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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Não há noite que me dê sono antigo, um daqueles de acordar só de manhã, cedo, bem cedo, como tanto gostei ao longo da vida. Hoje, por muito que sossegue o espírito e em mim acalme as agitações dos dias findos, lá vou despertando, agora e daqui a pouco, para os sonhos que me assaltam. Como se entrasse em cena, para vir desempenhar um papel que talvez tenha aprendido, ou devesse saber de cor(ação), mas sempre me deixa entregue àquela qualquer ilusão ou expectativa cujo repentino acordar-me, mais do que lembrar-me, me interroga. Pois que, de todos os sonhos que recordo, ainda que muito nebulosa ou vagamente, apenas sei que insistem em chamar-me ao passado ou, talvez assim te lo diga melhor, aos passados desta minha vida...

 

   Hoje, surpreendentemente, à hora de alba, dei comigo a pensarsentir os movimentos celestes, e a Terra neles, e eu, na ilusão de que o universo gira à volta desta esfera em que pouso os pés, a dar voltas, afinal, inconsciente da rotação e translação do planeta em que sou suposto viver. Mas, todavia, sejamos clarividentes, são esses movimentos circulares ou parabólicos ou algo assim, com as suas oscilações, que nos vão contando o tempo, tal como vão gastando as superfícies do nosso chão e dos nossos horizontes. E nesse mundo onírico em que, sem querer nem sequer desejar, o meu pobre de mim mergulhara, emergiu, como imperativo profético, o sentido pensamento de uma qualquer revolução nada mais ser do que retorno ao ponto de partida. O tempo que nos desgasta e gasta será circular, para nos lembrar a promessa de um reinício sempre desejado. Mas, para que este aconteça, o próprio tempo que agora conhecemos - ou julgamos conhecer - terá de ter chegado ao termo da sua provisória necessidade. Estranho fado, o da humana condição: nascemos no tempo finito, para, quiçá, viver no sem fim de um universo que se expande...

 

   E já digo agora, como canta o fado: Mas isto, meus senhores, foi a sonhar... Só que, digo eu, experientemente, sonhar nem sempre é fácil. Muito menos quando, no espaço-tempo finito, ainda que mal definido e sempre ambulante, o nosso sonho nos leva à cabeceira do infinito. Onde, subjetivamente e sempre sós, tentamos um vislumbre... A qualquer ser humano a morte desgosta tanto que, a bem dizer, não é que ele não goste de morrer mas, verdadeiramente, não quer. E é tal, mais do que desgosto, fúria à morte que nos tem levado a todas essas experiências de prolongamento da vida - hoje tanto em moda - nem que se tenha de congelar um cadáver para que este aguarde a hora em que a ciência humana saiba tirá-lo de tão frio purgatório para novamente o animar...

 

   Essa coisa de nos recusarmos à nossa própria finitude ganha por vezes força maior do que a nossa esperança racional, deixa de ser ponderável, mas é tão somente reação exacerbada a qualquer adivinhado desafio de infinita omnipotência. No teatro onírico de que acima te falo, Princesa de mim, ela representa-se, no concerto astral, como viagem estratosférica, desejada descoberta de um desconhecido que se quer conhecer. Como nos sonhos milenários das religiões antigas, vai-se em busca de um encontro, de um abrigo, de uma morada que, como tudo aquilo que mais amamos, poderá ser fugidio ou inatingível, mas é, como a fé, a substância (o que sub-está) das coisas que hão de vir. Receamos aproximar-nos do sol ou das estrelas, pois que com Ícaro aprendemos como se derrete a cera dos nossos projetos e ardem as asas das nossas iniciativas. Mas tentaremos pousar num planeta, esfera apagada, estrela morta onde esperamos recuperar vida. Quiçá sem realizarmos que, afinal, voltamos à caça do efémero, esse fogo fátuo, repetido aceno do eterno. Mesmo encetada num espaço-tempo que se imagina infinito, qualquer peregrinação nossa, na nossa presente condição humana, nunca passará de uma viagem pelo finito, pela simples razão de que não podemos agora, na nossa presente circunstância, conceber a infinitude. Paradoxo essencial: o infinito, por definição mental, não tem definição possível. Por isso o místico Mestre Eckhart dizia nada para referir o Deus que, todos os dias, pensavassentia a acompanhá-lo, e o teólogo São Tomás de Aquino, autor da Summa Theologiae, afirmava que ninguém jamais vira Deus e que tudo o que ele, frei Tomás, sobre Deus escrevera era palha...

 

   Nesses saltos que os humanos vão ensaiando pelo espaço extraterrestre, vejo, depois de acordado - e talvez influenciado pela leitura de notícias sobre o esgotamento de recursos do nosso planeta - uma tentativa urgente de mudar de casa, de encontrar sítio mais acolhedor, quiçá mais abundante, farto e generoso (sonhar é ainda mais fácil, quando julgamos estar bem acordados...). Então carinhosamente me lembro da nossa Mãe Terra a pedir-nos, como a raposa ao Principezinho, a presença atenta de um amor sábio.

 

   A raposa calou-se e fixou o olhar no Principezinho: «Por favor... Domestica-me!» -  disse.
   - Bem gostaria, respondeu o Principezinho, mas não tenho muito tempo. Tenho amigos por descobrir e muitas coisas por conhecer.
   - Só conhecemos as coisas que domesticamos, disse a raposa. Os homens já não têm tempo para conhecer seja o que for. Compram coisas já todas prontas nos mercados. Mas como não existe qualquer mercado de amigos, os homens já não têm amigos. Se quiseres um amigo, domestica-me.
   - Que devo fazer? disse o Principezinho.
   - É preciso ser muito paciente, respondeu a raposa. Primeiro, sentas-te um pouco longe de mim, assim na relva. Olhar-te-ei pelo canto do olho, mas nada dirás. A linguagem é fonte de mal entendidos. Mas, dia após dia, poderás sentar-te um pouco mais perto...

...

   - Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só vemos bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
   - O essencial é invisível para os olhos, repetiu o Principezinho, para se recordar.

   - Foi o tempo que gastaste com a tua rosa que torna a tua rosa tão importante.

   - Foi o tempo que perdi com a minha rosa... repetiu o Principezinho, para se lembrar.

   - Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não deves esquecê-la. Tornas-te responsável para sempre por aquilo que domesticaste. És responsável pela tua rosa...

   - Sou responsável pela minha rosa, repetiu o Principezinho, para se lembrar.

 

   Traduzi o francês apprivoiser pelo português domesticar. O termo gaulês vem do latino apprivatiare, que significa tornar privado, familiar. Trata-se, provavelmente, de evolução a partir do baixo-latim, no século XI. O português também deriva do latim, mas da palavrga domesticus, que radica em domus, que quer dizer casa. Domesticar vem significar então tornar caseiro, familiar. E não será a Terra a nossa casa, sempre à espera da paciência amorosa dos nossos cuidados? O que me seduz nessas etimologias é, sobretudo, o substrato ou substância de relacionamento ou relação: afinal, quem domestica domestica-se... Encontramos assim, não uma dialética de afrontamento, mas uma de harmonização.

 

   Desta minha saída de um pesadelo onírico para um sonho de Antoine de Saint-Exupéry no deserto, em que o Petit Prince vai meditando lições de vida por planetas bem mais exíguos do que o nosso, tiro o ensinamento de que andava precisado e contigo, Princesa de mim, quis partilhar.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

OLHAR E VER

 

 


12. O DILEMA DE TROIA

No capítulo IV do seu Le Petit Prince, escreve Antoine de Saint-Exupéry: Tenho fortes razões para crer que o planeta donde vinha o principezinho era o asteroide B612. Esse asteroide só foi enxergado uma vez ao telescópio, em 1909, por um astrónomo turco. Fizera então uma grande demonstração da sua descoberta a um congresso internacional de astronomia. Mas ninguém acreditou nele, por causa do fato que vestia...  ...Felizmente para a reputação do asteroide B612, um ditador impôs ao seu povo, sob pena de morte, que se vestisse à europeia. O mesmo astrónomo voltou a fazer aquela demonstração em 1920, elegantemente vestido. E dessa vez todos foram da sua opinião. Já em crónica anterior conversámos sobre Ataturk (o tal ditador) e a modernização da Turquia que, entre outras medidas relativas a usos e costumes  -  a par da imposição do alfabeto e escrita latina em substituição do árabe ou da separação da religião e do estado  -  proibiu, aos homens, o uso do fez, desencorajou o porte do véu islâmico pelas mulheres e liberalizou o divórcio. Se é certo que o hábito não faz o monge, talvez possa ajudar a rezar e muitas vezes terá servido para apresentar o lobo em cordeiro. O texto de Saint-Exupéry mal disfarça alguma subtil ironia sobre a questão, sendo todavia mais generoso do que o nosso Eça de Queiroz, quiçá saudoso de certo orientalismo, na sua apreciação do trajar ocidentalizado dos japoneses sob a "restauração" Meiji. Contudo, Eça é objectivo e sagaz na percepção final de uma profunda transformação civilizacional: Nada representa ou deve representar melhor um estado do que o seu chefe ; e ainda há pouco eu considerava duas estampas que pintam com um relevo desolador (para o artista) a transformação do velho em novo Japão. Numa é o micado, ainda imperador omnipotente e hierático, meio homem, meio deus, alçado no seu trono, que mais parece altar, todo envolto num manto de seda cor de palha, com uma mitra de laca branca, onde faíscam pedrarias, imóvel e de olhos baixos à maneira de um ídolo, enquanto o fumo do incenso se eleva das caçoletas, e velhos dáimios e samurais magníficos, vestidos de brocados, de bronzes dourados, os dois sabres na cintura, as duas antenas de ouro tremendo no elmo, se prostram ante a majestade do filho do sol, tocam com a fronte as finas esteiras claras juncadas de flores de nassari. Na outra estampa de cores vivas, é ainda o mesmo micado, anos depois, mais pequeno e como diminuído, com uma farda vermelha de general inglês que lhe faz rugas no sovaco, um capacete branco de general prussiano que lhe tomba para os olhos, umas calças azuis de general francês que lhe fogem dos tornozelos, sentado de esguelha numa poltrona, dentro de uma estação de caminho de ferro, enquanto em redor se agitam funcionários constitucionais, de chapéus de bico, de chapéus altos, de chapéus-coco, apelintrados e contrafeitos, e ao longe uma locomotiva fumega e vai partir por sob um arco de lona que ostenta este lema estupendo: "Viva a Constituição!" Este é o Japão novo. É lúgubre. Mas é forte  -  porque, com os nossos horrendos chapéus de bico e as nossas pantalonas agaloadas, adoptou também os nossos couraçados, as espingardas "Lebel", as metralhadoras, toda a nossa organização e ciência militar. E como não lhes falta inteligência destra para aplicar os nossos princípios e usar o nosso material, e como os seus oficiais são educados nas escolas, nos arsenais, nos campos de manobras da Europa, em breve o Japão pitoresco se tornou no Japão formidável, e, apesar de as fardas malfeitas lhe darem um ar de Xéxé do Entrudo, ficou sendo a grande potência do Extremo Oriente. O espetáculo do mundo em que hoje vivemos mostra-nos dirigentes e diplomatas chineses em elegantíssimos trajes impecavelmente ocidentais, um Oriente em que Pequim concorre com Hollywood, e cujas multidões vão enchendo monumentais salas de concerto para religiosamente escutarem a "nossa" música clássica, um presidente russo, herdeiro dos sovietes, que em fatos europeus se move em cenários de grandiosidade czarista, cidadãos ocidentais abundantemente tatuados, cobertos de adornos baratos e primitivos, negligentemente vestidos e comportados - ou ainda outros, muito engomados e engravatados a ganharem fortunas trabalhando pouco e enganando muito...  E logo deparamos com hordas miscigenadas de jihadistas cobertos de negro como antigos guerreiros berberes, equipas nacionais de futebol europeu, que fazem vibrar de patriotismo os povos do velho continente, com jogadores oriundos de todos os outros continentes,  enquanto hinduísmo e budismo vão fascinando gente ocidental que até  -  quando pode  -  se vai casar a Pukhet ou a Bali... No seu recente La Chute de l´Empire Romain, Max Gallo, académico francês, interroga-nos, pelo espelho da queda de Roma, sobre a morte da nossa civilização... Mas será que estas morrem? Ou antes, como tudo, delas também nada se perde, e depois nada verdadeiramente se cria, mas tudo se transforma? Contra a noção clássica da desfeita catastrófica do Império Romano, historiadores, hoje, já falam de uma Antiguidade Tardia como prólogo da nossa Idade Média. A narrativa de Max Gallo segue o destino trágico  -  no sentido grego de luta contra o inexorável destino  -  de Galla Placídia, filha de Teodósio I, irmã de Valério e Honório, que entre si dividiram o império em metades (oriental e ocidental), mãe de Valentiniano III, o último imperador do ocidente, filho do general Constâncio, segundo esposo dela. Antes já morrera Teodósio, que seria o III do nome, e  seu pai, o rei Ataulfo, visigodo familiar de Alarico, o tal que vencera Roma. Galla acreditara que seria possível salvar o Império pela incorporação dos bárbaros que o tinham ameaçado... No capítulo 17, Gallo escreve:  Todas as manhãs, Galla Placídia, queda-se muito tempo imóvel, de braços cruzados, diante da grande cruz de pau preto, no centro da qual os mosaístas de Ravena num mosaico compuseram o seu retrato. Está rodeada de sua filha Honória e de seu filho Valentiniano. Proíbe a escravos e criadas que entrem no quarto e perturbem pela sua presença esse momento de recolhimento, oração e serenidade. O general Constâncio não está representado no mosaico. As duas crianças, de que é pai, não lhe pertencem. Elas são de linhagem imperial. Ele não passa de um general ao qual o imperador Honório consentiu em conceder o título de patrício, que o associa à família imperial. De olhos fixos naquele mosaico, Galla Placídia ganha forças para impor a sua vontade a Constâncio e ao imperador Honório. Todos os dias enfrenta o seu esposo e o seu irmão, lembra-lhes que devem ter em conta os seus conselhos. Sente-se a mais combatente. Quem viveu seis anos entre os Bárbaros, até se tornar sua rainha? Sabe bem que Constâncio e Honório sentem medo e desprezo por Godos e Visigodos. Inquietam-se com esse reino visigodo da Aquitânia, constituído entre Tolosa e Bordéus. E todavia foram esses Godos que expulsaram os Vândalos da Espanha e os perseguem em África. São esses Godos que combatem os Francos, com os Burgúndios a traçarem feudos no norte e no leste da Gália. Ora o que é o Império do Ocidente se não a Gália, a Espanha, a África, a Itália? E o que é hoje, ou poderá ser, a civilização ocidental sem o resto do mundo? E que seremos todos sem cidadania livre, igual e fraterna? O cavalo de Troia poderá ficar para sempre fora de portas? Não sou Cassandra, não posso nem quero prever qualquer destruição por disfarçado maligno. Mas creio que, em lugar e vez da miopia de interesses financeiros, classistas e políticos, que nos desgoverna, precisamos de Eneias que inventem na globalização uma nova Roma para todos.

 

Camilo Martins de Oliveira