A FORÇA DO ATO CRIADOR
Os cadernos de Lena Bergstein são uma provocação entre a palavra e a pintura.
Os cadernos da pintora Lena Bergstein (1946) exploram o diálogo entre o texto e a matéria, numa superfície pintada. São trabalhos em constante experimentação que acontecem ao cruzar a palavra com o tangível e com o concreto - as letras nascem sempre do gesto e da tinta. O acto de escrever é sempre físico, implica sempre o movimento da mão.
Essa relação de Bergstein, com a palavra começou com o desejo de arte (porque o desejo de pintar já existia). Por isso, a escrita, a poesia e a literatura somaram -se ao universo pictórico.
No início, a escrita de Bergstein, recolhia-se em linhas e marcas que não falavam - eram fios que se cosiam na tela e no papel. A costura e a representação dela faziam parte de uma escrita silenciosa. Mas a costura, devagar, foi dando lugar à escrita e ao livro.
Juntar o plástico, com o literário e com o psicanalítico é uma provocação, explica Bergstein. O sujeito dialoga com a pintura, mas a pintura também dialoga com o sujeito. Nos cadernos de Bergstein, aquilo que acontece dentro do pensamento, no momento presente do acto de pintar, abre-se, concretiza-se na matéria e na palavra, de modo a que nada do que acontece fique perdido. Existe um desejo de captar tudo o que está a acontecer, enquanto se pinta. Existe a urgência de que todas as instigações sejam reproduzidas e contadas. E essa é a poética que se instaura dentro de cada caderno, que se refere sempre a acontecimentos, gestos e marcas sem limite.
O livro faz naturalmente parte da escrita - o livro / caderno é, deste modo, visto por Bergstein como uma forma em potência. É o lugar onde se dá essa relação maior, de escrita com plasticidade. Para Bergstein, a arte é um enigma e as palavras que vão aparecendo no caderno representam uma possibilidade de resposta. Mas também podem significar o sentimento e o afeto que ocorre quando se pinta. A ação de pintar faz parte de um processo íntimo, isolado e oculto e as palavras podem ajudar a descobrir quantas coisas se podem dizer em relação ao que se está a fazer num determinado momento e também podem facilitar na manifestação de quantas maneiras diferentes se pode dizer o que se quer pintar.
Algumas páginas dos cadernos parecem rascunhos, parecem o avesso de uma escrita - mostram frases inacabadas, palavras riscadas, erradas, mutiladas, aquilo que não se deve mostrar, aquilo que se quer apagar. Não existe narrativa, mas existe continuidade. As palavras estão soltas ou sobrepostas, entre espaços, no meio de vazios. As palavras fazem parte de perguntas e respostas. Funcionam como forças germinantes, como sementes à espera.
Os cadernos materializam verdadeiras clareiras de diálogos múltiplos que se vão destapando. São conversas mudas, discussões encobertas, diálogos em aberto e discursos incompletos. O branco e o nada talvez simbolize o vazio da resposta ou o silêncio de uma pergunta. As diversas camadas de tinta escondem e cobrem palavras, linhas e marcas.
Bergstein gosta do desenvolvimento formal da linha, do ponto e do plano. Mas a desarticulação da escrita é a própria razão dos cadernos. Só assim há disponibilidade para que a escrita seja continuada, renovada, repensada ou refeita. A linguagem existe afinal em continuidade, nunca está completa e está sempre por acabar. A palavra, semanticamente, para ser lida tem de ter uma aparência e uma importância formal. E a pintura pode ser a narradora de uma história aberta, sem linearidade narrativa, nem temporal. Bergstein diz que, apesar da existência das palavras, as letras devem ter sempre a possibilidade de serem simplesmente letras, para que a procura e a experimentação nunca termine.
Ana Ruepp