parecem com as árvores, aqueles que são da sua matéria, leio cada um desses livros à vez, e cada folha é lida uma após outra…”. De facto, é esta atitude que fica bem evidenciada no percurso intelectual, cultural e ético que se espelha numa obra multifacetada, que nos permite compreender a realidade humana como procura e compreensão do outro, do múltiplo e do diferente. E o certo é que se vivemos numa sociedade eminentemente urbana, consumista e homogeneizadora, “quando, entre nós, se fala de uma sociedade multicultural, e nos referimos à hipótese de virmos a ser uma população colorida, no sentido vital da expressão, estamos porventura a invocar o nosso mais fundo instinto de sobrevivência”. Mas será que poderemos preservar o que é próprio contra a onda predadora da harmonização e da despersonalização? Precisamos, sim, de “uma relação habitada com decência, respeitando o ambiente e a casa, uma atitude de preservação que não se confunda com um respeito museológico, mas impeça as incursões criminosas e a devassa”. E eis-nos perante a “imensa humanidade” da escritora que põe na sua obra o essencial de uma incessante procura do sentido da vida e de uma noção de identidade como ponto de encontro de diferenças e exigência de abertura e de enriquecimento mútuo.
O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL
Há alguns anos, Maria Graciete Besse salientou, com inteira justiça, que «a escrita de Lídia Jorge se caracteriza por um movimento de disseminação que faz evoluir o leitor através de uma notável experiência do tempo quebrado. Com efeito, o estudo da configuração temporal nas suas narrativas revela amiúde a invenção de um modo de narração não linear que, longe de abolir o tempo, condensa-o em poesia e espessura. Toda a sua obra distingue-se pela articulação sustentada do sensível e do inteligível, o que permite reconfigurar a experiência temporal e transmitir uma maior compreensão do mundo, graças à representação axiológica das experiências humanas» (Magazine Littéraire, agosto de 2013). Esse tempo quebrado é, no fundo, o tempo real, vivido no dia-a-dia por cada um, com encontros e desencontros, em que o sentimento e a razão se completam naturalmente. Daí a forte dimensão ética, não como um receituário ou como ambição de uma sociedade perfeita, mas como aceitação da imperfeição e como exigência de não condescender na compreensão mútua e na necessidade de podermos ser melhores. O sentido mágico que encontramos em O Dia dos Prodígios corresponde a esse diálogo entre o que se é e o que se deseja, entre o que se quer e o que se pode, tendo como pano de fundo uma realidade animada pelo sonho. A utopia não é um absoluto, mas um horizonte de esperança e de entendimento da dúvida. Por exemplo, em Estuário, voltamos, de algum modo, a O Dia dos Prodígios, não para repetir um certo tempo ou modo, mas para retomar noutra perspetiva um certo sentido profético ou até litúrgico na consideração do tempo. Se o primeiro romance, justamente celebrado, nasceu da urgência libertadora, e se Os Memoráveis procuraram uma reflexão sem ilusões, feita a partir da relatividade dos acontecimentos, das pessoas e das coisas, Estuário parte da crise portuguesa e procura reencontrar “o carácter estoico e a honradez antiga” – perante a incapacidade de uma resposta que permita uma “sobrevivência digna”. E o que é aqui o homem ou a mulher na modernidade? Alguém que não sendo capaz de salvar o mundo, procura a ficção como modo de tentar consegui-lo. Imperfeição e sonho encontram-se para entender a humanidade.
NECESSIDADE DE LER
Perante as incertezas de uma pandemia que continua a resistir, mas relativamente à qual encontraremos certamente soluções, importa compreender como os livros e a literatura, o romance, a poesia ou o ensaio, como a educação e a ciência desempenharão um papel fundamental – a dizerem que não estamos sós. Não está apenas em causa o conhecimento, mas a compreensão das relações humanas, e da dignidade da pessoa humana. E por estes dias, tive o gosto de partilhar com Lídia Jorge a alegria de vermos o largo principal de Boliqueime com vida e prudência, o reencontro de pessoas que tinham saudades umas das outras. De facto, teremos de regressar paulatinamente à convivialidade, em que a distância não põe em causa a fundamental relação olhos nos olhos. A confiança de um saudável aperto de mão tem de ser ligada ao cuidado necessário. Por isso, na vida das escolas, quando elas vão reabrir, as relações pessoais e próximas são condição necessária da boa aprendizagem – e podemos garantir, por experiência antiga, que será na vida escolar saudável que começaremos a ver pelas costas a ameaçadora pandemia. E nesta recordação, lembrei o que o meu avô Mateus contava sobre o seu Professor do Ensino Primário. Quando o tempo permitia, o mestre-escola fazia rumar, em dia certo todas as semanas, os seus discípulos ao campo e aí se dedicava a ensinar peripateticamente os segredos do Borda d’Água, as noções de meteorologia, de orografia e de hidrografia, os nomes das árvores, das plantas e das aves, os tempos certos das culturas, a prevenção contra os animais perigosos ou contra a malária que por ali ainda grassava… E a caminhar ia contando histórias e lendas, e sobretudo com a experiência e o exemplo, falava da formação das pessoas e dos princípios da liberdade e da justiça. E aproveitava para lembrar um algarvio poeta, que se fizera apóstolo da leitura para todos – João de Deus. E, andando nesse adro da Igreja, ali mesmo, podemos ver ainda na identificação dessa rua o nome do velho professor, que os seus discípulos não esqueceram, José Jorge Rodrigues. Foi tão bom, Lídia Jorge, termos celebrado a leitura e os livros com o justíssimo reconhecimento de Gualajara. Não há mais palavras, senão ler…
Ao reunir em livro um conjunto de cerca de quarenta crónicas radiofónicas, Lídia Jorge apresenta Em Todos os Sentidos (D. Quixote, 2020) reflexões que prendem o leitor da primeira à última página num encadeamento notável, no qual se manifestam as qualidades há muito reconhecidas da autora.
CRÓNICAS E ENSAIOS Começando pela designação de crónicas, devo dizer que muitas vezes estamos perante verdadeiros ensaios, género em que Lídia Jorge muito bem se evidencia há muito. Basta lembrarmo-nos de Contrato Sentimental (2009) para ficar claro como a romancista sabe muito bem lidar com a reflexão, não apenas na construção romanesca, mas também na consideração dos problemas mais relevantes da vida contemporânea e na busca de um sentido ético, cívico e existencial para a humanidade. Partindo do quotidiano, chegamos depressa à essência das coisas. Se durante a crise financeira de 2008, a autora deixou-nos considerações extremamente pertinentes sobre as ilusões do curto prazo, sobre a idolatria dos bezerros de ouro e sobre a tentação de oscilarmos entre considerarmo-nos “heróis do mar” ou ser lixo no perverso julgamento das agências de rating, encontramos a preocupação essencial de ir ao encontro da compreensão de que o tem mais valor não tem preço. E, ao contar uma história passada consigo, quando procurava desesperadamente uma capa para o modelo já desatualizado de telemóvel (com apenas três anos de idade), lá descobriu graças a uma balconista zelosa um utensílio de aspeto rebarbativo mas no essencial útil, ainda por cima com um inesperado desconto por se estar num Black Friday… Mas porquê uma tal designação tão estranha? Ao que parece (num tempo de tantos pruridos e más consciências) a explicação parece ser esta: na cidade do Cabo, na África do Sul, “diz quem, mostra as gaiolas da escravatura que antigamente, em certos dias de sexta-feira, antes do fim-de-semana, os escravos mais franzinos, os mais velhos, os que não tinham dentes, eram vendidos ao desbarato…”. A explicação é bizarra, mas convincente. O seu uso nos dias de hoje revela-se absurdo, pois a expressão esclavagista não poderia ser mais evidente, quando temos necessidade do mais elementar bom senso, em especial no respeito efetivo dos direitos fundamentais, em lugar de ressentimentos e complexos. E Lídia Jorge termina a reflexão, dizendo: “enganemo-nos uns aos outros, compremos inutilidades sem fim. Mas, na dúvida, não lhe chamem Black Friday”…
MONTAIGNE E O AMIGO E se falo do tom ensaístico, não posso deixar de apontar um verdadeiro ensaio testemunhal intitulado “Montaigne e o Amigo”, a propósito da oferta que Pierre Léglise-Costa, um amigo comum, lhe fez e do avisado conselho que deu a Lídia – “Relê o capítulo sobre a amizade, e lê este livro, o do amigo desaparecido, que Montaigne fez publicar”. Devo acrescentar que estava em causa La Boétie, o autor do magistral “Discurso da Servidão Voluntária”, que não teria chegado até nós se não fosse Montaigne, não apenas pela amizade, mas pelo reconhecimento do génio do seu amigo. “Si on me presse de dire pourquoi je l’aimais, je sens que cela ne se peut exprimer, qu’en répondant: ‘Parce que c’était lui, parce que c’était moi’”. É uma das mais belas referências à amizade na literatura de sempre. E Lídia e Pierre conversaram sobre isso. E falaram do “fruto da clarividência que sobressai nas grandes épocas de perda e de ameaça…” e no que acontece “quando um olhar inteligente abrange de relance o passado e o futuro, percebendo que o tempo histórico se desloca por ondas de avanço e recuo, e dessa inquietação surge uma proposta nova”. Ainda no registo do ensaio, somos levados a um poema de Emily Dickinson, com tradução de Ana Luísa Amaral, na exposição sobre o Cérebro, na Gulbenkian. “O poema de Emily Dickinson promete, além da vastidão, uma fusão entre matéria e espírito, e um sentido”… “Mais vasto o Cérebro – que o Céu - / Pois – lado a lado os põe - / E um facilmente conterá / O outro – e a Ti – também. / Mais fundo o cérebro que o mar - / Pois – mede-os – Azul a Azul - / E aquele o outro absorverá / Tal como – o Balde – à Esponja - / Um peso igual, Cérebro e Deus - / Pois – Pesa-os – Libra a Libra / E a distinção – se tal houver - / É como o som da sílaba”. A relação entre a Arte e a Ciência torna-se avassaladora, sendo biunívoca, como a criatividade e o paradoxo dos pequenos robôs. E, num momento, a ensaísta, pronta a perceber a liberdade e a determinação, vê-se impedida de voltar atrás, ao princípio, pela lógica do espaço e do tempo…
COMO AMAREMOS A EUROPA? Os temas sucedem-se. Numa tentativa de definição da Europa, partindo de um poema do mexicano José Emílio Pacheco, diz-nos: “talvez nós não amemos a Europa, mas se fosse necessário, ainda que soasse mal, talvez déssemos a nossa vida para preservar alguns dos seus incunábulos, algumas das suas catedrais, algumas das suas sinfonias, ou o estado social que nos aproxima uns dos outros. Depois de tanta batalha sangrenta, tantas fonteiras de ferro, cidades vizinhas inimigas de morte, a proposta de uma moeda única e de livre circulação de pessoas e bens é uma oferenda de paz que se faz aos mortos”… E, falando do mais nobre dos conceitos de dignidade e de identidade, lemos o testemunho do encontro da jovem Lídia com o avô José Jorge Júnior. “A casa já cá não está, porque tudo se transformou num espaço raso onde os tomilhos vão crescer, mas contrariando o descampado aberto, onde nada ficou, eu vejo a entrada da casa do Aroal como ela era, ouço uma voz e vejo a silhueta de um homem idoso sentado, de perfil, como se o ultimo encontro com o meu avô Jorge tivesse acontecido ontem. Foi há muito tempo”… É a marca da memória que aí está bem expressa. Mas também no exemplo sublime da Maria Inácia, que eu conheci bem de toda a vida, e que pôde defender heroicamente o órgão de Boliqueime – num extraordinário paralelo com a memória de Leipzig, das igrejas de S. Nicolau e de S. Tomé… É verdade que não era a memória de Bach a estar em causa, mas sim a opus 24 de 1789 construída por António Xavier Machado e Cerveira, irmão de Machado de Castro… E que há de mais importante senão uma memória viva?
O encontro com Agustina neste conjunto de crónicas é fantástico, no sentido literal do termo. Não vou, obviamente, contar a peripécia, mas posso dizer que é digna de um mistério romanesco, mais de Edgar A. Poe do que de Simenon – o pobre, coitado. Tudo começou numa viagem de comboio, e na descoberta por Agustina de um português, sem que Lídia Jorge pudesse suspeitar. Ninguém se parecia com a típica imagem de um português emigrante. Mas, a verdade é que Agustina tinha toda a razão, era mesmo um português, que ali apareceu com grande prosápia literária. A autora de Sibila identificara-o pelo mover dos lábios. Foi surpreendente o acerto… “Curiosamente, é um homem de compleição germânica, que já se levanta, já se aproxima, curva-se na direção do nosso assento e começa a falar português”. Nada devo dizer mais, porque o que se vai passar só é relevante se for descoberto pelo leitor, na descrição minuciosa de Lídia Jorge e no carácter inimaginável de Maria Agustina…
Lá no apartamento em Jerusalém numa janela aberta para a rua os olhos do Poeta refletem a ambição de segurar nas mãos Nova Iorque ou Alexandria. Quase zangado, quase desesperado, quer dizer da saudade com as fotografias nas mãos, e nada o contenta das palavras que a definem. Afinal a saudade é um lugar de desejo, de perseguição, de punição e pede-se a Faulkner que feche a cortina ao de leve e que se deite o Poeta por entre os lençóis da cama que lhe fazem sentir um habitar Jerusalém, na cama da sua meretriz, ou Muro, que impele a sua partida dali. E fecha os olhos o Poeta, com as faces rosas de sangue que lhe recordam a cor das bochechas do filho, nascido livre, e agora outra noite, filha do livro-mãe, filha da conclusão e da pergunta com nome de destino, com nome de veleiro.
O filme começou assim, exprimindo um rosto com tudo o que deve exprimir antes que seja tarde, antes que os enigmas de cansem de ser perguntados e que o Poeta jure por Deus que não descodificou o perfume.
E o filme mostra o frasco de cristal ricamente trabalhado e de tampa de cortiça, pousado na mesinha de cabeceira: o Poeta adormece, um tanto, só um tanto, pois que as flores desbotadas que o frasco contém, embrulham o porvir, as proporções das novas estradas, placentas informatizadas que já tinham trocado o mundo do simulacro pelo Mundo da vida, e assim, mergulhadas no mar amniótico do frasco, a elas devia estar atento o Poeta.
No dia seguinte, o Poeta desce a encosta das videiras, acaricia os cachos de uvas, e súbito, pressente o perigo não cruxificado de poder partir apenas na altura que ele conhece não haver caminho, e pergunta:
- Qual a razão para que ninguém me diga de frente que só o perfil pode agir nas noticias do amor; naquelas que se aceitam em nós e nós por elas cheios de atualidade, a sabermos que podemos partir do Médio oriente seguros do que Arquimedes nos ensinou: falo da alavanca, esta que vos mostro na qualidade de vedor e que torço como se torcesse o umbigo do mundo.
O écran, surge agora com a cor e a forma de uma laranja, os gomos parecem-se a músculos iniciáticos que oferecem sumo a todos os que rodeiam o Poeta, e que ele domina afinal com o saber das coisas escondidas dando de beber e sorrindo, sereno.
E surge um forno, uma lareira, um lume que inunda os olhos de todos e que o Poeta explica tratar-se apenas de uma existência muito viva, e que antes do seu salto olímpico e mortal, arde para que todos conheçam o benefício da dúvida que as flores da música de Mozart sugerem. A casa de Mozart está toda pintada pela mão dos impressionistas. Todos, sejam quem sejam todos, pois que entrem neste noivado consumado e cuja chave é uma fábula. Uma fábula de poder. A fábula de poder dos Poetas. Sentam-se então todos numa montanha, na bainha de uma montanha, à procura de um outro início. A bainha parece igual à dos cortinados de Jerusalém. As linhas enroladas são similares a batalhas que o Poeta regista no seu caderno de apontamentos e recorda-se que isto é o significado de mesmíssimo. O essencial inalterado, afinal. O céu da tarde lança ao Poeta um cabo e ele desce por ele até fitar o que o perturba. O Poeta é sempre a conjunção do cerne dos elementos do mundo, e olhando as aguas empurra-as para o beijo, até que o lápis descreva de um outro modo a tez morena das mulheres com sarongs coloridos.
E surge a casa a tal iluminada pela candeia do Poeta: a tal do coração e da espada, do cavalo e do segredo de o montar, e lá longe de tão perto, a noção de que só do não conhecido é o futuro. Big-Bang ou a primeira batalha, a tal que não conhece a bandeira branca. O Poeta, ingénuo do poder, não julga. O Poeta continua a crer no ato limite que exponha a poesia, finalmente como solução, nem que seja por sinais de mímica, mas que a deixe a cobrir como uma pele, o mundo velho dos deuses e lhes diga que coragem é ir por onde perigoso é o norte.
Eis a Grécia!
O Poeta tem à cintura pássaros vivos e livres que assim desejam estar. É sua a vontade deste modo se acomodarem; esse o édito das suas manhãs. E o Poeta escreve que se não desliga dos incêndios das verdades, nem que lhe citem Roland Barthes. Se necessário arrendam-se as nuvens sem contrato e as suas águas transformam as florestas em verde para que todos as interpretem e ele, sozinho, arda nos factos irrelevantes que mataram os dias: nada de novo, afinal. De nada novo a não ser a estrela que se solta sem ser vista e lá do céu explica os factos todos.
Os dromedários transportavam gentes e sal pelo deserto. O tuaregue do filme «Um chá no deserto», voltou a adormecer nas dunas, olhando a mulher estranha às origens da sua cor. E sim, correu água sobre a areia no deserto durante três dias como diz o Poeta Lídia Jorge ou o amor nu, em cada canto não tivesse sido descoberto.
Em muitas circunstâncias e tempos se faz o caderno dos apontamentos do Poeta. Até o cocheiro atento ou não à maioridade da rapariga, aceitava o seu corpo doado e ainda não amado, ainda não noivado, ou, ainda era o Poeta demasiado jovem para entender aquele estado? Eu mãe-Poeta digo:
- Ó minha filha não fales alto, ninguém tem de saber que ainda estás no comboio dos nadas e que só depois da lucidez te repetirás e com ela entenderás os preceitos.
O comboio seguia junto ao mar porque ali o rio parecia o mar. O Poeta pela janela olhava o horizonte e aqui e ali presumia as cavernas nas rochas, aquelas que guardavam as sabedorias que não correspondiam à verdade. Enfim, era a viagem. Era a suspeita aqui e ali de que o livro procurado se faz ao Poeta ladrando como um cão que o arreda da esperança de entrar no carreiro da montanha. Esse carreiro, como nos mostra o filme, é um pedaço de terra que serpenteia até ao céu. E para quê? Para nos demonstrar que só estamos acompanhados de nós. Mas há futuro dizia Rui, o Belo.
Num vasto campo de milho, o Poeta utiliza a natureza por decifração e abre uma especial carola que guarda o correio que lhe é destinado. Depois de tantos anos chegar à primeira desilusão, é duro, e é duro, partir daí. O bosque que o Poeta já foi, ilumina-se só com uma arvore e lhe não basta: aquela. Parece-lhe ver uma terra de infâncias no meio daquele milho, no meio daquele acontecimento que se inicia também com pedras, pedras das montanhas, pedras com formato de condição humana, fosse o que viesse a ser essa condição em Jerusalém.
Assim, li este extraordinário livro de poesia de Lídia Jorge. Deste modo sugeri o filme: a flor de lymo que poderia dizer melhor do Poeta, quando do fim do périplo ao ponto inicial do pôr à prova, dali mesmo partiu ele, sorrindo, com o seu frasco de desbotadas flores na mão, e acredita-se que se fez de novo à expectativa.
«Estuário» (D. Quixote, 2018) é o mais recente romance de Lídia Jorge, no qual domina uma metáfora forte: o estuário surge, para a escritora, como uma paragem antes do esquecimento…
UM CERTO REGRESSO
Em Estuário, Lídia Jorge volta, de algum modo, a O Dia dos Prodígios, não para repetir o tema, mas para retomar um certo sentido bíblico ou até litúrgico na consideração do tempo. Se o primeiro romance, justamente celebrado, nasceu da urgência libertadora, e se Os Memoráveis procuram uma reflexão feita a partir da relatividade dos acontecimentos, das pessoas e das coisas, Estuário parte da crise portuguesa e procura reencontrar “o carácter estoico e a honradez antiga” – perante a incapacidade de uma resposta que permita uma “sobrevivência digna”. E o que é aqui o homem moderno? Alguém que não sendo capaz de salvar o mundo, procura a ficção como modo de tentar consegui-lo. Edmundo Galeano são várias figuras a falar ao mesmo tempo – e o tema central não é outro senão o da resistência. E é bom que se diga que Lídia Jorge regressa, com coerência e determinação, a um tema que é seu e a que tem voltado persistentemente, em diversos registos e tons. E diz a autora: “o livro é sobre a grande crise que estamos a viver – mais do que sobre a crise que passámos” (DN, 26.5.2018). De facto, é ilusório pensar-se que a crise circunstancial está definitivamente passada. Há elementos duradouros que exigem reflexão e prevenção. E, ao longo de todo o romance, notamos um apelo constante a que nos mantenhamos atentos e firmes, e mais do que isso, que estejamos ativos. De facto, há muitos elementos dissuasores que impedem que as vozes cidadãs cheguem onde devem chegar para ser ouvidas. A comunicação de que muito se fala, torna-se tantas vezes uma ilusão. É este o problema da democracia hoje, tão mergulhada em crises e perplexidades, porque faltam instituições mediadoras, que impeçam a tirania do número, do imediato e da indiferença. E nos desencontros com o Estado a que aqui assistimos é da falta de mediação que, essencialmente, se trata.
UMA FAMÍLIA ENCLAUSURADA
O que encontramos no romance é uma família que vive enclausurada. E presenciamos um diálogo entre os grandes dramas globais, os processos históricos, e o que está próximo – o que vive ao nosso lado, sem cuja compreensão não podemos entender quem somos e onde estamos. Afinal, só se pode perceber o significado da tragédia dos outros quando esta deixa de ser abstrata – quando o medo deixa de ser difuso e passa a ser possível e próximo. Ao sentir a compaixão pelo próximo compreende-se que se pode escrever sobre o longínquo, sem que seja através de um mero conjunto de vagos lugares comuns. A distância desempenha, pois, um papel fundamental – os grandes problemas globais deixam na penumbra os dramas concretos que estão perto. E como em O Dia dos Prodígios também há a presença da magia, em breves apontamentos. Por exemplo, um casal atira ao mar uma mensagem dentro de uma garrafa à espera de uma boa notícia. Só os escritores podem perder o pudor para falarem sobre o que cada um procura esconder. Lídia Jorge tem-no repetido e assume como romancista o dever de não deixar por mãos alheias essa determinação. Urge desocultar o que está escondido. Resistência e emancipação, eis o que aqui encontramos ao longo de toda a obra. E Charlote encontra a sua força revelando a sua pele e o seu corpo, tornando a vulnerabilidade um modo de afrontar o medo, protagonizando uma história de amor. E que é o medo senão uma recusa de sermos nós perante os outros? Fechamo-nos dentro de uma concha, enclausuramo-nos e a memória, em lugar de se tornar um modo de nos abrirmos aos outros, torna-se lugar de ressentimento. Estuário poderia, segundo a autora, ter-se chamado “Casa dos Sonhos Trocados”. A crise geral, de facto, deve-se a uma inversão de valores e de sonhos… “A partir do que escrevemos tentamos iluminar. Cada frase é uma sombra da sombra de um sonho. Esse sonho é a realidade” (JL, 23.5.18).
Edmundo Galeano andou pelo mundo, esteve numa missão humanitária do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no campo de Dadaab e regressou à casa paterna sem parte da mão direita. A grande casa de cinco pisos do Largo do Corpo Santo é uma metáfora da vida e do mundo e a mão direita desfigurada de Edmundo torna-se motivo da defesa da invenção literária perante a realidade nua e crua. Manuel Galeano, o pai, representa um tempo ligado ao mar que passou, mas faz da honradez a sua marca indelével, até às últimas consequências. A espera do Estado é desesperante, mas não é essa a salvação que se pode esperar. A resistência, afinal, manifesta-se contra esse Estado burocrático, distante, insensível. Há a frieza de Amadeu Lima, mas também o encontro entre ele e Charlote. São as duas faces da moeda – quem representa o poder de decisão e quem desesperadamente pede uma solução. “O que tinha ficado, isso sim, era um relâmpago que unia pessoas. Entre eles acontecia um relâmpago”… Esta era a face oculta de uma relação cheia de interrogações. A ficção da literatura torna-se um modo de afirmação substancial da resistência e da emancipação. Mais do que na culpa, importaria pôr a tónica na determinação em ir em frente. A literatura fixa a imagem que fica.
SOB A SOMBRA FERNANDO PESSOA
Se é verdade que “Ode Marítima” de Álvaro de Campos marca este romance – entre o drama do mar e a defesa da casa –, a Ilíada torna-se referência natural de um modelo literário revelador da humanidade de sempre. O funeral de Heitor, o herói amado pelos deuses, é lembrado – “como se o destino dos homens fosse um eterno combate, havendo um outro valor a defender” – para além do “compromisso dos contendores de adiarem por uns dias a nova batalha”. E Heitor é sempre um símbolo especial. Apesar de derrotado por Aquiles, depois de vencer Pátroclo, deixa-nos a ideia de que é essencial resistir. Com esta matéria-prima far-se-ia o caminho de salvação da humanidade, não feita de abstrações, mas de gestos e compromissos concretos. E aqui começa o romance de Edmundo Galeano, denominado 2030, no qual vamos encontrar temas de ameaça e perdição, mas também de salvação. Do que se trata é de um processo de aproximações sucessivas – a Terra gerida por quem tivesse a bomba nuclear ou o maior número de armas potentes e mortíferas; a ocorrência do Apocalipse e o subsequente Inverno Nuclear; e por fim a salvação dos que passavam por perto… “Salvavam-se os que conhecia, aqueles que surpreendera em plena batalha pela vida diária, esse humilde plano”… E que é o estuário? O encontro do rio e do mar, da água doce e da água salgada. A vida faz-se de contradições e complementaridades. E este romance permite-nos lidar com uma realidade multifacetada e inesgotável. Uma metáfora forte: o estuário surge, para a escritora, como uma paragem antes do esquecimento… E, não por acaso, Lídia Jorge usa como paráfrase do romance o que diz Saint-John Perse: “Eleva-se em nós um canto / que não conheceu nascente / e não terá foz em estuário”…
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
O Ensaio Geral desta sexta-feira é dedicado ao jardim botânico do palácio nacional de Queluz, que foi reabilitado e mereceu o prémio da União Europeia para o Património Cultural, prémio Europa Nostra. Convidados da Renascença foram Manuel Batista, presidente do conselho de administração da Parques Sintra; Nuno Oliveira, engenheiro que faz a direção técnica do espaço; e Guilherme d’Oliveira Martins.
Creio que as pessoas se perdem de nós e nós delas como se empurrássemos mundos que só se distanciam porque com o tempo somos conquistados por outros modos: pela morte ou pela vontade de uma escrita que os aceita, os quer buscar mesmo até à nudez que nos esclareça de tão blindada se sentir.
E escreve Lídia
Que a vida só está completa quando, ao morrermos, sentimos que obtivemos o conhecimento suficiente para outra vez nascermos. E essa contradição entre saber e percurso parece querer dizer que alguma coisa não está no seu lugar, mas está.
Escrever sobre este poderoso romance não é fácil, nem pretendo fazê-lo de jeito tradicional. Vou tentar dizer dele o que melhor saiba pelo ângulo que o senti, e direi de modo bifurcado, entre o espaço protetor do romance e o espaço sem contemplações do mundo cá de fora. E assim
Oferece-se também Edmundo para ser adivinhado neste livro e viver nele - terra tremenda - todas as traves, as casas, as muralhas, as ameias, o crepitar de vidas que ele quer colher no seu livro, escrito por sua mão amputada, por seus olhos fotográficos, pela sua capacidade de decifrar até quando desejará escrever tão avidamente o livro que tanto deseja, e deseja-o enfim, ao ponto de saber por entre as coisas secretas, que nenhum passo mais o levará a escrever algum dia esse livro, embaraço desvendado e eventualmente perturbador da sorte que lhe reserva um texto, qual grito de ave, lâmina.
Quero pensar que por entre os personagens de Estuário, por Edmundo Galeano chego a Tatiana e aos brincos de pérola, como proponho a chegada de David e da baleia cantora ao título do livro de Edmundo, a esse título 2030
E
Porque não havia uma correspondência entre as palavras e o mundo, ainda que muitos dissessem que sim. (…) que sentido tinha isso? O amor de Tristão e Isolda já não existe mais à face da Terra, ou antes, sabia-se agora que, afinal, sempre fora aquilo que fora, um mito construído com imaginação e palavras.
Um brinco de pérola salgada muito bela e criado em água doce e mansa. Ou a pergunta de David
Mãe, uma pessoa que se pendura de uma trave para morrer é muito fraca ou muito forte?
E responderá a baleia cantora pelo hino de Deméter que afinal é feliz quem dos viventes pergunta tal coisa.
Pois e não é que
Edmundo Galeano também entrou neste livro por uma garrafa que aportou à casa das vidas que queria escrever, que aportou ao estuário das saciedades e dentro da garrafa, uma película inextensa lhe permaneceu em negativo algures no seu cérebro.
Este livro de Lídia Jorge é também poético de tão real. Parece todo ele escrito entre o pôr-do-sol e o vir da noite, e, acaso adivinhais que nele também é dito
Quem disse alguma vez que os limites da nossa linguagem são os limites do nosso mundo, troçou da inteligência alheia. (…) Por que razão a vida sonhada era tão leve e a vida vivida, tão pesada? A imaginação tão diáfana, a realização tão grosseira? Perguntou-se Edmundo Galeano, com os olhos cheios de tristeza.
Edmundo optará por um regresso à casa, à casa junto à Praça do Mar e escreverá afinal o seu tão ansiado livro. Escreverá numa passada tutelada pela biblioteca onde A Cartuxa de Parma, A Peregrinação, a Ilíada, a Odisseia, O Homem sem qualidades, o Livro do Riso e do Esquecimento, a Ode Marítima, iluminarão sempre o que de melhor de si se salvará: a mão mutilada e afinal plena, ampla, como cavalo fogoso, agora esporeada para que a realidade não se fique por uma polegada acima ou abaixo do Estuário, antes substanciosa à vida.
Assim Lídia, neste teu livro senti uma mistura de inquietude e mágoa, humor e absurdo, capricho e segredo, mito e fantasia e o quanto as ligações humanas são todas tão perto do caos, verdade-herdeira de quem as escreve por mão insubmissa.