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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Já que teimei em voltar a escutar o concerto em ré menor, para piano e orquestra, de Johann Brahms, ouvindo ainda o "prelúdio" verbal de Leonard Bernstein - que dirigia a Filarmónica de Nova Iorque e o solista Glenn Gould -, tal como te contei em carta anterior, deixa-me traduzir-te uns trechos da conversa entre Seiji Ozawa e Haruki Murakami sobre a audição que, eles também, fizeram deste registo. Não o fiz na outra carta, para deixar-te só com as palavras de Bernstein e o meu sentimento. Para começar, o romancista e melómano Murakami comenta, pouco depois da música começar, que tudo aquilo lhe parece muito lento, tão surpreendentemente lento que talvez justifique a prévia advertência de Bernstein. Ao que o maestro Ozawa retorque: É evidente que este trecho é tocado de acordo com um ritmo binário amplo, dois tempos que se decompõem assim: um dois três, quatro cinco seis. Lenny dirige-o como se houvesse seis, porque um simples ritmo binário seria demasiado lento para manter um intervalo consistente entre as batidas. Não tem opção. Em geral, antes será um e e, dois e e, dirigido um...dois... É claro que há uma data de maneiras de o fazer, mas acontece que quase todos os maestros o fazem assim. Aqui, com um tempo tão lento, repito, Bernstein não podia manter um intervalo consistente entre as batidas, e por isso se viu obrigado a dirigir em: um dois três, quatro cinco seis. Eis por que falta fluidez à orquestra e ela se atola.

 

   E eis que então, nesta conversa - quiçá como sinal de que um grande músico está sempre atento , e aberto, não só à escrita original da música, mas também à recriação que, vez após vez, a faz acontecer - quando Murakami lhe aponta, logo à entrada do piano, que este também vai lento, Ozawa responde: Sim, mas tal parece-me bastante aceitável, sobretudo quando nunca se ouviu este trecho noutra versão. Temos a impressão de que foi escrito assim. Dir-se-ia quase uma ária bucólica, tocada com grande descontração...   ... Escute bem: quando chegamos a esse passo é impossível não nos encantarmos...

 

   Atrevo-me a dizer-te que a avaliação global deste registo do concerto de Brahms - por Ozawa e Murakami - não busca ser abonatória, provavelmente pela cedência de Bernstein à imposição de Gould... E, como admirador, discípulo e assistente de Lenny, que o maestro japonês sempre foi, até lhe custou discordar daquela iniciativa do mestre se explicar à plateia antes do concerto. Todavia, tem plena consciência de que, se Bernstein tivesse tomado a outra opção, isto é, a de encarregar um assistente de o substituir na altura, o escolhido seria forçosamente ele próprio, Seiji. Susto enorme, que até em sonhos o assombra... Mas a amizade verdadeira é fiel, não se deixa ressentir com faltas ou mesmo pequenos defeitos daqueles a quem bem queremos. O que não impedirá Ozawa - pois que a amizade também deve ser lúcida - de estabelecer outra comparação: a dessa interpretação de Bernstein com Gould com uma deste mesmo pianista canadiano com a Cleveland Orchestra, dirigida por um assistente de George Szell, pois este se recusara a seguir os tempi queridos pelo solista. Traduzo-te o trecho dos comentários durante a audição do solo para piano do primeiro andamento do concerto:

 

Ozawa - É surpreendentemente lento, mas contudo, assim tocado por Gould, funciona. Não ficamos com a impressão de que o tempo está errado.

 

Murakami - Ele devia ter um sentido muito afinado do ritmo. Isto é, era capaz de manter um tempo tão espreguiçado e simultaneamente inserir o som do piano na estrutura da orquestra...

 

Ozawa - Tinha uma compreensão do fluxo musical à prova de bala. E, por outro lado, o Lenny tinha razão ao dizer que ele se atirava de corpo e alma...

 

   Como terás percebido, Princesa de mim, delicio-me com estas conversas entre músicos e melómanos [alguns fãs quiçá não possam ler uma partitura, mas talvez utopicamente a saibam de ouvido e de cor(ação)]. Confirmam-me, como crisma na fé, que o universo da música é o do tempo de encontros inesperados com uma revelação sempre irrepetível no mesmo modo...

 

   Acontecimento, eis tudo o que ela é, entrega de um inexplicável de nós a um momento de sons que nos cativam. Assim também entendo os títulos de livros de Vladimir Jankélévitch: L´Enchantement Musical (o encantamento ou feitiço musical), La Musique et l´Inneffable (a música e o inefável), Debussy et le Mystère de l´Instant (Debussy e o mistério do instante). E creio que cada instante é a chave da escuta musical. Por isso me retiro agora mesmo da escrita desta carta, e não ouvirei mais música hoje. Amanhã, esteja cinzento e chuvoso o dia, ou radioso de sol já primaveril, sozinho novamente escutarei o concerto em ré menor de Brahms, para piano e orquestra, interpretado por Bernstein, com a Sinfónica de Nova Iorque, e por Glenn Gould. Sem me lembrar já dos comentários que aqui te traduzi, nem de emoções das minhas audições passadas. Mas tão somente, porque nunca pude evitá-lo, com o sentimento de gratidão por uma partilha procurada. Por quem dá e quem recebe. "Ortodoxos","puristas", "fundamentalistas" poderão julgar de outro modo, mas eu pensossinto que as vidas e seus dons, sejam reflexão profunda ou audácia liberta, entregam-se-nos, não para serem julgados, mas para que partilhemos um novo salto, um passo, um encanto, uma interrogação. No caso presente, sou comovido pela coragem fraterna e humana de dois intérpretes (um grande maestro e um pianista genial) que aceitaram revelar-se publicamente na simultaneidade das suas ideias divergentes, das suas respetivas imperfeições mas, sobretudo, no esforço passional de busca da compreensão de uma oferta de música escrita pelo alemão Johannes Brahms um século antes, quiçá sob o desgosto da morte trágica do seu amigo Robert Schumann. 

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Fui enchendo estas minhas últimas manhãs musicais com Beethoven e Brahms... Comecei, dias atrás, por assistir no canal Mezzo ao 3º concerto para piano de Beethoven, interpretado por Mitsuko Uchida e, dirigida por Bernard Haitink, a orquestra do Concertgebow de Amsterdam, nesta sala holandesa. Comoveu-me muito o silêncio da escuta e, no final, a explosão de aplausos do público, sentidamente vibrante do toque carismático da interpretação, quer da orquestra, quer da solista japonesa, mulher já da minha idade, que hoje saboreia de alma cheia o encanto do que vai tocando. Filha de um diplomata japonês de primeiro plano - que, aliás, foi embaixador em Paris, onde o conheci - a Mitsuko empenha-se na música que toca com tal entrega e sábia alegria, que me faz lembrar a Rosa Mota a correr a maratona e, comovida, a rir toda, depois de cortar a meta. Encontrei-as, a ambas, separadamente, várias vezes no Japão, e foi sempre muito gratificante para mim o conforto que me transmitiu o coração da sua humanidade.

 

   A Rosa Mota ainda hoje é uma estrela no Império do Sol Nascente. Uma estrelinha do norte, a guiar o caminho de muitas jovens nipónicas para a corrida de fundo: pequenina e esguia como elas, entusiasmou-as a tentar triunfos. Tem, em Omura, um estádio com o seu nome, que até serve como talismã para treinos de principiantes... Também a figura franzina, com ar de quem está a pedir licença para sair, de Maria João Pires, ficou para sempre na memória dos melómanos japoneses que para a escutarem esgotavam as lotações das mais prestigiadas salas de concerto do Japão. Aliás, o piano de Maria João é Yamaha, e num desses, e no Japão, ela gravou os seus primeiros discos. Encontrei-a por lá muitas vezes, já tinha estado com ela em Bruxelas e New York, mas foi em Tokyo que mais me emocionei, no Suntory Hall completamente cheio, meditativamente escutada por japoneses, a tocar Bach. Inesquecível hora e meia, respirando a íntima harmonia de tanta gente budista e shintoísta, comungando as frases musicais de um cristão alemão setecentista ali animadas pelos dedos e pela alma de uma portuguesa agnóstica, tão brilhante quanto tímida...

 

   A redescoberta emotiva do 3º de Beethoven por Mitsuko Uchida, na televisão, levou-me à escuta de outras interpretações, de que te falarei, e a curiosidade à leitura de comentários de Seiji Osawa. Estes incidem sobre um registo de Mitsuko Uchida com a Concertgebow em 1994 (dessa vez o maestro foi Kurt Sanderling) em que o chefe japonês e o seu interlocutor Murakami se deslumbram com a graça e transparência do toque da sua compatriota e, pela inventividade, a comparam a Glenn Gould.  Foram estes que me conduziram a Brahms, por desejo de revisitar a gravação do seu 1º concerto para piano e orquestra, numa interessantíssima interpretação de Glenn Gould com a New York Philarmonic, dirigida por Leonard Bernstein, no Carnegie Hall, em 1962. Ao tempo, Ozawa era assistente de Bernstein na direcção daquela orquestra; lembro-me do tal concerto ser notícia "viral" (como hoje se diz), e de ter comprado, alguns anos depois, com o registo em cd - que ainda guardo - do concerto propriamente dito, também o da inesperada intervenção do maestro Leonard Bernstein, a esclarecer a audiência, imediatamente antes de dirigir a Filarmónica de Nova Iorque, com o pianista Glenn Gould. Lenny surge na ribalta e diz: Não se preocupem, o Sr. Gould está mesmo cá. Já vai entrar em cena. [Risos abafados do público].

 

   Como sabem, não tenho por hábito falar aquando dos meus concertos, com exceção das «Thursday Night Previews».

 

Mas estamos aqui perante uma situação que, creio, merece que lhe dediquemos algumas palavras. Vão ouvir uma interpretação do Concerto em ré menor de Brahms...interpretação essa que é, digamos, pouco ortodoxa, que se distingue de todas as outras que alguma vez escutei, ou até sonhei, pela excepcional amplitude dos seus tempi e do frequente desrespeito das indicações de Brahms sobre a dinâmica. Não posso dizer que estou totalmente de acordo com o conceito do Sr. Gould, donde resulta uma interessante pergunta: Então, porque vim acompanhá-lo? [Múrmurios do público]. Faço-o

 

porque o Sr. Gould é um artista de tal valor e sinceridade, que é meu dever prestar uma séria atenção a tudo o que ele elabore de boa fé, e porque o seu conceito desta obra é tão interessante que me leva a sentir que também este público merece escutá-la assim.

 

   Mas está por responder a sempiterna questão: Quem manda num concerto? O solista? [Risos contidos do público]. Ou será o chefe de orquestra? [Risos sonoros]. É claro que a resposta varia conforme os executantes. Mas na maioria dos casos, o solista e o chefe entendem-se para chegar a uma interpretação coerente, recorrendo quer à persuasão, quer à sedução, por vezes mesmo a ameaças. [Risos]. Aconteceu-me uma única vez na vida ter de me dobrar às ideias totalmente inovadoras dum solista, e incompatíveis com as minhas, e foi aquando da última vez que acompanhei o Sr. Gould. [Mistura de grunhidos e risos no público]. Mas desta vez, as nossas divergências são tais, que me senti na obrigação de vos fazer este discurso preliminar.

 

   Voltemos portanto à pergunta de há pouco, ainda em suspenso: Porque raio aceitei dirigir este concerto? Porque não escolhi outra retirada menos difícil, como mudar de solista ou confiar a direção da orquestra a um dos meus assistentes? Primeiro, porque estou fascinado e feliz por ter a oportunidade de trazer nova luz a uma obra tão frequentemente tocada. Em segundo lugar, mais importante ainda, porque a interpretação do Sr. Gould tem momentos de espantosa frescura e empenho. Em terceiro lugar, porque todos nós temos algo a aprender com este extraordinário artista, cujas interpretações são alimentadas de reflexão. Finalmente, porque em música há o que Dimitri Mitropoulos soía chamar «elemento desportivo», um composto de curiosidade, de aventura, de experimentação. E posso-vos assegurar de que, no decurso desta passada semana, ensaiar este concerto de Brahms com o Sr. Gould foi uma verdadeira aventura. E é com o mesmo espírito qua vamos agora tocá-lo para vós. [Grande ovação].

 

   Traduzi na íntegra este "prefácio" do maestro Leonard Bernstein, diretamente do registo sonoro de que disponho, por duas razões:

 

1. Esta curta charla revela bem o espantoso pedagogo, dotado de tão humano sentido de humor, que ele sempre foi, um homem que procurava na música a proximidade com os outros, a busca da harmonia no respeito pela diferença e no amor da liberdade.

 

2. E ele diz, bem melhor do que jamais eu seria capaz, muito do que me ocorreu dizer-te, Princesa de mim, em continuação das minhas últimas duas cartas, sobre a interpretação como segunda criação musical ou, melhor ainda, remetendo-me às memórias dos gratificantes momentos em que se produz e acontece, como co-criação na liberdade dos filhos de Deus. Todos buscamos, de cada vez que "fazemos" música, um evangelho, uma boa nova libertadora. Tal como descobrimos que não há arte sem generosidade.

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira