Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Assinalamos hoje, no termo do ano 2024, o centenário de António Ramos Rosa (1924-2013), um grande poeta que marcou a tradição do Algarve na cultura da língua portuguesa.
No último número dos “Anais do Município de Faro” recordei Nuno Júdice, como companheiro inesquecível. E nada melhor para o fazer do que lembrar o belo poema, que há um ano citei, sobre o silêncio das palavras. “Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio / suspenso dos gestos com que eles desenham / cada objeto, cada pessoa, ou as próprias ideias / que delas dependem. Por vezes, porém, as / palavras são o seu próprio silêncio. Nascem / de uma espera, de um instante de atenção, da / súbita fixidez dos olhos amados, como se / também houvesse coisas que não precisam / de palavras para existir.” (Pedro, Lembrando Inês, 2001). As palavras nascem da espera, da atenção - de realidades e acontecimentos que não precisam de palavras para existir. Sem palavras há coisas que não poderiam ter vida, porque o presente projeta-se no tempo que passou, no tempo atual e no futuro – para lembrarmos a expressão de Santo Agostinho. Melhor do que ninguém, o poeta põe-nos perante o insondável mistério do ser. Na sua ausência, não esquecemos a serena reflexão, que consideramos profética e que nos leva ao centenário de António Ramos Rosa, cujo espírito aqui está bem presente.
LEMBRAR A POESIA 61
Este foi um ano de diversas partidas. Além de Nuno Júdice, deixou-nos Casimiro de Brito, cuja obra merece atenção. Foi uma presença da “Poesia 61” que seguiu Gastão Cruz e Manuel Baptista. E essa experiência continua presente entre nós, já que esses ecos do Sul correspondem não a uma escola, mas à compreensão da Arte e da Cultura como fatores inesgotáveis de criatividade e de inovação. Recordo, por isso, António Ramos Rosa, que não tendo participado na “Poesia 61” foi, podemos dizê-lo, um inspirador e uma referência. E se dúvidas houvesse descobrimos que a atenção à realidade, o não alinhamento e a recusa de uma atitude de grupo foram uma marca seguida pela geração mais nova de Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Luíza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito. De facto, para António Ramos Rosa “a poesia distingue-se da mística na medida em que constrói um corpo e reconstrói o ser na própria linguagem. A palavra do poeta é comparável à força muscular na sua extrema intensidade. Ela é uma descida iniciática à matéria. Por isso, podemos considerá-la uma espécie de densidade, de música. Não há diferenças entre a criação do sentir poético e o amor da terra. Afinal, no corpo da linguagem encontra-se a luz da terra”. E foi Eduardo Lourenço quem disse: “o coração é a essência da poesia de Ramos Rosa vertiginosamente ocupada pelos mistérios da realidade – de toda, da mais trivial à mais enigmática. Em suma, toda ela não foi mais do que uma conversa sem fim com o poema como esfinge do real”.
O GRITO CLARO!
Em homenagem a António Ramos Rosa, o referido número dos “Anais” publicou cinco poemas do livro inédito “A Duração do Gérmen”, escrito nos anos 90. São poemas que nos levam ao encontro do Mar e de uma ilha. A nudez pressupõe a pureza essencial da atenção, em vez dos “volúveis arabescos do desejo”. E assim o poeta privilegia a “obstinada avidez de compreender”. Como ir além da superfície? E só o silêncio pode permitir que se desvende a “inteligência do vento”, capaz de nos levar à necessidade de “separar a presença da ausência”. Com efeito, a alma assemelha-se a uma ilha que é “feita de acolhimento”, mas que também se define pela ausência. E é o silêncio que marca a sua existência, num desejo intenso de ir ao encontro do mistério insondável das diferenças, que nos completam e da palavra essencial que faz nascer o mundo. E oiçamos: “Ilha / uma pedra mais silenciosa do que as pedras / a plenitude de estar perante ti / com a fronte lavada / pelo teu silêncio / que é só o teu silencio nu / através da monotonia de um mar / que não quebra o teu silêncio / que o acentua / /que o prolonga / e o faz respirar / Cessaram as imagens / os volúveis arabescos do desejo / a obstinada avidez de compreender / Estou perante a nudez / e estou nu / Tenho a inteligência do vento e estou presente / sem separar a presença da ausência…”
A DURAÇÃO DO GÉRMEN
É esse mistério essencial da palavra que faz nascer o mundo que revela a um hóspede silencioso como só a palavra pode abrir horizontes. E se há palavras que têm dificuldade em fazer mover o mundo, há sempre a possibilidade de abrir novas oportunidades para entender melhor o imutável. E a palavra, sempre ela, torna-se a memória do murmúrio, que enche o silêncio do universo, enquanto marca da humanidade. Afinal, perante um poeta, apenas podemos aspirar a compreender-nos melhor. E António Ramos Rosa ajuda-nos a desvendar o mistério insondável das raízes do tempo e das coisas, já que “o ato poético é um ato de concentração, porque o poema se separa do mundo quotidiano, do mundo objetivo, de um mundo que está dividido e, portanto, mutilado. O poema busca uma realidade perdida e a sua integração nas palavras e nos objetos que são sensibilizados pela impulsão poética”. Nesta afirmação feita na entrevista concedida a Francisco Bélard, em 1988, por ocasião da atribuição do Prémio Pessoa está contida uma revelação importante, que permite compreender o coração aberto à terra, que singulariza o poeta. Ao tentar responder quem era verdadeiramente esse poeta, retratado no ocaso da existência, José Tolentino Mendonça aproximou-o dos místicos – “esses que se confundem facilmente com peregrinos, estrangeiros e deslocados ou com mendigos. Não têm dono, não são heraldo de ninguém, não convergem para uma meta precisa. São frugais e leves. São abertos e vigilantes. Preservam a sua humildade com mansidão. A sede de absoluto e a nostalgia dos grandes espaços que preservam é um espelho da imensidão interior que obstinadamente cultivam. Definem-se como errantes, hóspedes habituais da natureza e só eventualmente dos homens, vivem a itinerância como pátria espiritual. Se suprimirmos o que eles não veem, suprimimos também o que veem. Eles sabem que silêncios, solidões e desertos não são necessariamente lugares, mas estados do coração a percorrer sem fim, e tornam-se mestres porque antes se tornaram justos” (Prefácio a Poesia Presente – Antologia, Assírio e Alvim, 2014). É Pascal que regressa com verdadeiro “esprit de finesse”. E razão tem Maria Filipe Ramos Rosa (a quem renovo os agradecimentos pela confiança em permitir a revelação do projeto inédito) quando diz que nos anos 90 o caráter repetitivo do poeta lembra “exercícios diários de sobrevivência”. Mas, mais do que isso, são glosas de temas fundamentais, que encontramos desde o “boi da paciência” ou do “funcionário cansado de um dia exemplar”, sem esquecer as magníficas traduções de Foucault, Éluard ou Mounier. E ouvimos: “Quem escreve / quer juntar-se / à pedra, / à árvore // E ser através delas /o tranquilo sopro / do inominável” (A Intacta Ferida, 1991).
Regressamos hoje a Carolina Michaelis de Vasconcelos (Berlim, 1851, Porto, 1925), a primeira mulher catedrática em Portugal e a mais inteligente e arguta estudiosa da língua portuguesa.
DIVAGAÇÕES FILOLÓGICAS Quando escreveu “A Saudade Portuguesa” esclareceu com muita clareza a originalidade do conceito e a ligação do mesmo a uma perspetiva de humanismo universalista. A obra compõe-se do que a autora designa como divagações filológicas, designadamente em torno de Inês de Castro e do Cantar Velho «Saudade Minha - Quando te veria?», cabendo a segunda edição, revista e acrescentada, à Renascença Portuguesa, no Porto, à Seara Nova, em Lisboa, e ao Anuário do Brasil do Rio de Janeiro. 1922. E nota-se a intervenção de António Sérgio no sentido da abertura e da riqueza do conceito. Os especialistas consideram o estudo de grande brilhantismo e profundidade, sendo dividido em nove capítulos, com um post scriptum e um vasto conjunto de anotações. Os capítulos têm os seguintes títulos: Inês de Castro: história e lenda - O drama inesiano ‘Reinar despues de morir’; A referida canção ‘Saudade minha - Quando vos veria?’; D. Sancho I e Maria Paes, a Ribeirinha; Saudosistas autênticos e apócrifos; O que é a Saudade, linguisticamente; O que é a saudade, psicologicamente; Soledades; Cantares velhos; Motes e Voltas. Com recurso a uma segura hermenêutica, a autora analisa um grande número de textos da literatura popular e da literatura palaciana em que é usada a palavra Saudade, desfazendo atribuições e datações erradas e iluminando, de forma inovadora, a história de Inês de Castro. Trata-se de uma obra imprescindível para o estudo deste tema central da filologia, literatura e cultura portuguesas. Na rua da Cedofeita, no Porto, a casa de Carolina e Joaquim de Vasconcelos era um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, a começar na chamada Geração de 70, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases do progresso baseado na cultura e na liberdade. O conhecimento sobre a realidade portuguesa por parte de Carolina Michaelis enchia de espanto os seus leitores. É impressionante a lista dos trabalhos que publicou sobre história e crítica literárias. Lembremos os estudos sobre o "Cancioneiro da Ajuda" e um glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado.
INESGOTÁVEL CAMPO DE INVESTIGAÇÃO A literatura portuguesa foi um inesgotável campo para a sua investigação sobre as origens da poesia peninsular. E o certo é que abriu perspetivas inovadoras, que hoje ainda são imprescindíveis. Em 1901, o rei D. Carlos concedeu a Carolina Michaelis de Vasconcelos o grau de oficial da Ordem de Santiago da Espada, como preito de homenagem ao seu extraordinário labor científico. E em 1911, logo após a implantação da República, foi nomeada professora da nova Faculdade de Letras de Lisboa, lugar que não aceitou, por motivos familiares. No entanto, assumiu o encargo na Universidade de Coimbra, onde recebeu, em 1916, o grau de Doutora honoris causa. Em 1923 foi-lhe outorgada idêntica honra na Universidade de Hamburgo. Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor, a sua vida demonstra a importância da ligação entre a opção pessoal e a vocação científica. Considerou a Saudade como um “traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas”, muito mais do que a Sehnsucht, característica da alma germânica. “Refletida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou do imperativo energético da atividade ponderada”, a palavra alemã teria “muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios”. “A saudade e o morrer de amor” são para a estudiosa “as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome”. Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e as obras que estilisticamente derivam dele, como a “Consolação de Israel” de Samuel Usque, as “Saudades da Terra” de Gaspar Frutuoso, as “Rimas” de Camões, os Episódios e as Prosopopeias de “Os Lusíadas”, as “Cartas da Religiosa Portuguesa” e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de “Frei Luís de Sousa”. Não faltam no Cancioneiro do povo; nem na sua fase arcaica, os reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é, nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até Pedro e Inês. E logo no alvorecer da poesia, surgiram naturalmente “lindos lamentos de amor e de ausência, como na singela composição, em que o rei D. Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: cuidado e desejo”.
Vendo a mestra com olhos de hoje, não passa despercebida a intenção claramente emancipadora da mulher que defendia a liberdade e a igualdade, a igualdade e a diferença como faces do mesmo espelho, nunca como realidades antagónicas. Como disse Gerhard Moldenhauer na oração fúnebre: “Quem, para mais conscientemente se orgulhar de ser português, alguma vez se interessou pela nossa herança espiritual, encontrou sempre no excecional espírito de Carolina Michaelis o mais amável dos mestres e o mais seguro dos guias”.
XXVII. O universalismo da cultura portuguesa: língua como fator de diversidade e de encontro.
O idioma é essencial para a afirmação de uma identidade, mas também para enriquecer pelo diálogo culturas e civilizações. A língua portuguesa projetou-se em todos os continentes. Quando falamos dela, consideramos uma longa história, a partir do galaico-português, língua antiga, que cedo alcançou assinalável maturidade. O português ou o espanhol jamais foi dialeto um do outro. A partir da matriz galega, temos uma diversidade de influências, como a dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico, pela parte bilingue da população, além dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista… Devemos falar de uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas. Falamos de várias culturas, pela natureza própria da diversidade política, como língua de unidade nacional, como língua segunda, ou como língua integradora no complexo mosaico étnico e geográfico – ora em África, ora no Brasil. E quando referimos várias línguas, reportamo-nos ao desenvolvimento dos crioulos, de raiz portuguesa, mas com uma vida própria. Lembremo-nos de Cesária Évora ou de Mário Lúcio e encontramos pontes essenciais de diálogo. De facto, sem idealizações ou simplificações, e muito menos paternalismos, a partir de exemplos concretos, trata-se de uma língua que deve ser vista como realidade em movimento. Como disse Rui Knopli, a língua tenderá a ser um denominador comum de vários espaços africanos, asiáticos, brasileiros, europeus, numa espécie de “pátria coincidente”. E para o compreender, basta lermos a literatura da língua portuguesa contemporânea. A língua inglesa é indubitavelmente fundamental nos vocabulários científicos, mas temos de assegurar o diálogo interlinguístico, designadamente no âmbito das ciências sociais, nas quais a diversidade da comunicação tem de ser compreendida, sob pena de desvirtuarmos o conhecimento. Como insistia Vasco Graça Moura, nenhum de nós quer uma língua única, totalitária.
Tem de se abrir espaço para a diversidade linguística, estabelecendo pontes entre os vários idiomas e as várias culturas. Não podemos esquecer que as chamadas Humanidades irão ganhar uma configuração cada vez mais fortemente relacionada com todas as disciplinas científicas. Como investigar as literaturas e as artes sem considerar a diversidade de culturas e idiomas? Vergílio Ferreira dizia, por isso, que não se pode pensar fora das possibilidades da língua em que se pensa. Infelizmente, há quem julgue que a avaliação académica deve ser uniformizada e redutora, o que é contrário da compreensão da diversidade. E não se pense que a tendência futura é para a existência de uma única língua franca. Num mundo globalizado, não falamos da língua portuguesa como uma realidade fechada, mas de uma realidade aberta e em movimento, e aí está a sua riqueza e as suas virtualidades.
Para compreender as culturas da língua portuguesa, temos de ler Machado de Assis, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, João Cabral de Melo Neto, António Cândido, Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Fonseca, Alberto Costa e Silva e Nelida Pinõn, mas igualmente Baltazar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Daniel Filipe, Luandino Vieira, Mário Pinto de Andrade, Corsino Fortes, Pepetela, José Craveirinha, Mia Couto, Orlando Costa, Paulina Chiziane, Ana Paula Tavares, Ondjaki, José Eduardo Agualusa, Arménio Vieira, Onésimo Silveira, Germano Almeida, Vera Duarte, Albertino Bragança, Alda do Espírito Santo ou Luís Cardoso. Nesta diversidade, não exaustiva ou sistemática, poderemos ter a compreensão de várias culturas que se cruzam e se enriquecem mutuamente, sem uniformidade nem modelo.
“A velocíssima rapidez com que jogadores e técnicos portugueses se adaptam ou tentam adaptar a um bom uso da língua oficial de Espanha quando aí trabalham ou residem, é inversamente proporcional aos esforços que desportistas e técnicos espanhóis fazem para se adaptar a um bom domínio do português em terras lusas”.
Continuando, acrescentei:
“Refira-se que a ser verdade de que quem fala português tem mais facilidade de falar (e compreender) castelhano, seria de prever, por tal vantagem, que houvesse proporcionalmente mais espanhóis a interessar-se pelo nosso idioma”, o que manifestamente não acontece (A Língua Portuguesa no Mundo, XLIX - Não ao Complexo de Inferioridade Linguístico (II)).
Exemplifico-o referindo um treinador espanhol do Benfica (Camacho), “useiro e vezeiro no uso do castelhano no nosso país, apesar de residente em Portugal por razões profissionais, nunca se lhe tendo ouvido, via comunicação social, um bom dia, boa tarde, boa noite ou obrigado”, o que era extensivo ao seu compatriota Quique Flores, sem reclamação ou protesto, o que não sucederia se portugueses, por razões similares, residissem e laborassem no país vizinho, como sucedeu com Carlos Queiroz, José Mourinho, Cristiano Ronaldo, Futre ou Figo, o mesmo sucedendo agora, por exemplo, com João Félix e João Cancelo.
Aludo a um complexo de inferioridade linguístico luso, mesmo no nosso próprio país, quer através de um uso confidencial do nosso idioma ou sua baixa consideração social, quer por se entender serem os espanhóis maus em línguas, porque não se esforçam ou presumem não valer a pena, dada a nossa permissividade, sendo esta comum a uma percentagem significativa das nossas elites e jornalistas.
Por mim, em Portugal (como residente) ou Espanha (como turista ou viajante), tento fazer-me entender em português, usando-o e repetindo pausadamente as palavras, justificando-se, usando o inglês em caso de conflito e de não reciprocidade, se exequível. E são cada vez mais os espanhóis que entendem o meu português, dado que determinados maus hábitos de permissividade plena não se justificam. O que é bem diferente de morar e trabalhar no dia a dia noutro país, que não o nosso (mesmo que temporariamente).
Felizmente, há quem pense ser do mais elementar bom senso e uma questão de respeito aprender o nosso idioma quando residentes e trabalhadores entre nós aprendendo, no mínimo, o português básico e fundamental para uma integração saudável. Demonstra-o o atual treinador da seleção nacional Roberto Martinez, um espanhol da Catalunha, com aulas presenciais ou on line, nunca menos de duas horas diárias, para comunicar com os jogadores e entender a nossa cultura, tradições e história, tendo feito em português a primeira convocatória como selecionador de Portugal, usando-o quando interpelado no nosso país, onde reside e trabalha. Uma conduta adequada que deveria ser a norma, e que, até agora, é mais a exceção que a regra, o que se lastima.
Tem-se um assunto comum, há muitos anos, querer que o português seja um idioma oficial da ONU, a par do inglês, francês, espanhol, chinês, russo e árabe.
São recorrentes as propostas, recomendações, declarações de intenção, entre outras manifestações de vontade, reiteradas por sucessivos agendamentos formais que, até hoje, não se concretizaram.
Recentemente, na última Cimeira da CPLP, em agosto deste ano, em São Tomé, o presidente brasileiro, Lula da Silva, recebendo forte ovação, afirmou: “Temos de aproveitar termos um secretário-geral das Nações Unidas que fala português e acho que deveríamos entrar com informações e um pedido nas Nações Unidas para que a língua portuguesa seja transformada em língua oficial da ONU”, o que foi recebido e apoiado por unanimidade pelos presentes, mas é omitido na decisão final desta XIV sessão de países lusófonos.
Não foi a primeira vez, dado que já em 2016, em Brasília, na XI Cimeira da CPLP, foi aprovada por aclamação uma proposta para que o português seja língua oficial da ONU, apresentada pelo então presidente brasileiro Michel Temer, da qual também é omissa a declaração final da reunião.
Por entre aplausos, aclamações, ovações, felicitações, saudações, registos sonoros de boas intenções, recomendações, reforços e resoluções, nada ficou, por escrito, quanto à mais que merecida proposta para que o nosso idioma seja aceite, por mérito e direito próprio, como idioma oficial da ONU.
Sendo uma das línguas mais faladas a nível global, pluricontinental, pluricêntrica, a mais falada do hemisfério sul, a terceira do ocidente, de África e do continente americano, internacional, global, de exportação e com futuro, impondo-se por si como fator demográfico e geopolítico, é incompreensível ser uma candidata permanentemente adiada ao fórum de uma organização internacional universal como a ONU.
Lemos, que este ano, o Tribunal Centro-Americano de Justiça propôs ao Conselho de Segurança da ONU incorporar o português como seu idioma oficial, baseando-se na resolução de 2017 da Assembleia-Geral sobre a cooperação da CPLP com as Nações Unidas e o ser língua oficial da Conferência Geral da UNESCO, o que servia de base legal para solicitar a integração da língua portuguesa como língua oficial daquela organização e, posteriormente, poder ser aprovada na AG.
A corroborá-lo houve declarações de uma anuência, entre os líderes da CPLP, de falarem em português na AGNU, na grande maioria das reuniões e, sobretudo, em debates gerais, acrescentando-se que “(…) para falar em português temos que ter tradutores próprios, porque o sistema das Nações Unidas não tem tradutores de português”, salientando-se o imenso financiamento exigido para tornar exequível o português como um dos idiomas oficiais da ONU.
Quem paga e em que proporção, por certo será um dos problemas pendentes a resolver, sendo de presumir que caberá a Portugal e ao Brasil, maioritariamente ou na totalidade, esses custos, porque mais desenvolvidos e tidos potencialmente como os principais interessados e beneficiários, sem esquecer que os demais países da CPLP, recentemente descolonizados, poderão alegar tal facto, além de um nível de vida inferior, sem se esquecerem de invocar as suas sequelas como ex-colónias, embora o Brasil, em tempos idos, também o fosse.
Melhor que nada, mas pouco, convenhamos, por entre declarações elogiosas e proclamatórias de boas intenções, até agora não concretizadas, indiciando-se que o português continuará a ser menorizado e secundarizado, desde logo pela exiguidade de meios do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, exemplificando-o a recente verba anual de 310 000 euros (! …) que lhe foi atribuída.
1. Apesar de se assumir, em primeiro lugar, como brasileiro, houve sempre em Caetano Veloso (CV) uma admiração e deslumbramento pela língua portuguesa. Não há nele ressentimentos em relação ao nosso idioma, que não tem como “imperialista”, “colonialista”, neocolonialista”, “racista”, aceitando-o como um mosaico de falas dos mais variados lugares, pois não há Portugal sem Brasil, sem África, sem as Índias, o Extremo-Oriente, sem o mundo por onde nos deslocalizamos e dispersamos geograficamente, sem uma vocação de extroversão, porque como profundamente o compreendeu Fernando Pessoa, não há o português e a lusofonia sem a língua portuguesa.
Há décadas, quando no seu país natal havia declarações desfavoráveis sobre a língua portuguesa, isolada da dos falantes dos países vizinhos e de todo o continente sul americano, CV foi uma das vozes que se fez ouvir para afirmar que tinha todo o orgulho em falar português, dada a sua singularidade na diversidade e ser um elemento diferenciador dos outros povos da América Latina e das Américas.
Este sentimento de amor e afeição ao Brasil e à língua portuguesa, e por arrastamento a Portugal e aos lusófonos, manifestou-o no decurso da sua vida e sólida carreira, ao afirmar: “O nome do Brasil não apenas me parece, por todos os motivos, belo, como tenho dele desde sempre uma representação interna una e satisfatória”, “Santo Amaro não tinha ricos nem pobres e era bem urbanizada e tinha estilo próprio: todos se orgulhavam com naturalidade de ser brasileiros. Achávamos a língua portuguesa bela e clara” (Verdade Tropical, edições quasi).
Não há melhor exemplo, para celebrar o idioma cmum, que a canção “Língua”, onde têm cabimento e se evocam Camões, Pessoa, Carmen Miranda, Chico Buarque de Hollanda, Glauco Mattoso, Arrigo Barnabé, Maria da Fé, a Flor do Lácio Sambódromo, a Lusamérica, Guimarães Rosa, a Mangueira, Luanda, Scarlat Moon Chevalier, sendo dela os versos: “Minha pátria é minha língua”, “A língua é minha Pátria/E eu não tenho Pátria, tenho mátria/Quero fátria”.
Como escritor fala-nos da “bela carta de Pero Vaz de Caminha narrando a viagem ao rei de Portugal”, no movimento Tropicália e a preocupação que houve em não se confundir com o luso-tropicalismo de Gylberto Freire que tem “como algo muito mais respeitável”, de Agostinho da Silva, “o fascinante português fugitivo da salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização”, que “Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações”, sem esquecer que “A extraordinária cantora de fados portuguesa Amália Rodrigues já era conhecida desde muito antes de a bossa nova surgir e parecia eterna”.
Em 1985, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, cantou o fado “Estranha Forma de Vida”, em português de Portugal, desconhecendo que Amália estava presente, subindo esta ao palco, perante uma ovação emocionada da assistência, gesto decisivo para o ressurgimento do fado e um reencontrar do público com a fadista, numa atitude desafiante e ousada, tanto mais que, segundo CV, “(…) eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as plateias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações”.
2. Foi este artista que universalizou canções como “Alegria, Alegria”, “Você é Linda”, “Leãozinho”, “Língua”, que recentemente (19.09.23) recebeu a medalha de Mérito Cultural do governo português, que assim se apresenta: “Meu nome é Caetano porque nasci no dia de são Caetano, em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos, mesmo na minha ausência. Nunca me senti uma exceção por causa disso”.
Criada “(…) para distinguir pessoas singulares ou coletivas, nacionais ou estrangeiras, pela sua dedicação ao longo do tempo a atividades de ação ou divulgação cultural” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 123/84, de 13.04), a medalha de Mérito Cultural atribuída a CV, embora merecida, é insuficiente, dado o seu destinatário, in casu, ser um dos maiores defensores e divulgadores da nossa língua, como cantor e músico, além de compositor, produtor, escritor, como património comum lusófono e da humanidade.
A distinção, meritória, peca por “inacabada”, embora reforçada pela atribuição a agraciados, entre outros, como Maria Bethânia, sua irmã (música/língua portuguesa), Agustina Bessa Luís (literatura), Álvaro Siza Vieira (arquitetura), António Ramos Rosa (poesia), Campo Arqueológico de Mértola (património cultural), Centro Nacional de Cultura (divulgação cultural), Eduardo Lourenço (filosofia/ensaio), Eugénio de Andrade (poesia), Eunice Muñoz (teatro), Fernanda Montenegro (teatro), Jorge Borges de Macedo (história), Manoel de Oliveira (cinema), Maria João Pires (música), Orquestra Gulbenkian (música) Roberto Barchiesi (língua portuguesa).
Daí ser justo questionarmo-nos duma eventual atribuição da Ordem de Camões, de um doutoramento honoris causa (em que a universidade espanhola de Salamanca se antecipou), incluindo o prémio Camões, este na sequência de uma interpretação mais ampla do prémio atribuído a Bob Dylan (Nobel da literatura) e Chico Buarque (Camões), por critérios não movidos por uma interpretação literal e estritamente literária.
Portugal e a língua portuguesa não se complementam nem realizam tão só na Europa, havendo um compromisso e desígnio estratégico atlântico e global que se afirma levando a Europa e o Mundo à lusofonia e esta à Europa e ao Mundo, sendo a língua portuguesa o seu motor e veículo primordial, havendo que reconhecer, a esse nível, o contributo crucial de CV.
CVI - SUBALTERNIZAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM AGENDAS COMERCIAIS
“No âmbito do procedimento aquisitivo realizado pela …, por recurso ao … Papel e Economato …, com a referência PAQ/04/2018 …, foi celebrado contrato entre a … a empresa …, para fornecimento de material de economato aos tribunais.
No âmbito da execução deste contrato, diversos tribunais manifestaram o seu desagrado com a notória subalternização da língua portuguesa nas agendas comerciais, em relação à língua espanhola, nomeadamente na identificação do mês e do dia da semana.
Questionada a …, foi-nos transmitido que “na análise de propostas efetuada aquando do procedimento pré-contratual para a celebração do acordo-quadro foram apreciados os requisitos técnicos de cada produto apresentado por cada um dos concorrentes, de acordo com os requisitos estabelecidos nas peças do mesmo procedimento, … e, bem assim, que a questão reportada não fora suscitada nem, naturalmente, apreciada em sede de análise de propostas”.
Não obstante este esclarecimento, a … não se conformou com a presente situação, a qual reconheceu ser, a todos os títulos, inaceitável, tendo submetido de imediato um pedido de exceção …, com vista a obter autorização para a aquisição das referidas agendas fora do regime do acordo quadro em vigor.
No passado dia … a … considerou não existir fundamento para o pedido de exceção, esclarecendo que a … poderia lançar um procedimento ao abrigo do acordo-quadro, “estabelecendo a título de especificações técnicas complementares a primazia ou a exclusividade da língua portuguesa”, sem prejuízo da questão não se encontrar prevista no referido acordo-quadro.
Significa isto que, embora a … tenha permitido solicitar em futuro procedimento aquisitivo ao abrigo do acordo quadro, a título de especificações técnicas complementares, a primazia ou exclusividade da língua portuguesa, os fornecedores, no limite, poderão apresentar as agendas de acordo com o pretendido, considerando que os requisitos técnicos das mesmas foram oportunamente apreciados e aceites por aquele organismo.
De todo o modo, estas orientações já foram reencaminhadas para a …, que as traduzirá no procedimento aquisitivo que se encontra em preparação.
Tal não significa, …, que as comarcas devam suspender as encomendas do produto em causa, nos termos atualmente disponíveis”.
Eis um texto cujo conteúdo nos alerta para algo inaceitável num país em que vigora a consagração da língua portuguesa como idioma oficial, o que decorre do artigo 11.º, n.º 3 da CRP, em que houve uma secundarização do português, em Portugal, em agendas comerciais destinadas ao uso diário e profissional de portugueses, em benefício preferencial de uma outra língua, que não a nossa, a que foi dada primazia, na nossa própria casa, sem que tenham sido acautelados e impostos, atempadamente, pelos entes competentes, os procedimentos adequados para que o inadmissível não acontecesse.
Depreende-se, também, que foram razões puramente ou essencialmente economicistas, de redução de despesas e custos, com presumíveis elogios para o seu gestor, que justificaram esta inconcebível situação, em que não foi aberta uma exceção, após manifestações de desagrado de vários tribunais, sugerindo-se, a final, orientações para o futuro, tipo meras recomendações onde, por imperativo constitucional, legal e costumeiro se impunha e impõe um dever exclusivo ou de primazia que antecede, com naturalidade e por direito próprio, algo que não é discutível.
Homenagear hoje Eça de Queiroz é reconhecer o lugar cimeiro que o autor de “Os Maias” tem na cultura da Língua Portuguesa e não apenas no Portugal europeu.
DEMONSTRAÇÃO DE GRANDEZA
Quando lemos nas “Notas Contemporâneas” o artigo de Eça de Queiroz sobre “Os Grandes Homens de França”, escrito em 1892 na “Gazeta de Notícias”, encontramos um exercício de fina ironia que demonstra as qualidades do extraordinário prosador. Do que se trata não é de um juízo sobre o futuro, mas de uma crítica relativamente à procura artificial de grandes homens, como se tratasse de um jogo ou de um inventário de celebridades… Tem sentido a lição do autor de “A Ilustre Casa de Ramires”, distinguindo o reconhecimento do valor da cidadania e da contribuição para o bem comum da cultura de uma qualquer feira de vaidades. Falando de Vítor Hugo, Eça diz apenas que “a demonstração fica sujeita a dúvidas, a contestações, a protestos. Fica sobretudo incompreendida pela multidão. Vítor Hugo, pelo menos, é um grande homem – que não necessita demonstração”. Assim ocorre com os realmente melhores, que merecem o nosso reconhecimento. Uma leitura inteligente deste texto permite compreender que as sociedades têm o direito e o dever de reconhecer aqueles que se destacam e constituem exemplo para todos. E cabe a quem pensa e não abdica de ter sentido crítico afirmar, como fez Eça de Queiroz, de modo claro que o reconhecimento obriga a homenagear os melhores como exemplos e com um critério que não se confunda com um exercício ilusório sobre glórias passageiras e vãs.
Compreendamos assim o que o crítico nos quis dizer. Tem razão o reparo sobre a busca frenética de “grandes homens”. Não é disso que se trata quando afirmamos que o reconhecimento dos melhores tem de ficar demonstrado por si mesmo. Por isso, há muito considero que faz sentido o reconhecimento de Eça de Queiroz no Panteão, pelo que fez e pelo que nos legou como exemplo maior para a cultura da língua portuguesa. Haverá outros, certamente, mas importa fazer justiça e destacar este exemplo, já que uma sociedade se afirma e valoriza escolhendo quem não precisa de demonstração. A decisão de homenagear num edifício próprio e com um estatuto especial ilustres figuras portuguesas é apanágio das sociedades antigas, que aprendem a valorizar as suas raízes. Em 1836, o então ministro do Reino Passos Manuel decretou a edificação de um Panteão Nacional ainda sem local definido. O objetivo era dignificar os heróis que tornaram possível a Revolução liberal de 1820 e o início do constitucionalismo. E assim seria possível reerguer a memória coletiva de grandes referências que não poderiam perder-se no esquecimento, como, por exemplo, Luís de Camões. O Panteão Nacional destina-se, assim, a homenagear e perpetuar a memória dos portugueses que se distinguiram por “obras valorosas”, por serviços prestados ao País, pelo exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade. As honras do Panteão podem consistir na deposição, dos restos mortais dos cidadãos distinguidos ou na afixação de uma lápide alusiva à sua vida e à sua obra.
CONTRA QUALQUER BANALIZAÇÃO
Para impedir qualquer banalização, urge garantir o que preocupava o próprio Eça, escolhendo quem não precisa de demonstração. Em Portugal, o estatuto de Panteão Nacional está atribuído ao antigo templo de Santa Engrácia em Lisboa e ao Mosteiro Santa Cruz em Coimbra, onde se encontram os túmulos dos dois primeiros reis de Portugal - D. Afonso Henriques e D. Sancho I. No primeiro destes monumentos estão sepultadas diversas personalidades da história portuguesa: quatro Presidentes de República, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Sidónio Pais e Óscar Fragoso Carmona; e ainda Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Humberto Delgado, Aquilino Ribeiro, Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira. Estão ainda recordados, através de “cenotáfios”, os nomes de seis figuras históricas: Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Luís de Camões. O mosteiro dos Jerónimos, que funcionou provisoriamente como Panteão, antes de Santa Engrácia estar completada, não tem hoje esse estatuto formal, ainda que tenha os túmulos de Vasco de Gama e de Luís de Camões, na nave do templo, e do historiador Alexandre Herculano, na antiga Sala do Capítulo. Em 1985 o corpo de Fernando Pessoa foi transladado para o Claustro dos Jerónimos, sendo o seu túmulo da autoria de Lagoa Henriques. Importa ainda dizer que em Lisboa, no templo de S. Vicente de Fora, encontra-se o Panteão Real da Dinastia de Bragança, de natureza diferente, onde se encontram sepultados em número significativo os membros da família que reinou após a Restauração de 1640.
Desde a antiga Grécia e depois em Roma, a palavra Panteão designava o templo onde se honravam os vários deuses com culto reconhecido. A palavra é grega e significa literalmente “todos os deuses”. Em Roma, o Panteão que chegou aos nossos dias é uma homenagem ao cônsul Marco Agripa (63-12 a.C.), que o mandou construir em 27 a.C. No ano 80, foi praticamente destruído por um incêndio. Quatro décadas depois, o imperador Adriano (76-138) ordenou a sua reconstrução. Foi o cristianismo que, em virtude da doação de um rei bizantino ao Papa Bonifácio IV no século VII, salvou o monumento da pilhagem e da destruição, adotando o orago de Santa Maria e Todos os Santos. Já no Panteão de Paris, as obras para construção foram iniciadas em 1764, sob encomenda de Luís XV, em ação de graças por ter recuperado de uma grave enfermidade. O templo apenas foi concluído em 1790, depois da Revolução tendo sido então transformado num edifício secularizado, com a função de homenagear os vultos da França que se notabilizassem. Então o Panteão passou a funcionar como lugar de homenagem reconhecida da Pátria aos melhores dos seus filhos. Também na Abadia de Westminster, em Londres, estão sepultados grandes vultos britânicos como William Shakespeare, Isaac Newton e Charles Darwin. É assim a partir duma tradição religiosa e secular que foram criados os Panteões Nacionais. Os modernos Panteões nascem, pois, de uma tradição antiga de raízes heterogéneas, desde o paganismo ao secularismo, passando pela dimensão religiosa. Trata-se, em qualquer caso, de honrar os melhores através do reconhecimento dos cidadãos. É este o espírito que hoje devemos recordar. Eça de Queiroz é uma referência fundamental nas culturas da língua portuguesa, correspondendo a sua presença entre os nossos maiores no Panteão Nacional a um ato de elementar justiça, não um mero gesto formal, mas como apresentação de um exemplo para todos. Um reconhecimento de justiça.
E chegamos ao termo deste folhetim de Verão de 2023, para o qual escolhemos como tema a fantasmagoria. O que significou essa escolha? A compreensão de que ao falar de literatura estamos sempre a falar de quem, apesar de já não nos acompanhar fisicamente, persiste em estar connosco. Que é a memória? Foi Mia Couto quem um dia disse, relativamente a seu Pai (que aqui lembrámos), que a presença e a memória daqueles que nos acompanharam não pode cair no esquecimento. A lembrança, acompanha-nos sempre. E tivemos a agradável surpresa assistir a um fenómeno inesperado e feliz. Carolina Michaelis de Vasconcelos tornou-se no folhetim deste ano uma heroína viva. De súbito (e sem que pudéssemos suspeitar ou adivinhar) criou-se um movimento espontâneo de milhares de opiniões, de elogios, de saudades a dizer que há mais de cem anos houve uma mulher que acreditou na audácia de dizer que a liberdade e a igualdade vivem de braço dado e que, indo às raízes da nossa cultura, a ideia de saudade não era uma melancolia triste, mas um apelo de esperança. E se Carolina o disse ao estudar desde os trovadores até à lírica moderna, a verdade é que fomos até ao caminho audacioso de Aurélia de Souza, que com um dedo determinado nos indicou a via de uma cultura viva, moderna, apaixonada…
E foi essa paixão que uniu os fantasmas que fomos encontrando – desde Bernardim Ribeiro a Diadorim, de Gil Vicente à Joaninha dos Olhos Verdes (e até poderia ter sido a Morgadinha dos Canaviais), desde as almas descobertas por Ruben A. ao cair da noite até ao crioulo de Germano Almeida ou de Nhô Baltas, desde a língua mirandesa até às gaitas de foles e aos pauliteiros… E nos confins da Ásia, descobrimos mercadores e missionários a papiar a nossa língua franca, e para maior surpresa Fernão Mendes Pinto tornou-se o verdadeiro intérprete de João de Barros, o Velho, e de Diogo do Couto. E se Garcia de Orta descobriu tudo no Colóquio dos Simples, D. João de Castro revelou os mistérios do magnetismo e importou para a Europa as mais belas plantas da Ásia, enquanto Pedro Nunes abriu os caminhos da navegação pelos números e pelos astros. E de súbito ouvimos:
“O Portugal futuro é um país Aonde o puro pássaro é possível E sobre o leito negro do asfalto da estrada As profundas crianças desenharão a giz Esse peixe da infância que vem na enxurrada E me parece que se chama sável Mas desenhem elas o que desenharem É essa a forma do meu país E chamem elas o que lhe chamarem Portugal será e lá serei feliz Poderá ser pequeno como este Ter a oeste o mar e a espanha a leste Tudo nele será novo desde os ramos à raiz À sombra dos plátanos as crianças dançarão E na avenida que houver à beira-mar Pode o tempo mudar será verão Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz Mas isso era o passado e podia ser duro Edificar sobre ele o Portugal futuro.”
Sim. Aqui está o enigma todo, que Carolina Michaelis procurou encontrar, sem melancolia, mas com o entendimento de que Amadis e Binmarder eram a matéria-prima que fazia deste cadinho um conjunto que permitia fazer sonhar com Pasárgada, sem esquecer os diálogos entre Todo o Mundo e Ninguém com as risadas em fundo de Maria Parda e com as revelações de Frei Dinis. “Mudam-se os tempos, muda-se a vontade; muda-se o ser, muda-se a confiança” … Mil tentativas há para definir a cultura, mas ninguém o fez melhor do que o nosso maior: “E afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor espanto, /Que não se muda já como soía”. Eis por que não poderíamos ter pensado este folhetim senão com fantasmas, sérios, presentes e poéticos, capazes de dizer: “Sonho que sou um cavaleiro andante, / Por desertos, por sóis, por noite escura, / Paladino do amor, busco anelante / O palácio encantado da Ventura”. Mas, em volta da Torre que imaginámos, mesmo escura, mesmo vazia, reuniam-se os antigos familiares “primos vestidos em séculos diferentes e com bigodes conforme a época”. E eis-nos perante o inefável Dom Raymundo, poeta e primo de Dom Afonso Henriques. Não foi por acaso que começamos por ele, ao lado de quem combateu contra os leoneses. Por isso aprendemos o mirandês. E o cavaleiro das aventuras percorreu os montes com Vilancete (que outro nome poderia ter o ginete?). O grande garrano da Ribeira de Lima acompanha-nos, seguido do falcão Abelardo, fiel auxiliar da nossa caça. E para compor o magnífico cenário, eis D. Mafalda, vestida a rigor, com os modelos aconselhados por Garrett, o janota, com desenhos de Watteau e Fragonard e a aprovação de Beckford, mas igualmente a princesa Brites, e sobretudo Madeleine, “prima que veio de Paris cheia de cores”, além de Frey Ciro, com cheiro de santidade e da Bruxa de São Semedo. Era lá possível viver-se sem um bruxedo a sério? Há fantasmas? Não há uma dúvida. Eles encontram-se onde menos se espera. Manuel Bandeira demonstrou-o. «E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d’água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada». Moral da história? Há sempre mais alguma coisa a contar. Percorra-se, por isso, de novo, cada um dos capítulos do folhetim e veja-se que todos contêm enigmas por resolver…
Como poderíamos aproximar-nos do términus deste folhetim, depois da presença tão forte de Carolina Michaëlis, sem chamarmos à ribalta Aurélia de Souza (1866-1922)? É uma das personalidades mais marcantes da arte portuguesa, na transição do século XIX para o século XX. A sua obra assume os grandes temas da pintura europeia da época, sendo de destacar a utilização continuada do autorretrato ou da autorrepresentação que se alarga, à semelhança com o que ocorre com os maiores pintores, à construção teatral e onírica de narrativas que envolvem a casa de família e as pessoas das suas relações. Acrescente-se que outro aspeto original da obra de Aurélia é a prática da fotografia como componente, com percursor grau de autonomia, do extraordinário trabalho da pintura.
Não obstante a sua ligação umbilical ao Porto, Aurélia de Souza nasceu em 1866, no Chile, filha de emigrantes portugueses. A artista mudou-se com a família ainda criança para o Porto, sendo sempre considerada à frente do seu tempo, todavia nunca casou, nem teve filhos.
Aurélia foi aluna brilhante da Academia de Belas Artes do Porto e completou a sua formação com uma estada em Paris onde frequentou a Académie Julian (acompanhada pela sua irmã, também pintora, Sofia de Souza). Bem relacionada com o meio artístico e cultural do Porto, participou em exposições em Lisboa, na atitude determinada de se afirmar como uma pintora profissional num meio predominantemente masculino em que as mulheres artistas em princípio não deviam ambicionar mais do que o estatuto subalterno de amadoras.
Aurélia de Souza é um caso especial no panorama da arte portuguesa de finais do século XIX e inícios de XX. Ao contrário de outras mulheres artistas, com quem compartilhou talento, esforço e coragem, a sua vida discreta apenas foi contrabalançada por uma obra que nos surpreende sempre. Uma recente mostra no Museu Soares dos Reis, com curadoria de Maria João Lello Ortigão de Oliveira, apresentou cinco núcleos. O primeiro, “Vidas”, tratou essencialmente do retrato na obra da pintora, correspondendo ao vetor fundamental da sua produção. No segundo, “Espaços”, integraram-se os locais de intimidade que refletiram o cenário a partir do qual teve lugar grande parte da vida de Aurélia de Souza e dos seus talentos na Quinta da China com vista para o Douro. No terceiro núcleo, propunham-se “Temas”, numa obra muito rica que registou uma grande variedade temática de acordo com a grande amplitude dos seus interesses. Finalmente, o último núcleo da exposição, “Cores”, dedicado à exploração do eu, do autorretrato e da autorrepresentação, permite entender a paleta plural usada pela pintora, perante a variedade das paisagens. E a produção de Aurélia de Souza atinge o auge no célebre “retrato do Casaco Vermelho”, finalizando o percurso de homenagem e tornando visível a vida e obra desta fantástica criadora.
Ao seguirmos a obra multifacetada de Aurélia de Souza, compreendemos simultaneamente a identidade cultural da cidade do Porto, de onde houve nome Portugal, o espírito independente da urbe, que foi a única cidade-estado existente em Portugal, o facto de ter sido, ao longo do tempo, capital política e cultural do País – desde a independência, passando pela crise de 1383, pela expansão, pela inserção europeia do comércio do vinho fino, até à vitória do constitucionalismo liberal, ao desembarque do Mindelo (que permitiu a vitória do Cerco do Porto, mas também deu nome à capital da ilha de S. Vicente em Cabo Verde) ao sucesso da causa de D. Pedro IV, à afirmação da liberdade política, económica e cultural, à Regeneração, à Liga Patriótica do Norte, ao 31 de janeiro, à Águia e à Renascença Portuguesa. A riqueza da obra da artista não foi produto do acaso, como não o foi a de Carolina Michaëlis, de Guilhermina Suggia, de Helena Sá e Costa ou de Agustina Bessa-Luís. Em todos os casos, o papel desempenhado por mulheres pioneiras significou a compreensão de que a sua emancipação tinha toda a coerência com o espírito da cidade invicta. E neste folhetim fantasmático, depois de virmos de Entre-Douro-e-Minho, e tendo palmilhado meio mundo, compreendemos que o dedo indicador de Aurélia aponta no sentido da liberdade e da independência. Eis como a arte pode tornar-se libertadora…