Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Umberto Eco disse-nos que a leitura faz a diferença. Ler significa ir além de uma vida limitada nas fronteiras estreitas do tempo que nos é dado viver. Quem cultiva a leitura e o conhecimento multiplica a sua existência inserindo nela o diálogo com as gerações que nos antecederam. Falamos de uma diferença em média entre meio século e seis mil anos. Eis o âmbito que nos reserva o efeito multiplicador da leitura e do diálogo cultural. Em Portugal, sabemos que os hábitos de leitura da população são baixos. A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) revelou, contudo, recentemente dados que contêm aspetos positivos. Os jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 34 anos são os que mais compram livros entre nós. Os dados resultam de um inquérito feito a cerca de mil pessoas entre julho e agosto deste ano. No último ano, 28 % dos jovens dessa faixa etária foram dos que mais adquiriram livros. Dos respondentes, 62% compraram livros no último ano, e destes 70 % confirmaram ter comprado o mesmo número ou mais do que há um ano. Estes dados devem ser lidos com prudência, pois os hábitos culturais não mudam subitamente. O certo é que há mudanças que decorrem, antes do mais, dos progressos na escolarização. Temos, no entanto, presente o Inquérito sobre as Práticas Culturais, de 2020, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, em que se concluía, no conjunto, que 61 % dos inquiridos não tinha lido no último ano qualquer livro.
O resultado do inquérito de agora constitui um sinal de esperança, mas obriga a um trabalho determinado da sociedade civil e do Estado no sentido do reforço da qualidade do serviço público de educação. Isto, porque o aumento das compras dos livros se concentra na Grande Lisboa e na região sul, devendo as práticas culturais ser transversais a todo no país e nos diferentes grupos sociais. Não haverá sustentabilidade cultural sem democratização do acesso a instrumentos culturais de qualidade, evitando-se a inércia ditada pela dependência de redes sociais em circuito fechado ou pela prevalência de fatores que desincentivam a cidadania. Se as compras de livros efetuadas pelos mais jovens subiram 44% por comparação com o período pré-pandemia, é natural que os hábitos de leitura para as gerações futuras esteja a sofrer uma mudança positiva. Há, porém, uma responsabilidade acrescida para os professores e educadores – que obriga à superação de um mero debate de índole corporativa, envolvendo investimento determinado na qualificação, na formação e na avaliação estrutural, das escolas, dos estudantes e dos professores.
Há muitas perguntas sobre o livro e a leitura: o livro em papel sobreviverá ao digital? A aprendizagem de hoje comprometerá os métodos tradicionais da leitura e da escrita? Num mundo complexo, teremos de saber lidar com a diversidade, mas nunca poderemos perder a relação de diálogo entre pessoas e saberes. Se falamos de cultura e de Humanidades temos de compreender que o saber e o saber fazer obrigam sempre à comunicação. O caminho longo que fizemos desde os aedos, que transmitiram de memória a “Ilíada” ou a “Odisseia”, até aos tipos móveis de Gutemberg ou às novas tecnologias de informação e comunicação obriga a compreender que um audiolivro, um e-book, um livro em papel, ajudam-se mutuamente, porque o que está em causa é a ligação ente ler e pensar, entre saber e dialogar, entre representar e refletir. O modo de ler altera-se ao longo do tempo. Há uma evolução que corresponde à necessidade que temos de compreender melhor o mundo e os outros. A liberdade e a autonomia individual alcançam-se e evoluem mercê do acesso ao conhecimento pela literacia. Daí a importância da educação para todos, com um efeito multiplicador extraordinário, desde a cultura à saúde, da defesa do bem comum à coesão social. Eis por que os sinais positivos quanto à leitura merecem uma atenção muito especial.
1. O que é a Bíblia? A palavra deriva do grego, com o significado de «os livros». Em latim, e, por derivação, em português, o termo grego transformou-se num singular feminino — Bíblia —, designando o conjunto dos textos que formam o que também se chama a Sagrada Escritura. Abrange, na sua totalidade, o Antigo Testamento e o Novo Testamento, contendo 73 livros e constituindo, portanto, uma pequena biblioteca. A sua formação e redacção demorou mais de mil anos. É necessário ter isso em conta, pois não é um livro como o entendemos agora, escrito por um autor e num determinado tempo. Trata-se de uma obra de numerosos autores, muitos até desconhecidos, e alguns dos escritos são inclusivamente o resultado da compilação de tradições e textos anteriores.
Daqui conclui-se que, para a compreensão adequada da Bíblia, se impõe conhecer a história dos textos, as línguas, os lugares, os tempos, os géneros literários, os contextos em que apareceram e os destinatários a que se dirigiam. Decisivo é entender também a configuração final, pois foi enquanto totalidade e unidade que a comunidade cristã a recebeu como expressão e testemunho da sua fé. Neste sentido, a linha essencial da sua compreensão é a libertação e salvação plena de todos os homens e mulheres. Na Bíblia, encontram os crentes quem é Deus para a humanidade e o que é e representa a humanidade para Deus enquanto salvador e doador de sentido e sentido final para a existência humana, para o mundo e para a história. A Bíblia é a leitura da história do mundo e da humanidade à luz do desígnio salvador de Deus. Assim, o fio condutor da sua leitura e interpretação tem de ser sempre a liberdade, a humanização, a felicidade, a libertação e salvação plena de todos. Só a esta luz a Bíblia é verdadeira, de tal modo que o que nela se encontra de menos humano ou até de desumano é para dizer-nos o que Deus não é e o que o ser humano não deve ser.
A Bíblia é o livro mais traduzido e mais lido da História: no ano 2003, havia tradução, na totalidade ou em parte, para 2303 línguas e já se contavam 555 milhões de exemplares em todo o mundo. É também a obra mais estudada, havendo mesmo centros de investigação universitária com a finalidade exclusiva do seu estudo.
A Bíblia é, antes de mais, o livro de importância essencial para os crentes cristãos, pois nela encontram o núcleo da sua fé. Ao longo dos séculos, serviu de alimento espiritual, de esperança, de orientação, para a vida e para a morte, a um sem-número de homens e mulheres: judeus, cristãos e também não crentes. Ela é igualmente de valor fundamental no quadro da cultura. Porquê? Sem ela, não é possível compreender a história da cultura mundial, mas sobretudo a história da humanidade europeia. Dizia o filósofo Ernst Bloch, com quem tive o privilégio de conversar: sem o conhecimento da Bíblia, não podemos compreender muitas revoluções, que tiveram na sua base o messianismo e a proclamação da chegada do Reino de Deus, não podemos compreender as catedrais, o gótico, a Idade Média, Dante, Rembrandt, Haendel, Bach, Beethoven, a grande literatura, a grande pintura, a grande escultura, a grande música, os Requiem, a grande filosofia, «absolutamente nada».
Impõe-se, pois, pôr termo ao desconhecimento da Bíblia, já que esse desconhecimento constitui uma «situação insustentável», concluía Bloch, filósofo ateu e, ao mesmo tempo, religioso: “onde há esperança há religião”…
Da Bíblia também disse Heinrich Heine: “Que livro! Grande e extenso como o mundo, enraizado nos abismos da criação e erguendo-se para os mistérios azuis do céu… Nascer do Sol e pôr do Sol, promessa e realização, nascimento e morte, o drama todo da humanidade: está tudo neste livro. É o livro dos livros, Bíblia.”
E Lídia Jorge: “A Bíblia é o poema colectivo mais longo criado até agora pela humanidade. Nele se espelham as várias batalhas que os homens engendram na sua demanda pelo amor absoluto. Não admira que a literatura ocidental nele tenha encontrado os seus modelos de narração amorosa mais fortes e que os seus mitos continuem a servir de moldura para o pensamento em torno da liberdade e da paz.”
2. Como disse, é essencial saber lê-la, exige-se uma leitura histórico-crítica, pois, à letra, pode levar a desastres. Por exemplo, o livro do Génesis, quando se refere à criação do mundo e ao primeiro pecado, não pode ser tomado como se se tratasse de uma história, pois é de um mito que se trata. Foi porque se tomou à letra que a mulher ao longo da História foi vista como inferior, pois foi criada em segundo lugar e na dependência do homem e é a tentadora. E como é possível, hoje, à luz da evolução, pretender basear a doutrina do pecado original no pecado de Adão e Eva? E como não ler, aterrados, a ordem de Deus a Abraão para lhe sacrificar o filho Isaac? “Deus pôs Abraão à prova e chamou-o: ‘Abraão!’ Ele respondeu ‘Aqui estou’. Deus disse: ‘Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto num dos montes que eu te indicar’(…) Abraão construiu um altar, dispôs a lenha, atou Isaac, seu filho, e colocou-o sobre o altar, por cima da lenha.” Embora tenha sido substituído por um carneiro, Isaac não se terá tornado ateu? Como aceitar à letra o Antigo Testamento na sua sequência de horrores e de guerras? E o Novo Testamento, quando discrimina a mulher? Apenas exemplos.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 25 de março de 2023
A morte do livro foi anunciada com o digital, às mãos do e-book.
Enganaram-se. O livro persiste, o que é bom, uma boa notícia.
Ler livros não é um mero prazer estético.
Também é um prazer tátil único. Entre outros prazeres…
Tem as vantagens do analógico sobre o digital, pode ser dobrado, guardado no bolso, na mala, na pasta, leva-se para qualquer lugar, não consome energia elétrica, é mais funcional e pessoal de anotar, sublinhar, pode ser lido e relido a todo o tempo à luz do dia, da vela e do candeeiro de tempos idos, à luz artificial atual, adaptando-se à nossa dimensão física e humana e ao tempo e espaço de cada época.
Há um milhão de leituras se um livro for lido por um milhão de pessoas diferentes.
Ler é ser livre, com a nossa imaginação e memória navegando, sonhando e voando.
Os livros não envelhecem, são firmes e leais, são amigos úteis, o que dizem hoje, dirão amanhã, daqui a anos ou séculos.
O hábito de ler e ver, dia a dia ou amiudadas vezes um livro, faz com que acabemos por lhe ter amizade. À força de se nos tornarem familiares, os livros acabam por se tornar nossos amigos, em que um instintivo e estranho animismo nos leva, por vezes, quase a atribuir alma às coisas inanimadas.
Há livros que são transformadores, contagiantes, podendo salvar-nos ou marcar o nosso destino, que nos fazem leitores, provocando uma sensação gratificante de não estarmos sós, amigos inalteráveis e constantes na saúde ou na doença, no trabalho ou no ócio, uma companhia com o seu não ruído em silêncio.
Estimulam a aquisição de conhecimento, o aumento e enriquecimento de vocabulário, o perguntar, interrogar, questionar, uma imaginação e um sonho que nos liberta, um escape, uma fuga, uma compensação.
Quem lê e ama os livros tem espaço e mentalidade para pensar, refletir, questionar, para nos transcendermos, ter asas para voar, ir mais além daquilo que é tido como básico, diário, quotidiano, afastando a lassidão e a rotina, mesmo que esta seja vital para o nosso conforto.
Sem esquecer o arrumar da biblioteca pessoal que conta a história das nossas vidas, o enriquecimento da associação livre de grupos de leitura, as edições de autor e a partilha do seu testemunho, uma liberdade de escolha e de leitura que não nos limita, desde os livros que devoramos, saltamos páginas ou paramos de ler.
E há os amorosos do livro para os quais é uma coisa imprescindível à vida, tendo-o como parte de si mesmos.
Porém, os não amorosos e indiferentes excluem-no de fotos e vídeos para compra e venda de casas endinheiradas exemplificando-o, quase sempre, o sua não visualização nas respetivas buscas via internet, como sinal de declínio, e não prestígio, dominando o culto do dinheiro, ao invés do saber acumulado por milhares de anos de leitura.
Há quem só navegue na net para os ler, quem se recuse, ou faça ambas as coisas, sendo bom saber que o livro sobrevive ao digital, nem sempre este sendo o ideal, pois sendo nós analógicos (não biónicos ou digitais) aquele agarra mais de perto os nossos sentidos que se manifestam em sentimentos e hábitos não substituíveis pelo e-book.
Se perdurou, no decurso de séculos, a ditaduras que inúmeras vezes o tiveram como transgressor e perigoso, espera-se que também resista à digitalização progressiva e seus inconvenientes de fiscalização automática, sendo mais durável e menos sujeito, até agora, a danos físicos do que os dispositivos ou materiais eletrónicos de acessibilidade mais remota.
Uma viagem não se resume ao tempo em que se realiza. Antegozamo-la nos preparativos, na procura de pistas, na definição dos percursos e até no modo como os poderemos realizar. Depois de partir, e sobretudo porque já definimos o campo de interesse, verificamos que a realidade ultrapassa o que pudemos imaginar. Não se trata de fazer ofício de turista acidental, mas de ir ao encontro de memórias perdidas ou esquecidas, desde as pedras às palavras, dos costumes às reminiscências históricas. A viagem tem sempre um fundamento no instinto nómada que nos acompanha. E é esse prazer de viajar, que nos leva à procura de fragmentos de nós mesmos espalhados pelo mundo. Nada melhor do que ilustrar o que dizemos com um caso prático.
Cidade fantasmagórica, Alcântara, em frente a São Luís do Maranhão, no outro lado da baía de São Marcos, é a recordação de um tempo que já não volta. E como o prazer supremo está em viajar pelo mundo com livros nas mãos e com leituras em dia, eis que Josué Montello nos ajuda na decifração do espírito do lugar: “Na calma da tarde ensolarada, vou andando pelo Largo da Matriz, e não encontro uma única pessoa. Tudo quieto. Não ouço rumor de vida à minha volta. Nem sequer uma revoada de andorinhas estala o seu alarido feliz por cima dos telhados escuros. Se apuro mais o ouvido, interrogando o silêncio que me rodeia, distingo uma rolinha chorando na borda de um beiral. É um choro manso, repetido, que não tem fim” (Noite Sobre Alcântara, Livros do Brasil, 1989). Mas recuemos no tempo. A cidade foi rica e opulenta. Fundada em 1648 foi centro da atividade económica da produção da cana-de-açúcar e do algodão até à abolição da escravatura, no terceiro quartel do século XIX. Trata-se de um conjunto arquitetónico dos séculos XVII e XVIII paradoxalmente preservado, entre ruínas e memórias, pelo abandono dos seus habitantes quando a decadência se tornou inexorável.
O catamaran leva-nos de São Luís até Alcântara. Ao aproximarmo-nos de terra e do velho porto, Danilo, o guia, recorda-nos que aqui houve um povoamento tupinambá, a aldeia de Tapuitapera, fundada por índios tapuias, que os tupis expulsaram. E se a colonização francesa ainda manteve os índios no local, a verdade é que o desenvolvimento agrícola, por um lado, a escravatura negra e um surto terrível de varíola (1663), por outro, afastaram definitivamente os índios da região. Alcântara foi buscar o nome ao lugar de Alcântara em Lisboa, donde provinha António Coelho Carvalho, o donatário da capitania de Cumã. A vila desenvolveu-se porque se tornou um ponto obrigatório nas ligações entre São Luís e Belém do Pará, e porque serviu de base às forças portuguesas que expulsaram os holandeses do Maranhão.
Estamos no Porto do Jacaré. Uns sobem a pé até à povoação pela ladeira, outros preferem seguir no ónibus. Depressa nos encontramos na Rua das Mercês, entre a igreja e a Casa da Câmara. A economia da cidade baseava-se nos engenhos do açúcar, cuja produção uma vez chegada aqui era embarcada para São Luís. Com a fundação da Companhia do Comércio do Maranhão (1682) as fazendas organizaram-se e a cidade tornou-se importante, crescendo significativamente até ao tempo de Sebastião José, quando foi criada a grande Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Além do açúcar, Alcântara era entreposto de gado, de arroz e de algodão, para o mercado inglês, nos alvores da revolução industrial.
Na Praça da Matriz, as ruínas da Igreja de S. Matias, de 1648 no lugar onde houve uma ermida feita pelo índio Maretin e uma igreja dedicada a S. Bartolomeu. O pelourinho com as armas de Portugal foi reposto na praça. Durante muito tempo, ficou deslocado para a Rua da Bela Vista, velha Rua da Amargura, e não se sabe se a designação vem dos castigos infligidos aos escravos, se do facto de ser daqui que se faziam as últimas despedidas dos que partiam para o Reino. Muitos jovens iam estudar para Coimbra, e em grande parte dos casos ficavam-se mesmo pela Europa… S. Matias está em ruínas, e conta-se mesmo que um novo rico de nome Sousandrade teria mandado demolir parte da torre para poder ter melhor vista do seu sobrado. As fazendas em redor chegaram a ter dez mil escravos no momento alto da produção do algodão, em meados do século XIX. Oitenta e uma fazendas de cereais, vinte e dois engenhos de açúcar, vinte e quatro fazendas de gado e cem salinas, eis os números da glória de Alcântara. Nem as epidemias de varíola e de cólera na passagem dos séculos XVIII e XIX impediram este progresso. Havia quem pensasse que a riqueza da cidade seria eterna. Montello ajuda-nos a reconstituir a vida: “Por estas calçadas compridas, ao pé dos sobrados que rodeiam o largo, retiniram esporas de cavaleiros, tacões de botas de soldados e sapatões ferrados de graves ouvidores. Estas pedras foram pisadas por sinhás donas e sinhazinhas. Nelas também estalou o pleque-pleque das sandálias de seda das negras de cintura fina, peito cheio e bunda redonda, que não se deitavam com brancos, negros e mulatos de outro lugar. E junto ao meio-fio, ainda se descobrem as argolas de ferro onde se amarravam os cavalos arreados de prata”.
Em cada sobrado há uma história para contar: amores contrariados, cumplicidades de escravos e senhores, vitórias e derrotas, tiranias e liberalidades. A pouco e pouco, o sonho foi-se desvanecendo. Acabou a escravatura, as técnicas mudaram, a guerra da Secessão americana teve o seu fim e a concorrência do algodão tornou o progresso insustentável. A independência, o melhor acesso de transportes, tudo levou a que o final do século XIX tenha sido um pesadelo. A cidade começou a ser abandonada e depois foi saqueada. Os antigos senhores foram substituídos pelos filhos e netos dos escravos… Este é o pano de fundo de Noite Sobre Alcântara. Natalino e Maria Olívia acompanham-nos. São os verdadeiros protagonistas nesta cidade cheia de espíritos. A pouco e pouco, a cidade vai desaparecendo, literalmente, e Natalino descobre o que antes não suspeita, mas que vai mudar tudo na sua vida, tem um filho homem de uma mulher casada com outro…
E encontramos os dois palácios inacabados dos barões de Mearim e Pindaré. Porquê? O Imperador D. Pedro II poderia ter sido a salvação da cidade decadente, se na vinda ou na ida de uma viagem aos Estados Unidos pudesse ter parado no Maranhão. Visitaria Alcântara e faria jus à sua glória. “Se vier temos de estar preparados”. O barão de Mearim era o chefe do Partido conservador e o barão de Pindaré o chefe do Partido liberal. Ambos se aprestaram a receber D. Pedro de Alcântara. E as construções começaram, a cem metros uma da outra. Vemo-las ainda hoje. São ruínas, são casas imperfeitas e inacabadas. “E se não vier?” – perguntava-se na cidade. “Ficamos de consciência tranquila: cumprimos o nosso dever”. A história, quase caricata, é a ilustração da decadência. E o Imperador não foi e as ruínas das “suas” casas ficaram por lá até hoje são motivo de visita e de ironia.
Na rua Grande, junto aos dois palácios inacabados, voltámos a tomar o ónibus improvisado. E olhámos o longe da Baía de São Marcos, o Maranhão das águas. Descemos a ladeira do Jacaré, lembrando o último diálogo de Natalino e de Maria Olívia. “- Vamos juntos para São Luís?”. “- Não, Natalino. Já lhe disse que fico. Alguns têm de ficar. Vim para lhe dizer adeus”… Alguns têm de ficar!
Como habitualmente, o Centro Nacional de Cultura escolhe vinte livros para as Férias de 2021.
ROMANCE E CONTO «Embora Eu Seja Um Velho Errante» – Mário Cláudio (D. Quixote) «Águas Passadas» – João Tordo (Companhia das Letras) «Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio» – Julieta Monginho (Porto Editora) «Maremoto» – Djaimilia Pereira de Almeida (Relógio d’Água) «Hífen» – Patrícia Portela (Caminho) «Afastar-se» – Luísa Costa Gomes (D. Quixote) «Devastação» – Eduardo Pitta (D. Quixote) «Quarentena – Uma História de Amor» – José Gardeazabal (Companhia das Letras)
POESIA «Sétimo Dia» – Daniel Faria (Assírio e Alvim) «Voltar» – Luís Filipe Castro Mendes (Assírio e Alvim) «A Noite Abre Meus Olhos» – José Tolentino Mendonça (Assírio e Alvim) «Obra Completa» – Francisco Sá de Miranda (Assírio e Alvim)
MEMÓRIAS «Autobiografia Não Autorizada» – Dulce Maria Cardoso (Tinta da China) «Líbano, Labirinto» – Alexandra Lucas Coelho (Caminho) «Diário da Peste – O Ano de 2020» – Gonçalo M. Tavares (Relógio d’Água)
ENSAIO «Ver é Ser Visto» – Eduardo Lourenço (Gradiva) «Jorge de Sena, Contemporâneo Capital» – Eduardo Lourenço (Gulbenkian), vol. X das Obras Completas «História do Bailado em Portugal» – António Laginha (CTT) «Tudo o que Eu Quero» – Helena de Freitas, Bruno Marchand (coord.) (Imprensa Nacional)
TRADUÇÕES «Todos os Poemas» – Friedrich Hölderlin, tradução de João Barrento (Assírio e Alvim)
“Uma História da Leitura” de Alberto Manguel (Tinta da China, 2020) fala-nos do prazer da leitura e da relação que se estabelece entre leitores e livros, ultrapassando as barreiras do tempo e do espaço e permitindo o que Quevedo designou ‘conversas com os mortos’…
BIBLIOTECA VIRTUOSA “Uma biblioteca antes de o leitor exercer uma escolha é como o caldo primordial de átomos do qual toda a vida emergiu. Está tudo ao alcance de uma pergunta: cada ideia, cada metáfora, cada história, a identidade de cada leitor individual. As escolhas que faço numa biblioteca, a seleção de livros que mais prezo, denunciam não só a minha visão do Paraíso, mas também a minha identidade. A verdade é que sempre senti que a minha experiência do quotidiano, assim como uma certa compreensão dessa experiência, me chega através das minhas leituras. Em criança aprendi sobre o amor lendo histórias d’As Mil e Uma Noites, sobre a morte com os policiais, sobre o mar com Stevenson, sobre a selva com Kipling, sobre a possibilidade de aventuras extraordinárias com Júlio Verne. A experiência tangível chegou, na maioria dos casos, muito mais tarde, mas quando chegou eu tinha palavras para a nomear”. Alberto Manguel recorda-nos, assim, algo que é familiar para quem gosta de livros e de bibliotecas. As coisas passam-se normalmente desta maneira. Começa-se a amar os livros como objetos. Entusiasmamo-nos com as suas capas, com as suas encadernações, depois chegamos às imagens que os ilustram e à curiosidade de perceber o que significam, nesse sentido os Dicionários e as Enciclopédias ilustradas constituem lugares extraordinários, porque as ilustrações e os sentidos estão por definição próximos, em seguida entusiasmamo-nos pelas capitulares, até às narrativas e ao seu fantástico desenvolvimento. Não por acaso, as capitulares ricamente decoradas enchiam os mais antigos códices e a última edição do livro de Manguel tem na capa uma capitular, um L, como não poderia deixar de ser… A paixão da leitura constitui um processo complexo, como acontece na História da Humanidade, tudo começa pela oralidade, ainda antes de nascermos, quando ouvimos a voz da nossa mãe, primeiro conversando connosco ou entoando uma melodia, depois contando uma história muito simples, sobre o tempo em que os animais falavam, e a pouco e pouco vamos entendendo o mundo através dessa voz, dessas narrativas, desses poemas. Para mim, os livros de ilustrações não foram o princípio, mas depressa entendi a sua extraordinária importância e por ainda hoje me deixo fascinar pelas histórias de quadradinhos. Se comecei a amar os livros como objetos, foi porque nasci rodeado de livros muito sérios, enchendo paredes até ao teto, que fui descobrindo como caixas de surpresas muito ordenadas… Era muito difícil chegar as livros mais altos, mas felizmente o que se designa como obras de referência estão sempre à mão, que o mesmo é dizer nas prateleiras de baixo.
VINTE ANOS DEPOIS Alberto Manguel regressou a este seu livro vinte anos depois (como o tempo que Alexandre Dumas escolheu para reencontrar os mosqueteiros), e sentimos que a atualidade está plenamente viva. E lembra-nos o tempo em que pôde ser leitor para alguém que estava a perder a visão, como Jorge Luís Borges, e esses diálogos são demonstrações de como a leitura é a descoberta do mundo. Umberto Eco disse, por isso, que podemos viver pelo menos cinco mil anos, lendo, porque esse é o tempo da história da nossa civilização… Essa é a demonstração de como ler é cumprir o que Quevedo afirmou, fazendo da memória algo presente – como algo de sublime. Desde a sabedoria de Salomão até aos contos de Borges, estamos, afinal, a antecipar o encontro com Dante na antecâmara do Paraíso. No fundo, aprender a ler é entrar plenamente no mundo da vida. “A criança que aprende a ler é admitida na memória comum por via dos livros e descobre, assim, um passado partilhado que ele ou ela renova, em maior ou menor grau, a cada leitura». Lembro bem o momento em que minha mãe me ajudou a decifrar as primeiras páginas da “Cartilha Maternal” – e não esqueço os tempos exaltantes em que ajudei os meus filhos e os meus netos na aprendizagem fundamental da leitura. E só um poeta talentoso como João de Deus poderia ter criado um sistema tão atraente, eficaz e duradouro… É certo que todos os métodos são bons desde que os seus resultados sejam positivos, mas ficamos para sempre ligados ao que seguimos. Afonso X, o Sábio, escritor maior da nossa língua, disse um dia: “Bem e lealmente devem os professores mostrar o seu saber aos discípulos, lendo-lhes livros e fazendo-os compreendê-los o melhor que forem capazes…” E acrescentava o carácter insubstituível dessa relação, pessoal e íntima. “Uma História da Leitura” é um percurso multifacetado com mil circunstâncias e exemplos sobre o prazer da leitura. E se digo prazer é porque essa relação tem de ser cultivada. Não escolhi nascer na biblioteca de meu avô, professor de profissão entre outros ofícios. Concedo que tive condições especiais para essa paixão.
A escrita foi o coração da civilização, substituindo a fala.
Na língua oral, de trato quotidiano, uma vez lançada a mensagem, o processo está feito, extingue-se.
Na língua escrita, a sua mensagem não morre, perdura, por maioria de razão se mais elaborada e usada na literatura.
Há o provérbio latino, segundo o qual: verba volant, scripta manent, ou seja: o que se diz voa e perde-se no ar; o que se escreve permanece, tem a garantia da perenidade.
A linguagem oral é conjuntural, a escrita é estrutural.
O livro foi o melhor amigo da escrita, a que acresce o jornal.
A aprendizagem e o hábito da leitura, foram imprescindíveis para o progresso civilizacional.
A leitura procurava o livro (e o jornal) numa reciprocidade de benefícios e interesses. Livros e jornais eram o ícone da leitura (em especial o livro) e esta o seu arquétipo. Hoje a leitura tende a ser cada vez mais arqueológica, livros e jornais são menos procurados e lidos, a caligrafia e escrita manual é uma relíquia, tanto mais requintada se em tinta permanente.
Surgiu o telemóvel, o novo ícone, cuja leitura agressiva, aleatória, chamativa, imediata, impulsiva, programada (a gosto) e velocista o universaliza, tornando os leitores mais primários, impulsivos e menos exigentes, prejudicando a leitura como hábito de pensar no seu sentido crítico e racional, não ajudando a meditar e pensar com vagar.
A velocidade contagiosa da internet difunde um sempre mais e mais da notícia de leitura curta, rápida e ao minuto, marginalizando outras, género comentário ou ensaio, porque não interessam ou não há tempo, argumenta-se, fomentando-se a informação acrítica, consumista, descartável, de pobreza vocabular, por vezes manipuladora e falsa.
A disrupção digital ensina que a aprendizagem e a leitura se devem submeter à velocidade, ao não aprofundamento, à banalização linguística, anulando a reflexão e o tempo para pensar.
A palavra, por natureza, é racional, exige triagem, distância, raciocínio e sentido crítico, precisa ser escrutinada, pertence ao terreno da escrita e só nesta tem verdadeiro sentido, necessita de valer por si e não ser meramente submetida ao império amoral, autoritário, funcional e utilitário da tecnologia.
Ao celebrarmos o centenário do nascimento de Ray Bradbury (1920-2012), o autor de Farenheit 451, de 1953, podemos neste tempo refletir sobre o sentido autêntico dos temas do destino dos livros e da força da memória.
CONTINUAREI A LER LIVROS
Há uns anos numa das suas crónicas Javier Marías afirmava isto mesmo, para demonstrar que o debate tantas vezes repetido sobre o fim do livro em papel deveria ser considerado com especiais cautelas e sem simplificações. Presenciamos uma evolução muito rápida e profunda sobre a comunicação. A comunicação digital sofreu nos últimos meses um extraordinário progresso, ditado pelo confinamento e pelos efeitos da pandemia. É verdade que muito do que se assistiu, já estava em curso, e se não tivesse havido antes avanços tecnológicos tão significativos, não teria sido possível com tanta rapidez, pôr as pessoas em diálogo, através das redes de informação e comunicação. As conferências “em linha”, os “webinars”, o ensino a distância tornaram-se uma realidade nova, com virtualidades e limitações. E as redes sociais prosseguiram, com as enfermidades conhecidas, com circuitos fechados e microcosmos empobrecedores, mas longe de terem esgotado as suas vantagens… E a leitura? Curiosamente, há sinais vários e até contraditórios, sobre a sua importância, bem como muitas dúvidas e perplexidades. Houve muitas interpretações sobre o sentido do conto “Bright Phoenix” (1947) e o livro que se lhe seguiu e o escritor passou uma boa parte do tempo a desmentir muitas das interpretações pseudopolíticas, dizendo apenas que idealizou e escreveu a obra na Universidade da Califórnia, na biblioteca Powell, com uma máquina de escrever alugada, com o objetivo de prevenir a sociedade de consumo para risco do fim dos livros e das bibliotecas e para um consequente suicídio da humanidade. Contra os riscos totalitários, contra o esquecimento da importância do tempo e da reflexão, o que animou Bradbury foi um profundo amor pelo livro, pela leitura e pelas bibliotecas – como fatores de liberdade. Muito do que afirmou no livro e em comentários subsequentes tornou-se uma realidade quase profética – e o certo é que, nesta última emergência pandémica, houve pequenos sinais (como o escritor também encontrou na sua narrativa) que apontam para que o livro e a leitura são fatores essenciais que asseguram a liberdade e a responsabilidade e podem prevenir contra a manipulação, a simplificação e a emergência de novas formas de servidão. Mas a grande vantagem do livro e da leitura está na demonstração da imperfeição humana. De facto, podem trazer-nos o melhor e o pior, a qualidade e a mediocridade, como na vida.
COMO ERRADICAR O ANALFABETISMO?
O primeiro país a erradicar o analfabetismo foi a Noruega, porque a igreja reformada luterana proibiu o casamento de mulheres analfabetas, para que todos pudessem ler a Bíblia. Assim passou de 80% de analfabetos no início do século XIX para zero por cento, geração e meia depois… Quando em 1990 a UNESCO proclamou o objetivo da “Educação para todos” deu especial ênfase à educação das mulheres – e onde os programas têm sido postos em prática a generalização da leitura tem permitido combater a fome, a doença e a miséria. Ler um poema, contar uma história, cultivar a memória, conhecer os programas de vacinação, as bulas dos medicamentos e as regras da maternidade responsável, salvam vidas humanas. Compreendo o amor de Bradbury aos livros e à leitura, sendo suspeito porque nasci e tenho vivido rodeado de livros, mas não se trata apenas de um gosto egoísta pelo calor e pelo cheiro dos livros. Trata-se do cerne da cultura. Os livros, porém, como as pessoas são diferentes, com qualidades e defeitos. Quando em pequeno me ofereciam um livro novo, desembrulhava-o, a tinta nova inebriava-me e recebia-o como uma visita. Já disse tantas vezes que os Dicionários e as Enciclopédias foram a minha perdição na biblioteca de meu avô. Passei dias esquecidos com eles. Aí conheci Garrett e Herculano, mas também Plutarco, o grande mestre da biografia na coleção inesquecível dos “Cadernos Culturais” da Editorial Inquérito, de Eduardo Salgueiro. Aí encontrei uma verdadeira enciclopédia ao alcance da mão – Licurgo, Sólon, Péricles, Cícero. Mas nos cadernos havia também António Sérgio, Sílvio Lima, José Régio, Nemésio, Casais Monteiro. Foi Agostinho da Silva (bom amigo, graças a Mário Soares) que me deu a conhecer Fernando Pessoa, na coleção de filosofia dos Guimarães. Só mais tarde encontrei Eduardo Lourenço, graças a António Alçada na “aventura da Morais”. Era o tempo dos pequenos cadernos. Os da “Seara Nova” traziam-nos a melhor literatura. O amor da poesia vem de lermos e decorarmos. Ah! Os clássicos: Camões, Vieira, Bocage (tão esquecido), Cesário, Antero, Camilo Pessanha, Sebastião da Gama, Daniel Filipe… E há o gosto pelo teatro, e em especial por Gil Vicente. Maria Germana Tânger ensinar-me-ia a dizer e não a declamar. E Rómulo de Carvalho leva-nos até à “Ciência para Gente Nova”. A “História do Átomo” ou a “História dos Balões” foram lidas e relidas com um prazer enorme… Depois as enciclopédias francesas, a começar no imprescindível Larousse com as ilustrações de uma edição do princípio do século XX. E o vício dos pequenos livros continuou com o “Que sais-je?”. Era puro prazer, e a exigência correspondia, no fundo, ao conhecimento pela narrativa, que nos permitia entender questões complexas – e aprendi que a clareza é a melhor pedagogia, por passos sucessivos e seguros…
LER DE COR
Devorávamos livros porque eram pequenos e acessíveis. E ganhávamos treino para ler Júlio Dinis, Camilo e Eça – e tudo o mais… Poderia dar mil exemplos. O design dos livros originava verdadeiras obras de arte – Sebastião Rodrigues, Daciano Costa, Emmérico Nunes, Fernando Lemos, Mily Possoz, Paulo-Guilherme, José Brandão… De que falo, afinal? Do amor da leitura e dos livros, que é algo dificilmente definível. Hoje o vício de leitura chega, naturalmente, às versões digitais e aos e-books. Ler é ler e para quem tem o vício, ele chega a toda a parte. Sei que as publicações em papel terão um futuro condicionado. Mas os livros continuarão a ser fundamentais. Vai mesmo nascer um tempo em que a digitalização das obras e a sua disponibilização ao grande público criará um interesse redobrado pelas edições em papel de qualidade. Haverá livros de que não poderemos prescindir, aptos a ser folheados e sublinhados. E haverá obras de referência disponíveis através das redes digitais. E continuaremos a ter a biblioteca como mito, segundo o entendimento de Alberto Manguel. De facto, “a Biblioteca de Alexandria foi concebida para fazer mais do que somente imortalizar. Devia registar tudo o que tivesse existido e pudesse ser registado, e esses registos deviam originar mais registos, num infindável rasto de leituras e glosas, que produziriam, por sua vez, novas glosas e novas leituras. Devia ser uma oficina de leitores, não apenas um local onde os livros fossem preservados para todo o sempre”… (A Biblioteca à Noite, Tinta da China, 2016).
Marcel Proust escreveu um pequeno ensaio intitulado Sobre a Leitura, (trad. José Augusto Mourão, Vega, 1991) que merece ser lido com atenção, nestes dias de confinamento.
LIVROS PREFERIDOS
“Talvez não haja dias da nossa infância mais plenamente vividos que aqueles que julgamos deixar sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido”. Foi Marcel Proust quem o disse no seu pequeno ensaio que serviu de prefácio à tradução que fez de Sésame et ses Lys, de John Ruskin, sob o título “Journées de Lecture” Não por acaso, foi Ruskin quem considerou a leitura como o grão de sésamo, pão para o espírito e remédio contra a ignorância dos povos, tesouro escondido da arte de educar. Não falamos, porém, de algo abstrato, mas de uma realidade que tem a ver com a essência das artes e que corresponde ao facto de as gerações comunicarem entre si pela cultura ao longo dos séculos. Umberto Eco dizia, por isso, que a diferença entre quem lê e quem não lê, está em que uns viverão no máximo algumas décadas, enquanto os que leem podem “viver” o correspondente a cinco mil anos, que é a idade da civilização. E que é ler? Não apenas o ato de nos isolarmos num mágico encontro, mas o de podermos usufruir do prazer da transmissão sempre renovada no tempo da palavra. Sabemos que foram os “aedos” da antiguidade que transmitiram aos povos oralmente os grandes poemas… Mas não precisamos de ir tão longe. Basta lembrarmo-nos dos contos tradicionais que ouvimos na nossa infância da boca dos mais velhos. Não esqueço as diversas versões desses relatos que ouvi a uma das minhas avós – a ponto de pedirmos este ou aquele desenlace, de acordo com o que antes tínhamos ouvido. Tenho nos meus ouvidos a voz de minha Mãe a recriar as fábulas tradicionais… E recordo a leitura compassada do dia-a-dia de um ano escolar descrito por Edmundo de Amicis, em “Il Cuore” (“Coração”), obra realizada para ajudar as escolas na unificação italiana. Nunca esquecerei “O pequeno escrevente florentino” e as palavras desse extraordinário relato de solidariedade filial: “Era um gracioso florentino de doze anos, negro de cabelos e alvo de rosto; filho mais velho de um empregado dos caminhos-de-ferro que, tendo muita família e pequeno ordenado, vivia com dificuldades. O pai estimava-o muito, e era bom e indulgente com ele em tudo, menos no que se referia à escola. (…) E por muito que o rapaz estudasse, o pai exortava-o sempre a estudar mais”… No entanto, Júlio, assim se chamava ele, ajudava, às escondidas, o pai a adiantar o trabalho noturno de escrever os endereços em cintas para uma editorial. Mas a falta de sono começou a afetar o aproveitamento do jovem estudante. E o pai não percebeu que se tratava do resultado da generosidade do filho… O relato era seguido com atenção. Aquele como os outros. A cada palavra correspondia uma imagem impressiva – de afeto e angústia.
LEITURA EM VOZ ALTA
A leitura em voz alta, com as palavras claras e bem compassadas envolvia ainda a recordação de poemas inesquecíveis ou de passagens de Sermões do Padre António Vieira. Posso dizer que o prazer da leitura começou pela audição desses textos ou pela sua memorização. De Camões, havia uma pequena edição do centenário de 1880, que permitia ler e ouvir a bela expressão de um português tão belo e tão próximo… “Alma minha gentil que te partiste”; “Aquela triste e leda madrugada”; “Sete anos de pastor Jacob servia”; “Perdigão perdeu a pena / Não há mal que lhe não venha”; “Erros meus, má fortuna, amor ardente”… E havia ainda o “Romanceiro” de Garrett e a “Nau Catrineta”, num relato de tentação e ventura – “Lá vem a Nau Catrineta / Que tem muito que contar! / Ouvide, agora, senhores, / Uma história de pasmar”… E Antero de Quental tinha um lugar especial no culto da memória familiar (“Num sonho todo feito de incerteza / De noturna e indizível ansiedade”…) – para não falar de João de Deus, Cesário, Camilo Pessanha ou Fernando Pessoa… Felizmente, ao chegar ao Liceu de Pedro Nunes, encontrei em Maria de Lourdes Lapas de Gusmão, uma cultora fantástica da leitura em voz alta. E com que prazer chegávamos à segunda-feira, para ouvirmos e lermos a “Odisseia”, mergulhando na mitologia grega e na viagem iniciática de Ulisses. A leitura em voz alta permitia podermos lidar naturalmente com a sintaxe, o Dicionário e os segredos da etimologia. Era a edição de João de Barros, da Sá da Costa, contada às crianças e lembradas ao povo. E continuámos com a “Eneida” e seguimos para “As Minas de Salomão” na companhia inconfundível de Alão de Quartelmar, devidamente reformulado por Eça de Queiroz.
LEITORES COMPULSIVOS E NÃO TANTO…
Voltando ao ensaio de Proust, o prazer da leitura em voz alta e a aprendizagem de cor de textos referenciais, leva ao gosto de ler no exercício pessoalíssimo de recato e de silêncio, como um “prazer divino”, tantas vezes inoportunamente suspenso pelo “jogo para o qual um amigo vinha buscar-nos na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigava a levantar os olhos da página ou a mudar de lugar, a merenda que nos tinham obrigado a levar e que deixávamos ao lado sobre o banco, sem lhe tocar, enquanto por cima da nossa cabeça, o sol diminuía de força no céu azul, o jantar por causa do qual tinha sido preciso voltar para casa e durante o qual não pensávamos senão em ir lá para cima para terminar logo a seguir, o capítulo interrompido…”. Quantos de nós não sentimos isto mesmo. E quanto a leitores compulsivos, é superior às suas forças poder resistir a esse prazer incontido. Dir-se-á que hoje cada vez menos se lê. Não é assim. Há motivos de preocupação, mas não devemos simplificar. Há excelentes leitores, ao lado dos renitentes. Essa é a experiência corrente. Conto os exemplos mais diversos, a começar nos leitores compulsivos, para quem se aplica o que nos diz Marcel Proust, e os pouco motivados. O meu conselho é sempre de que a leitura do puro prazer não pode confundir-se com sacrifício. Do que falamos é da leitura que nos dá gosto e que permite entender melhor o mundo e a vida… Ler é um sinal de atenção e de cuidado. A leitura atenta permite tomar contacto com a cultura e as artes e ter informação sobre a realidade que nos cerca – desde a comunidade em que vivemos às bulas dos medicamentos. Temos de ser exigentes. Tanto se salvam vidas com a leitura motivadora de um poema como com a leitura de boa informação médica ou cívica. Não há, porém, receitas para criar leitores. Criam-se bons leitores pelo bom uso da língua e de uma comunicação clara, compreensível, correta e atraente. E se falamos de boa leitura, não esquecemos o teatro e o canto. Temos de conhecer os clássicos, para que o verbo e o vocabulário sejam rigorosos, mas simples. A leitura e as artes estão intimamente ligadas. A desvalorização da retórica e da oratória e o desconhecimento dos melhores cultores da língua são sinais de pobreza cultural. Por isso, é importante cultivar a leitura em voz alta e a aprendizagem de cor de belos textos ou poemas. Precisamos de saber colocar a voz e de prevenir e não cometer erros gramaticais. Não se trata de formar gramáticos, mas de assegurar uma boa cidadania, para que sejamos compreendidos por todos.
«Dicionário do Livro – Da Escrita ao Livro Eletrónico» de Maria da Graça Pericão e de Maria Isabel Faria (Almedina, 2008) constitui um repositório muito completo, de consulta indispensável, que permite uma boa compreensão das perspetivas passadas, presentes e futuras sobre o livro e a leitura.
UMA FUNÇÃO INSUBSTITUÍVEL O tema do futuro do livro tem sido muito glosado e nem sempre com o uso de bons argumentos. Há muitas vezes simplificações que esquecem o essencial. Em primeiro lugar, o livro e a leitura são peças fundamentais na aprendizagem – e o certo é que não há desenvolvimento humano sem leitura e aprendizagem. Questão diferente é a de nos perguntarmos sobre o futuro do livro impresso. Nesse ponto, importa fazer distinções e compreender a diversidade de problemas. O livro impresso coexistirá com outros suportes de leitura. Ler no “kindle”, no “tablet” ou num livro de bolso, num livro de capa dura ou em qualquer suporte digital terá a ver com a comodidade de cada um. O livro continuará, no entanto, a ter uma função insubstituível. Aliás, é preciso dizer-se que, em virtude do aumento da escolarização, há mais livros e mais leitores, mas é essencial que haja uma boa formação na leitura. Faz parte da educação cívica ler bem, saber comunicar e apreender na leitura a diversidade cultural e a complexidade. A cultura como criação e a boa aprendizagem exigem boa leitura. Por exemplo, no caso das Enciclopédias e das obras de referência deixa de fazer sentido termos os livros encadernados nas nossas estantes – desatualizam-se rapidamente, as casas não têm espaço e o suporte digital permite uma consulta mais fácil. Quanto aos jornais diários em papel, têm os dias contados. Tornar-se-ão dispensáveis porque a internet permite uma comunicação mais fácil a todo o momento, com custos económicos mais acessíveis. Pelo contrário, as revistas ou alguns semanários com textos mais longos, ensaios de qualidade e com uma apresentação gráfica apetecível vão ter mais importância – seja em papel, seja no digital.
MELHOR INFORMAÇÃO E CONHECIMENTO Ler mais e melhor tem a ver com a transformação da informação em conhecimento e do conhecimento em sabedoria, para nos lembrarmos do célebre poema de T. S. Eliot. Não podemos esquecer, contudo, o difícil tema das livrarias, onde seja possível encontrar os livros que desejamos ou de que precisamos. Num depoimento sobre a experiência da livraria “Ler Devagar”, tive oportunidade de dizer: «Temos a presença e o calor, muito próprio dos livros, temos as estantes a chamarem-nos, e temos a extraordinária possibilidade de ir pegando nos livros, provando-os, folheando-os. Desde de que me conheço, sinto um prazer especial em deambular entre estantes e livros. E nas longas viagens que tenho feito, a lembrança está ligada a livros, a bibliotecas e livrarias. Tudo começa por planear ou preparar uma viagem, reunindo livros – mais do que roteiros: diários, itinerários, narrativas… Depois há uma escolha criteriosa para levarmos connosco alguns livros, pequenos, maneirinhos, para não serem empecilho, que nos irão libertar do tédio. E num pequeno caderno temos de fazer uma lista das livrarias a visitar… Uma viagem que valha realmente a pena tem de ter como um dos destinos da peregrinação um mundo de livros. Infelizmente, as livrarias a sério são cada vez mais raras. E se uso a expressão “a sério” é porque é preciso contarmos com o livreiro e com a possibilidade de podermos deambular entre os livros, não apenas com o que acaba de sair, posto a eito, como se estivéssemos numa loja de conveniência. E a dificuldade que há hoje para encontrar a livraria onde haja escolha e onde se sinta alma é um sério motivo de desalento. Eis por que razão «Ler Devagar» é um exemplo. Há alma, há diversidade, há clássicos e modernos, há surpresas, há possibilidade de fazer uma viagem entre os livros e pelos livros…». Lembro este depoimento, uma vez que o livro e a leitura precisam de espaços de encontro e de procura, que ocupem o lugar ancestral das velhas tertúlias. E não posso esquecer o papel fundamental das Bibliotecas Escolares – como centros de recursos e pontos de encontro e de diálogo interdisciplinar e cívico. Aliás, insistindo na formação cívica, há melhor aprendizagem com melhor leitura e melhor comunicação – já que a democracia precisa de reflexão e de tempo. A rapidez e a simplificação suscitam as notícias falsas, bem como o populismo e a demagogia. É preciso combater a tirania do imediato e da ausência de reflexão e de mediação. Daí a importância da leitura. Um mundo complexo não pode confundir as pessoas com números ou lidar com os cidadãos como se fossem seres manipuláveis. O livre arbítrio depende da autonomia individual e do sentido de responsabilidades. Só o tempo permite a ponderação e a prevenção da demagogia. As instituições precisam, para funcionar bem, de se instituir em forças mediadoras. A qualidade da democracia depende da representação e participação dos cidadãos, da existência de corpos intermédios atuantes e legítimos e de uma limitação justa e legítima do poder. Num mundo complexo é preciso que a simplificação não ponha em causa a justiça nas decisões. Não se esqueça que muitas instituições antigas e prestigiadas por esse mundo fora exigem que as decisões importantes sejam tomadas depois de os responsáveis terem pelo menos uma noite de reflexão. Dormir sobre os assuntos é garantir a ponderação, que é o contrário de pedir votos instantâneos e sem limites. Numa palavra, o livro e a leitura são peças essenciais numa sociedade civilizada, capaz de combater a tirania e a ignorância – e de dar prioridade ao tempo e à reflexão.