ANTOLOGIA
MELANCOLIA DE UM ALEGRETTO…
por Camilo Martins de Oliveira
Diz Eduardo Lourenço: "o que eu sou como ser mortal (o que todos somos) está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia". Diz-se que Pio XII, na agonia da sua morte, pediu para ouvir como companheiro de viagem esse segundo andamento da sinfonia de Beethoven. Escuto-o agora, em cálida tarde de sábado, enquanto me passeio por leituras... E surge-me a interrogação de Paul Gauguin, pintada em ilha perdida do Pacífico, quase nos antípodas de nós: "quem somos, donde vimos, para onde vamos?"
No percurso da leitura, deparo com dois títulos no El País: "Era como estar en una pelicula" e, páginas adiante,"Espacios libres de niños/ los hoteles y restaurantes solo para adultos experimentan um polémico auge/ la crisis acelera esta opción minoritária/ que el sector abraza para captar clientes". O primeiro título refere-se ao tiroteio mortífero num cinema de Denver; o segundo nem precisa de esclarecimento. Ambos, afinal, traduzem fatores culturais da crise em que mergulhámos. Assim, apesar de doutorando em neurociências, o jovem Holmes "assumiu-se", na estreia de mais um filme de Batman, como mais um herói da violência indiscriminada que, todos os dias, apetitosamente nos é servida pela "comunicação social"... Porque a exploração da fraqueza, do mimetismo, da debilidade mental dá lucro aos que vendem!
Também as crianças, como as coisas bonitas do passado e tantas do presente, todas essas que queremos livres, construtivas e fraternas, já são, ao que parece, obstáculo ao lucro... Talvez não fosse mau lembrar que esquecer os outros, a pessoa humana -- que é real -- por essa ideia matemática e abstrata que é o dinheiro, é, muito simplesmente, uma estupidez.
TERRA DOS HOMENS…
Nos anos 30 do século passado, meditando sobre o avião que pilotava, o desenvolvimento das máquinas e o advento de uma nova era técnica, Antoine de Saint-Éxupéry escrevia (cf. «Terre des Homme», III – L’Avion): "Só agora começamos a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir. Tudo à nossa volta mudou tão depressa: relações humanas, condições de trabalho, costumes. A nossa própria psicologia foi abalada nas suas mais íntimas fundações. As noções de separação, de ausência, de distância, de regresso, embora mantenham os mesmos nomes, já não contêm as mesmas realidades. Para apanhar o mundo de hoje, usamos uma linguagem estabelecida para o mundo de ontem. E a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza pela simples razão de que corresponde melhor à nossa linguagem"...
Em 1990, Jacques Le Rider publicava nas PUF o seu "Modernité viennoise et crise d´identité (1890-1938)", onde defendia que a modernidade vienense se tornou " numa das nossas referências estéticas e intelectuais mais importantes", por ter pensado a modernidade "como premonição do fim de um mundo". Situando-o no tempo, vemos como o movimento modernista vienense baliza uma crise que despoletou a queda das grandes monarquias da Europa central, os processos de industrialização e colonização aceleradas, as revoluções socialistas e anarco-sindicalistas, e os conflitos e vexames inerentes a tudo isso e que conduziram à hecatombe da 2ª Grande Guerra.
Para Jacques Le Rider, Schoenberg, Schiele, Musil, Freud, Wittgenstein, todos "os criadores vienenses refletiram de modo crítico a sua condição de homem moderno,feita simultaneamente de euforia e mal-estar..." Mas essa criatividade deveu-se "à imigração e à diversidade étnica, não à homogeneidade nacional..." Assim, Le Rider atribui à incapacidade política de pensar essa coexistência o fim do "modelo muito elaborado da pluralidade nacional, linguística, étnica e cultural no centro da Europa". Quero hoje começar a refletir sobre a crise presente e sobre a nossa interrogação da Europa. Não numa perspetiva economicista, nem à luz dominante da prioridade dada à política financeira. Mas antes partindo da consideração do povo, dos povos europeus de hoje, e dos desafios a que terá de responder para começar "a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir".
Aliás, a casa dos homens está sempre em construção, pois das pessoas que nascem, vivem e morrem, ela é feita. Da Jerusalém Celeste à Torre de Babel, do monaquismo às comunidades hippies, por constituições de estados e convenções internacionais, vamos tentando... Temos de olhar para a Europa de hoje, tal como se situa num mundo em globalização, em que as tecnologias de comunicação e transporte tornam o longínquo imediato e próximo e vão confrontando o sentimento de si com entidades várias e a tentação mimética de misturar tudo. A miscigenação étnica e cultural é hoje um fenómeno crescentemente generalizado e frequente. Mas também gera receios, desconfianças, racismo, fanatismos. Por isso mesmo, se torna tão importante que cada um se compreenda melhor a si, cada pessoa, cada povo, cada cultura. A consciência informada e limpa da própria identidade é condição prévia do convívio e do diálogo, e estes são participação e partilha, não são eliminação.
Fala-se do inglês como língua universal e há quem pretenda que as línguas nacionais ou os dialetos regionais não têm razão de existir num mundo global. Mas o inglês que funciona como língua franca é também um inglês que se destila, filtra e empobrece e, por vezes, já pouco tem de inglês clássico, ou pouco a ver com a cultura anglo-saxónica (que não é só a dos negócios) Quantos dos nossos "CEO", que fazem "statements" com três palavras de inglês para duas de português, conseguirão ler Shakespeare no original? Deverão por isso os anglófonos castiços abandonar o vate ou todos nós esquecê-lo? Ou não deveremos nós, portugueses, conhecer melhor, como diria Eça, "o nosso Camões"?
Na Europa de hoje vivem - e são europeus, tal como os afro-americanos são americanos e não já africanos, e isto não só por imposição legal ou reconhecimento de um direito, mas culturalmente - gentes de variadas origens étnicas, geográficas e culturais. Basta ver na televisão jogos entre seleções nacionais europeias de futebol ou atletismo para disso nos apercebermos, ou, mais simplesmente, sair à rua. Cada um deles deverá ter uma dupla função: a de aprender bem a língua do país que os acolheu (ou já a seus pais e avós) e, com a língua, ir apreendendo uma cultura enquanto visão e modo de estar no mundo e na vida; mas também, porque o modo vive e evolui no tempo, enriquecer essa cultura e essa língua com a contribuição do seu pensamento, sentimento e discurso. Afinal, como qualquer de nós. E não têm a língua e cultura lusíadas sido enriquecidas pelas literaturas brasileira e afro-lusófonas?
Em próxima oportunidade, poderemos falar na importância das chamadas humanidades na construção da casa que todos teremos de habitar. Teremos de perceber como a preservação da memória histórica e a transmissão da língua viva são fatores de entendimento, de diálogo e de convívio.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 27.07.2012 neste blogue.