Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
219. HÁ SEMPRE UM LIVRO QUE NOS PODE TORNAR LEITORES
Entre a enciclopédia de livros que há, em que a literatura não é serva de nada, é difícil perceber porque há poucos leitores.
Acresce que a leitura não é um mero prazer estético, é um privilégio que nos leva a toda a parte, é o centro do infinito, é a nossa imaginação ocupando-nos completamente a cabeça, é a nossa memória, a nossa projeção no que lemos e o modifica em sucessivas metamorfoses transformadoras.
É uma maneira de conseguirmos estar sós, um reino nosso, em que somos reis, donos e senhores, ouvindo-nos a nós mesmos e em silêncio, interagindo com o mundo e os outros, bailando com o cérebro, sabendo que o que lemos tem milhões de leituras e pensamentos diferentes se o dermos a ler a outros milhões de pessoas.
Ao ler há liberdade de pensar, de idealização, de invenção, um espaço libertário, vivendo hipóteses de leitura que interessem a todos e a cada um, evitando o medo, sem machado que ampute a raiz ao pensamento.
Há livros transformadores, que deixamos de ler porque não há vontade para continuar, em que saltamos as páginas, que devoramos ou não conseguimos parar ficando-nos, no fim, uma alegria gratificante que quereremos voltar a sentir.
E há os grupos de leitores, que se reúnem voluntariamente, em que se convencionou uma determinada leitura sobre um livro e tudo o que daí possa resultar em termos de convívio, tertúlias, em associação livre de interpretação, ideias e conteúdo, num diálogo e debate que se quer construtivo, enriquecedor, de partilha e plural.
Há as edições de autor, pagas por conta própria, em que existe o prazer de deixar um testemunho em livro, para os familiares, amigos e quem o queira.
Mesmo assim, há quem não leia. Será responsabilidade dos livros?
Culpabilizá-los parece sem sentido, dada a sua variedade e quantidade para todos os gostos (por maioria de razão numa democracia pluralista), não sendo justificação, só por si, o preço, pois são cada vez mais as casas de gente com património e rendimentos elevados onde não se vislumbra um livro, ou os há como ornamento, mais por uma questão de pressão social/profissional e menos de preferências literárias, havendo lojas que negoceiam falsas lombadas para preencher estantes desprovidas.
Apurar o gosto é o caminho certo para encontrar o livro adequado para ler, descobrindo o que se gosta e não se gosta, naquele tempo e circunstâncias, excluindo liminarmente o livro que se tem como errado, sem esquecer que há muitos livros, mudando as nossas preferências de leitura consoante a idade e outras contingências.
Há quem prefira o livro clássico ao digital ou eletrónico, pelo seu prazer estético e, sobretudo, tátil, felicitando-me pelo engano dos que declararam a sua morte às mãos do e-book.
Há os que navegaram de vez para a net, os que recuaram e fazem ambas as coisas, oxalá haja sempre um livro (ou livros) que nos faça leitores, entre tantas e tantas escolhas.
Marcel Proust escreveu um pequeno ensaio intitulado Sobre a Leitura, (trad. José Augusto Mourão, Vega, 1991) que merece ser lido com atenção, nestes dias de confinamento.
LIVROS PREFERIDOS
“Talvez não haja dias da nossa infância mais plenamente vividos que aqueles que julgamos deixar sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido”. Foi Marcel Proust quem o disse no seu pequeno ensaio que serviu de prefácio à tradução que fez de Sésame et ses Lys, de John Ruskin, sob o título “Journées de Lecture” Não por acaso, foi Ruskin quem considerou a leitura como o grão de sésamo, pão para o espírito e remédio contra a ignorância dos povos, tesouro escondido da arte de educar. Não falamos, porém, de algo abstrato, mas de uma realidade que tem a ver com a essência das artes e que corresponde ao facto de as gerações comunicarem entre si pela cultura ao longo dos séculos. Umberto Eco dizia, por isso, que a diferença entre quem lê e quem não lê, está em que uns viverão no máximo algumas décadas, enquanto os que leem podem “viver” o correspondente a cinco mil anos, que é a idade da civilização. E que é ler? Não apenas o ato de nos isolarmos num mágico encontro, mas o de podermos usufruir do prazer da transmissão sempre renovada no tempo da palavra. Sabemos que foram os “aedos” da antiguidade que transmitiram aos povos oralmente os grandes poemas… Mas não precisamos de ir tão longe. Basta lembrarmo-nos dos contos tradicionais que ouvimos na nossa infância da boca dos mais velhos. Não esqueço as diversas versões desses relatos que ouvi a uma das minhas avós – a ponto de pedirmos este ou aquele desenlace, de acordo com o que antes tínhamos ouvido. Tenho nos meus ouvidos a voz de minha Mãe a recriar as fábulas tradicionais… E recordo a leitura compassada do dia-a-dia de um ano escolar descrito por Edmundo de Amicis, em “Il Cuore” (“Coração”), obra realizada para ajudar as escolas na unificação italiana. Nunca esquecerei “O pequeno escrevente florentino” e as palavras desse extraordinário relato de solidariedade filial: “Era um gracioso florentino de doze anos, negro de cabelos e alvo de rosto; filho mais velho de um empregado dos caminhos-de-ferro que, tendo muita família e pequeno ordenado, vivia com dificuldades. O pai estimava-o muito, e era bom e indulgente com ele em tudo, menos no que se referia à escola. (…) E por muito que o rapaz estudasse, o pai exortava-o sempre a estudar mais”… No entanto, Júlio, assim se chamava ele, ajudava, às escondidas, o pai a adiantar o trabalho noturno de escrever os endereços em cintas para uma editorial. Mas a falta de sono começou a afetar o aproveitamento do jovem estudante. E o pai não percebeu que se tratava do resultado da generosidade do filho… O relato era seguido com atenção. Aquele como os outros. A cada palavra correspondia uma imagem impressiva – de afeto e angústia.
LEITURA EM VOZ ALTA
A leitura em voz alta, com as palavras claras e bem compassadas envolvia ainda a recordação de poemas inesquecíveis ou de passagens de Sermões do Padre António Vieira. Posso dizer que o prazer da leitura começou pela audição desses textos ou pela sua memorização. De Camões, havia uma pequena edição do centenário de 1880, que permitia ler e ouvir a bela expressão de um português tão belo e tão próximo… “Alma minha gentil que te partiste”; “Aquela triste e leda madrugada”; “Sete anos de pastor Jacob servia”; “Perdigão perdeu a pena / Não há mal que lhe não venha”; “Erros meus, má fortuna, amor ardente”… E havia ainda o “Romanceiro” de Garrett e a “Nau Catrineta”, num relato de tentação e ventura – “Lá vem a Nau Catrineta / Que tem muito que contar! / Ouvide, agora, senhores, / Uma história de pasmar”… E Antero de Quental tinha um lugar especial no culto da memória familiar (“Num sonho todo feito de incerteza / De noturna e indizível ansiedade”…) – para não falar de João de Deus, Cesário, Camilo Pessanha ou Fernando Pessoa… Felizmente, ao chegar ao Liceu de Pedro Nunes, encontrei em Maria de Lourdes Lapas de Gusmão, uma cultora fantástica da leitura em voz alta. E com que prazer chegávamos à segunda-feira, para ouvirmos e lermos a “Odisseia”, mergulhando na mitologia grega e na viagem iniciática de Ulisses. A leitura em voz alta permitia podermos lidar naturalmente com a sintaxe, o Dicionário e os segredos da etimologia. Era a edição de João de Barros, da Sá da Costa, contada às crianças e lembradas ao povo. E continuámos com a “Eneida” e seguimos para “As Minas de Salomão” na companhia inconfundível de Alão de Quartelmar, devidamente reformulado por Eça de Queiroz.
LEITORES COMPULSIVOS E NÃO TANTO…
Voltando ao ensaio de Proust, o prazer da leitura em voz alta e a aprendizagem de cor de textos referenciais, leva ao gosto de ler no exercício pessoalíssimo de recato e de silêncio, como um “prazer divino”, tantas vezes inoportunamente suspenso pelo “jogo para o qual um amigo vinha buscar-nos na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigava a levantar os olhos da página ou a mudar de lugar, a merenda que nos tinham obrigado a levar e que deixávamos ao lado sobre o banco, sem lhe tocar, enquanto por cima da nossa cabeça, o sol diminuía de força no céu azul, o jantar por causa do qual tinha sido preciso voltar para casa e durante o qual não pensávamos senão em ir lá para cima para terminar logo a seguir, o capítulo interrompido…”. Quantos de nós não sentimos isto mesmo. E quanto a leitores compulsivos, é superior às suas forças poder resistir a esse prazer incontido. Dir-se-á que hoje cada vez menos se lê. Não é assim. Há motivos de preocupação, mas não devemos simplificar. Há excelentes leitores, ao lado dos renitentes. Essa é a experiência corrente. Conto os exemplos mais diversos, a começar nos leitores compulsivos, para quem se aplica o que nos diz Marcel Proust, e os pouco motivados. O meu conselho é sempre de que a leitura do puro prazer não pode confundir-se com sacrifício. Do que falamos é da leitura que nos dá gosto e que permite entender melhor o mundo e a vida… Ler é um sinal de atenção e de cuidado. A leitura atenta permite tomar contacto com a cultura e as artes e ter informação sobre a realidade que nos cerca – desde a comunidade em que vivemos às bulas dos medicamentos. Temos de ser exigentes. Tanto se salvam vidas com a leitura motivadora de um poema como com a leitura de boa informação médica ou cívica. Não há, porém, receitas para criar leitores. Criam-se bons leitores pelo bom uso da língua e de uma comunicação clara, compreensível, correta e atraente. E se falamos de boa leitura, não esquecemos o teatro e o canto. Temos de conhecer os clássicos, para que o verbo e o vocabulário sejam rigorosos, mas simples. A leitura e as artes estão intimamente ligadas. A desvalorização da retórica e da oratória e o desconhecimento dos melhores cultores da língua são sinais de pobreza cultural. Por isso, é importante cultivar a leitura em voz alta e a aprendizagem de cor de belos textos ou poemas. Precisamos de saber colocar a voz e de prevenir e não cometer erros gramaticais. Não se trata de formar gramáticos, mas de assegurar uma boa cidadania, para que sejamos compreendidos por todos.